por Carlos Eduardo Lima
Texto publicado originalmente em 29/10/2003 na versão 1.0 do Scream & Yell
Alguns discos mudam comportamentos. Outros geram tendências. Uns poucos mudam o mundo. E, raríssimas vezes, um disco é perfeito. “Fuzzy”, estreia do Grant Lee Buffalo que completa 20 anos em fevereiro de 2013, tem um pouco dessas qualidades concentradas em suas onze canções. Como um time de jogadores, cada música cumpre sua função e serve de espelho/compensação da anterior ou subsequente, gerando o que os comentaristas esportivos chamam de “conjunto”. É um disco cheio de equilíbrio e beleza. Senão vejamos.
Grant Lee Phillips era uma guitarrista que amava R.E.M., John Lennon e David Bowie em escalas quase iguais. Dono de uma voz celestial e de uma criatividade exuberante, Grant começou cedo a querer ter uma banda de rock. Encontrou em Paul Kimble e Joey Peters os contrapontos perfeitos para suas ambições artísticas. Sob o clássico formato de baixo, bateria e guitarra, mas contando com esquisitices como o domínio de Kimble sobre o piano e a chamada pianola (aqueles pianos dos saloons americanos), o já batizado Grant Lee Buffalo despontou para a mídia em 1993. Após um dos primeiros shows, o selo Slash Records, distribuído pela Warner, assinou com a banda e levou-a para o estúdio a fim de gravar sua estreia.
“Fuzzy” nasceu como uma espécie de declaração de intenções do grupo diante do objetivo implícito por parte de Grant de recriar climas e sons remetentes a uma América mitológica, cheia de peregrinos do Mayflower, lendas do sul do país, cowboys empoeirados, o assassino de Abraham Lincoln, John Booth e até gente como Al Capone. Para isso, o instrumental oscila numa espécie de fio da navalha em que interagem punk, flok, country, psicodelia e o tão chamado “novo”, contido em algum lugar entre os timbres da voz de Phillips e o clima criado.
“Fuzzy” começa arrasador com “The Shining Hour”, levada com piano anos 30 e permeada por letras surrealíssimas, em que versos etílicos como “it kills me to think that I´m no longer living, just looking for excuses to drink” convivem com loucuras como “I propose a toast to the memory of the horse who carried King Tut and his gold… into the sun”. Uma das mais perfeitas baladas do pop vem em seguida, “Jupiter and Teardrops”, narrando o amor impossível entre um artista mambembe e uma ex-presidiária. Em certo momento Grant faz um trocadilho perfeito com o nome Teardrop e uma das mais lindas canções dos anos 50, “Lonely Teardrops”, do Elvis negro Jackie Wilson, que toca no rádio enquanto a ação se desenrola.
As alegrias prosseguem em “Stars’n’Stripes” na qual o cenário desolado de um ferro velho serve de metáfora para uma grande cidade e principalmente em “Dixie Drugstore”, que fala do amor entre um casal de fantasmas em Nova Orleans em meio a vocais que murmuram “jambalaya” (uma saudação típica do Sul), cantados pelo próprio Grant com falsete de fazer inveja aos grandes mestres da soul music.
“Fuzzy” levou o Grant Lee Buffalo ao sucesso, mais na Europa que nos Estados Unidos, mas a banda nunca repetiria o arraso de sua estreia em seus três discos seguintes, “Mighty Joe Moon” (1994), “Copperopolis” (1996) e “Jubilee” (1999). Neste mesmo ano Grant deixou-a após uma turnê na Austrália em decorrência de problemas contratuais com a Warner e embarcou em uma belíssima carreira solo, que já conta com o maravilhoso “Ladie’s Love Oracle”, lançado em 2000 pelo minúsculo selo Magnetic Fields, e mais seis álbuns (“Walking in the Green Corn”, de 2012, apareceu em diversas listas de melhores do ano passado).
Em fevereiro de 2002 foi lançado (lá fora, claro), “Storm Hymnal – Germs From The Vault of” – Grant Lee Buffalo”, coletânea dupla que tem seu maior atrativo no CD 2, contando com vários b-sides e raridades, incluindo versões acústicas de “The Shining Hour”, “Jupiter and Teardrop” e da faixa título. “Fuzzy” foi inexplicavelmente lançado no Brasil em 2000 pela Warner (com sete anos de atraso), e hoje está fora de catalogo por aqui, mas com sorte ainda pode ser encontrado em sebos ou boas lojas (e facilmente nas Amazons da vida).
Numa década que teve medalhões como “Nevermind”, “Bloodsugarsexmagic”, “Automatic For The People”, entre outros discos mais emblemáticos, “Fuzzy” passou por uma elegante discrição que acabou fazendo com que adjetivos como perfeito, belo, consistente e pungente só tenham sentido se forem usados em conjunto para definir a sua real dimensão.
– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista, fã de música e responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell e pelo podcast Atemporal.
Um dos meus discos favoritos dos anos 90… Ficou muito tempo no meu “disc-man” (relíquia?!?). Gosto muito também do Might Joe Moon. Enfim, uma das minhas banda favoritas de todos os tempos.
Faço minhas as palavras de Barvix. Até hoje ouço bastante. E os discos do GLP são ótimos também.
Muito boa sua coluna, Carlos Eduardo!
Não conhecia as músicas de Grant Lee Buffalo. Por sua causa, elas não saem da minha cabeça há duas semanas!
Abraço!
Aproveitando a deixa, quando você vai escrever alguma coluna sobre o Elliott Smith?
Bloodsugarsexmagik é o melhor disco da década de noventa.
Talvez até de todos os tempos.
Quiçá de todo o Sistema Solar. :>)
“Fuzzy”, mais que um grande disco, é uma descoberta. Seu papel é esse: ser sempre descoberto e admirado por fãs de bom rock que se deem ao trabalho de correr atrás.