por André Takeda
Ela era a garota mais inteligente do Colégio de Aplicação de Porto Alegre. O que, para um cara de dezesseis anos como eu, significava que ela era a garota mais inteligente do mundo. Talvez sua única falha foi ter se apaixonado por mim. E não digo isso com falsa modéstia. Logo, logo vocês vão me dar razão. Enfim, ela era definitivamente a mulher mais inteligente do mundo. Mas estava longe de ser uma CDF. Porque existe um abismo enorme entre um gênio e um CDF. Ela simplesmente não precisava estudar, porque muitas vezes sabia mais do que os próprios professores. Além disso, sabia o quanto era bonita e que todos os marmanjos do Aplicação olhavam para as suas pernas quando jogava vôlei. Por isso, não se importava em sumir do colégio comigo, beber com os meus amigos, passar a tarde me beijando no seu apartamento enquanto seus pais estavam trabalhando, ou até mesmo ficar cinco horas em pé porque eu queria ser um dos primeiros na fila do show do New Order. Ou seja, ela era a namorada perfeita. Pena que de perfeito eu sempre tive pouco.
Talvez seja o meu sangue japonês, mas acho que tenho um humor quase perverso em minhas relações. Vai saber. A verdade é que, depois de mais ou menos um ano juntos, fomos convidados para uma festa de quinze anos de uma menina de outra turma do colégio. Eu havia chegado no tal clube há uns vinte minutos com dois amigos meus. Óbvio que já estávamos bêbados. Foi então que a vi entrar com suas amigas, sorrindo para mim, e fiz uma das coisas que mais me arrependo em toda a minha vida. Ela usava um vestido verde, cheio de camadas. Verde, muito verde. E eu tive a infeliz ideia de dizer “Nossa, tu parece um repolho”.
Sério? Sério, André? Repolho? Eu realmente gostava dela. Eu estava apaixonado. Eu sonhava em passar o resto da minha vida em suas pernas de jogadora de vôlei. Mas não fui capaz de dizer que ela estava linda. Que estava com saudades. Que queria dançar o último single do New Order ao seu lado. Não. Só consegui chamar a garota mais inteligente do mundo de repolho.
Óbvio que imediatamente ela começou a chorar. Saiu correndo pelo salão do clube. E só a vi de novo na saída da festa. Lá estava ela sentada no chão, ao lado de uma escadaria, aos beijos com outro menino. Foi a primeira vez que fui traído. E nem me senti tão corno assim. Porque, no fundo, sabia que ela tinha razão. Sei que ela me viu também. Mas não dissemos nada um ao outro. Fui embora, em silêncio, sozinho. E, na segunda, lembro que terminamos definitivamente nosso relacionamento.
Ambos sabíamos que ela merecia algo melhor.
Provavelmente ela já tenha esquecido essa história. E se não esqueceu, Peixinha Cleo, hoje peço desculpas em público. Porque é dessa história tipicamente adolescente, desse roteiro digno de John Hughes, dessa pequena comédia romântica que lembro toda vez que penso em escrever algo sobre a minha paixão pelas girl groups. Afinal, foi a garota mais inteligente do mundo que gravou para mim uma fita K7 com aquela que seria a minha música favorita de todos os tempos: “Be My Baby”, das Ronettes.
A questão é que não existe nada mais adolescente do que as girl groups dos anos 50 e 60. “Will You Love Me Tomorrow”, das Shirelles, que é, na minha opinião, o maior clássico do gênero, fala sobre uma garota que não sabe se o seu namorado ainda vai gostar dela depois da primeira vez. Essa primeira vez pode ser um cinema, um beijo, mas ainda penso que a Carole King estava se referindo ao sexo. Com letra também de King, “One Fine Day”, das Chiffons, é o ponto de vista daquela que está esperando apenas um olhar do gostosão da turma, do bairro, da escola. A própria Ronnie Spector das Ronettes diz em sua autobiografia que o verso “for every kiss you give me, I’ll give you three”, de “Be My Baby”, se referia a beijos na bochecha. Porque ela ainda nem tinha 18 anos quando o maluco do Phil Spector escreveu e produziu essa obra-prima como forma de declarar seu amor pela cantora. E a trágica “The Leader of The Pack”, das Shangri-Las, conta a história de uma menina que sai com um rebelde que morre em um acidente de moto.
