Cinema: Titanic 3D, James Cameron

por Carlos Eduardo Lima

Você está em um dos dois grupos de seres humanos: dos que odeiam ou dos que amam “Titanic”. Há um terceiro: o dos que não estão nem aí para “Titanic”, mas reputo a existência de tal facção à ignorância strictu sensu, ou seja: são os que ainda não viram o filme, sabe-se lá por que motivo. O lançamento da versão 3D do épico de James Cameron é uma boa chance para que esse pessoal corrija seu débito com a História, bem como redefinir o mapa de amantes e detratores da saga transatlântica.

Boa estratégia de marketing é pouco para definir a realização desse novo “Titanic”. Estamos no centenário do naufrágio, ocorrido em 15 de abril de 1912, em algum ponto entre Southampton e Nova York. Também já se vão 15 anos desde o lançamento do filme e não é preciso lembrar o tanto dos 11 Oscars que ele arrematou em 1998, igualando o então campeão de todos os tempos no prêmio, “Ben-Hur”. Entre as estatuetas, estavam a de melhor diretor e melhor filme, avalizando o verdadeiro tilintar de cifrões que era o projeto: mais de U$S 200 milhões de orçamento e (até agora) cerca de U$S 1,8 bilhões de bilheteria ao redor do mundo. Tudo é grande, opulento e exagerado em “Titanic”. Ainda bem.

Sabemos todos que o cinema desses nossos tempos (e desde sua gênese, eu arriscaria) tem um repertório limitado de histórias, arquétipos e assuntos para discutir. Claro, é uma área do conhecimento humano, sobre o nosso mundo e nosso cotidiano, natural que haja repetição de lições de moral e reflexões aqui e ali. “Titanic” não tem motivo nenhum para disfarçar que se vale da velha situação de valorizar o que há de “humano” naquele que não tem qualquer verniz civilizatório e que, no fundo, por mais ricos e fúteis que possamos ser, sempre teremos esse núcleo de virtudes. É o início e o fim do relacionamento entre os personagens de Jack Dawson (Leonardo Di Caprio) e Rose Bukater (Kate Winslet) ao longo dos acontecimentos do filme, do encantamento ao reconhecimento mútuo, para desaguar num romance improvável. Tudo bem, não dá pra crucificar James Cameron ou os atores por isso. O roteiro, escrito por Cameron, é um caso à parte em termos de engenhosidade, justamente por dar pistas ao espectador desde os primeiros momentos do filme de tudo o que vai acontecer e, ainda assim, prender a atenção por mais de 180 minutos. Sabemos que o barco vai afundar, que mais da metade dos passageiros vai morrer e podemos apostar que o romance do rapaz pobre com a bonequinha rica idealista não tem futuro. Mesmo com essas certezas, o filme não deixa de ter seus méritos.

Por exemplo, o personagem de Kathy Bates é uma “nova rica”, desprezada pela empertigada aristocracia anglo-americana da primeira classe do barco, mas que tem mais alma que todos, além de se identificar com o desnível social enfrentado por Di Caprio, que terá seus “quinze minutos” em meio aos mais ricos, após salvar Winslet de uma tentativa de suicídio. Sim, a personagem rica vive o noivado de um casamento arranjado com um magnata do aço americano, chamado Cal Hockley, riquíssimo e com caráter de valor inversamente proporcional à grana que possui. A mãe de Rose, Ruth, está contando as horas para o casório, como forma de recuperar um status social perdido com a morte do marido. Está armado o cenário a ser inserido no evento histórico com boa dose de coerência. É só dar uma olhadela para o mundo de 1912 e perceberemos que é perfeitamente possível a existência de todos esses tipos num navio como o “Titanic”. No barco, como no mundo daquela época, havia um grande abismo social. A passagem da Primeira Classe custava “módicos” € 76.500 por pessoa. A classe média, algo tão comum nos nossos dias, simplesmente não existia na época. Ou o sujeito era pobre mesmo ou muito rico e esses extremos são simbolizados de maneira satisfatória pelos personagens centrais.

Interessante notar que nossas mentes apenas registraram o romance dos protagonistas, cujas imagens ficaram cravadas na mitologia do cinema. O jovem esperto de Di Caprio e a belíssima aristocrata de Winslet, cuja beleza parece criada por computador, tamanha a perfeição do rosto, do sorriso, do ruivo dos cabelos e da pitada de atrevimento que a atriz empresta ao personagem. Mas há muito mais para ver em “Titanic”: o drama humano está presente, a morte aos montes tem lugar e a espera impotente diante do naufrágio reduz o ser humano a quase nada.

É bom lembrar que o barco era a mais avançada peça de tecnologia européia, a epítome da grandeza, do eurocentrismo, do “homem adulto branco sempre no comando”, de Caetano Veloso em “O Estrangeiro”. Por branco, entenda o rico, o socialmente viável, não o de tez alva. O personagem de Di Caprio e seus amigos irlandeses estão muito mais para “negros sociais” do que qualquer outra coisa. Era um mundo de Commmon Wealth, ou seja, de um Império Britânico agonizante e inviável, que se insinuaria dois anos depois, com a Primeira Guerra Mundial. A paz dos vencedores em 1918 somente postergaria esse fim para 1945, após a Segunda Guerra, que colocou os Estados Unidos e a União Soviética como novos pólos de comando no mundo. A Europa do século XIX é o próprio barco: enorme, altivo, com muita gente, muita beleza, mas podre, erodida em sua base, com uma arrogância de séculos de domínio que trouxeram a ilusão de que tudo era menor. Erraram feio.

James Cameron reconstituiu o filme para a versão em três dimensões. Ele teria construído modelos em 3D para cada frame de “Titanic”, o que significaria cerca de 300 mil modelos para os 194 minutos de duração. O que, convenhamos, é um trabalho árduo, mas que condiz com a grandeza de números que o filme contém de origem. A idéia do uso do 3D também passou pelo uso da profundidade na tela, ou seja, as imagens não saltam, se aprofundam, o que confere uma nova visão a alguns momentos memoráveis, como a inundação da cabine do veteraníssimo capitão E.J Smith, a sequência do resgate de Jack logo no início do naufrágio, como a própria correria desesperada por um lugar nos botes: uma analogia ao inevitável choque de classes que teria lugar em 1917 e que seria o grande temor do Ocidente nas próximas décadas.

A impressão que temos é que o filme não envelheceu um dia. A junção de maquetes e efeitos especiais é perfeita, dando a idéia de “melhor de dois mundos” a serviço da reconstituição da realidade. As atuações de Kate Winslet e, vá lá, de Leonardo di Caprio, são competentes e interessantes, sobretudo a dela, indicada para o Oscar de 1998, perdendo para Helen Hunt, de “Melhor É Impossível” (filme de James L. Brooks, que tomou de “Titanic” também o Oscar de Melhor Ator, que ficou com Jack Nicholson). Pareceu justo na época. Hoje, com alguns anos de janela, fica a dúvida se Winslet e sua deslumbrante beleza e competência não seriam merecedoras do prêmio. O fato é que “Titanic” é um dramalhão histórico tipicamente hollywoodiano, de um jeito que Hollywood parece estar deixando de ser, de grandeza e extravagância. É daqueles filmes simples de compreender e de realização extremamente difícil. Se você teve chance de acompanhar uma filmagem, qualquer que seja, saberá o motivo. É filme de vilão, de mocinho, de mocinha, daqueles que a gente torce, chora, dá vexame no cinema e capta a rasteira mensagem de “ame e seja você mesmo, não importa o que aconteça”.

Na parte da ação passada no tempo presente, a veteraníssima atriz Gloria Stuart faz a personagem de Kate Winslet já centenária, que, após ver que há uma missão de resgate aos destroços do Titanic, entra em contato com os exploradores, para poder ver o que acharam e contar sua história, que, até então, estivera em segredo. E aí vem aquele dilema que assombra os que defendem que a vida era boa no passado (Eu!), materializado no fato de que os tempos idos só têm sentido como lembrança lograda no presente. Ou seja, pra não complicar demais: o passado não existe, só como algo contaminado por nossa existência. Parece óbvio, mas esse rastilho de pensamento filosófico é a mola mestra do próprio roteiro de James Cameron, inserindo um romance-drama num dos maiores naufrágios da história, levando a fatalidade de todos a servir de pano de fundo para um rito de passagem definitivo em uma passageira adolescente fictícia, aproximando as esferas de maneira bastante convincente. Nada mal para um filme-pipoca de orçamento e bilheteria milionárias, não? Veja, nem que seja para dar mais munição para afundar ainda mais o grande barco.

PS: Claro que “My Heart Will Go On”, a canção-tema do filme, interpretada pela canadense Celine Dion, é onipresente e extremamente irritante. A disputa do Oscar de Melhor Canção de 1998 não poderia ter sido mais surreal, com Elliott Smith defendendo “Miss Misery”, que ele compusera para “Gênio Indomável’, acompanhado apenas por seu violão, e sendo inapelavelmente derrotado pela canadense, mas protagonizando um momento raro de artista independente batendo de frente com um medalhão da indústria fonográfica. Quase o mesmo abismo entre os passageiros ricos e pobres do “Titanic”.

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– Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite) assina a coluna Sob o CEL (aqui) no Scream & Yell

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– “Avatar”, de James Cameron, é uma bobagem que surpreende, por Marcelo Costa (aqui)
– “Melhor É Impossível”, “Pulp Fiction”, “Magnólia” e outros: Uma Década em 15 Filmes (aqui)

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