E eis que, de repente, me dou conta que grande parte do que estou ouvindo em 2011 tem claras referências às girl groups. Musicalmente, “Sadness is a Blessing”, da Lykke Li, e “Bumper”, do Cults, bebem diretamente na fonte do formato clássico do pop norte-americano da época de ouro da jukebox. “Love Life”, do Girls, poderia muito bem ser um single escrito no lendário Brill Building, em Nova Iorque, onde compositores como Carole King, Gerry Goffin, Doc Pomus, Ellie Greenwich, Jeff Barry, Jerry Leiber, Mike Stoller, Burt Bacharach, entre outros, batiam cartão e juntos escreveram mais hits que os Beatles e os Stones juntos. E “The Memory is Cruel”, da espanhola Russian Red, tem aquele toque dramático, quase trágico, das produções de George Shadow Morton, o cérebro por trás das Shangri-las.
Todos esses músicos são jovens. Bem jovens, eu diria. Quase saindo da adolescência. E o mais interessante é perceber que a temática de suas letras nem sempre parece adolescente. Estamos crescendo mais rápido? Ficando maduros antes do tempo? Ou os versos da Russian Red não parecem adolescentes porque ser adolescente e ser adulto hoje é a mesma coisa? Eu diria que perdemos a inocência do “beijo na bochecha” e somos mais melancólicos. Lykke Li tem apenas 25 anos e realmente acreditamos quando ela canta “tristeza, sou sua garota”. Tenho vontade de dizer “C’mon, Lykke, tu é novinha, bonita, talentosa, a melhor coisa que veio da Suécia depois da vodca Absolut, deixa esse papo de tristeza de lado, por favor”. Mas esse é o mundo moderno. Onde jovens de vinte e poucos anos são capazes de escrever canções sobre separações como se tivessem vivido um casamento de décadas. Duvida? Então presta atenção na letra de “The Memory is Cruel”. Mesmo os Raveonettes, cuja sonoridade é 100% girl groups, tem algo de melancólico em suas letras quase sempre sexuais. E a banda ainda tem uma doce canção com o título nada inocente de “Boys Who Rape (Should All Be Destroyed)”.
Eu, que às vezes acho que nasci na época errada, adoro este revival não declarado das girl groups. Há tempos que não ouvia tanto disco novo como em 2011. E realmente espero que isso sirva como inspiração para que mais gente, adolescente ou não, corra atrás de bandas como Shirelles, Chiffons, Ronettes, Crystals, Shangri-Las, Marvelettes, Dixie Cups. Ou que pelo menos ouçam todos os clássicos que a Carole King escreveu em sua vida.
E, aconteça o que acontecer, nunca chame a sua namorada de repolho. Porque não é preciso ser a garota mais inteligente do mundo para saber que vivemos em um girl world. E, se pisarmos na bola, elas sempre vão encontrar um cara mais legal que a gente. Tenha certeza disso.
*******
André Takeda é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell e assina atualmente o Tumblr Eu Quero Ser Amigo além de publicar suas fotografias no http://www.flickr.com/photos/andretakeda/
Leia também:
– O momento decisivo de Russian Red, por André Takeda (aqui)
– Um Adolescente nos Anos 80, uma série em 10 capítulos, por André Takeda (aqui)
Tudo lindo, tudo muito bonito e amoroso, mas a verdade é: “Who run the world? GIRLS!” =PP
Tenho q concordar com a Jéssica. O texto é ótimo, a história do repolho é de dar dó, mas cara, queria muito viver nesse seu mundo onde as mulheres tem assim todo esse poder. Infelizmente no que eu vivo, tem um macho matando/batendo/humilhando uma mulher a cada segundo. Ou um idiota chamando a mulher dos sonhos dele de repolho só para ficar bem na fita com os amigos bêbados…Ou seja, todos sofrem.
Mas, bom, vou assumir que você está falando do mundo da música e das canções poemas, né?
Takeda, parabéns pelo texto. Na medida certa entre informação e confissão. Como deve ser, cara.
ótimo comentário aiaiai.