Ródtchenko: dever de experimentar

por Bruno Capelas

“Precisamos revolucionar nosso pensamento visual”. A frase de Aleksandr Ródtchenko chama a atenção na exposição “Revolução na Fotografia” e explicita bem o espírito deste fotógrafo russo, que mexeu com os padrões da fotografia e da arte nas décadas de 20 e 30. A obra de Ródtchenko tem um caráter múltiplo: aliando forma e conteúdo, acessibilidade e riqueza de informação, ele desafiou estruturas de poder. Ao diferenciar enquadramentos, queria levar a arte para fora dos museus e a fotografia para dentro deles.

De início, algumas características se destacam nas imagens do russo, que nasceu em 1891 e morreu em 1956: linhas geométricas guiando o olhar, retratos não posados, ângulos heterodoxos, a escolha por cores fortes. Nada disso é gratuito: trata-se de reflexos do tempo de Ródtchenko. A utopia socialista guiava seu pensamento: a arte deve ser feita para o povo, para que ele mude sua percepção sobre o mundo.

“Para acostumar as pessoas a ver a partir de novos pontos de vista, é essencial tirar fotos de objetos familiares, a partir de perspectivas e posições completamente inesperadas”, disse o artista em 1929. Desde o Renascimento, a arte ocidental habituou-se a utilizar a perspectiva italiana. Nela, tem-se a ilusão de que o artista tem poder sobre o mundo: o que existe só existe porque está nesta tela, e só pode ser visto do jeito como está aqui representado. Com o surgimento da fotografia no século XIX, a noção de simulacro da realidade se perdeu para a pintura, mas passou a sufocar os fotógrafos.

É contra esses grilhões que Ródtchenko procura lutar: quebrar a noção de poder e fornecer ao apreciador de sua obra novos pontos de vista imagéticos é também ampliar a consciência sobre o que existe a seu redor e libertar a fotografia do simples papel de representar “a vida como ela é”. É assim que se mostram escadas de incêndio e rostos vistos verticalmente, ou praças em diagonal: para se mostrar que existem outros jeitos de perceber o mundo. Esse ideal também de dar poder ao observador acontece quando o artista estabelece narrativas fotográficas: ele dá liberdade a quem o vê de inventar sua própria ordem narrativa.

É óbvio, porém, que Ródtchenko não criou tudo sozinho. Ele conviveu com outros artistas importantes, como Maiakóvski e Eisenstein, e deu aulas numa “versão” russa da Bauhaus, a VkhUTEMAS, durante 1920 e 1930. Nela, Rodtchenko era o titular de uma disciplina criativa chamada “Construção”, em que os alunos faziam desde cartazes até móveis, mas utilizando materiais diferentes: no lugar de tinta à óleo e mármore, ali se usava aço, madeira e fotografia. Além de empregar Ródtchenko, o governo soviético patrocinava periódicos e exposições, além de utilizá-lo para a confecção de campanhas populares como “aprenda a manejar um rifle”.

Entretanto, esse apoio estatal não durou: a escola VkhUTEMAS foi fechada em 1930, e os temas que o artista devia seguir nas publicações estatais tornaram-se cada vez mais restritos durante a década: esportistas, exércitos, a construção de uma barragem – como pode-se perceber, tudo ligado à edificação do país. Era o início do chamado realismo socialista. Nos anos 50, ele até chegou a ser acusado de “formalismo”, ou seja, uma aproximação dos valores burgueses de arte. Porém, cabe observar que mesmo tolhido pelo regime, Ródtchenko consegue manter sua concepção artística. Ele retira o foco das imagens para dar força à geometria de uma pirâmide humana; ou trata um batalhão como se fosse um bloco único; ou ainda mostra comportas em ângulos diagonais, de maneira a fazer como quem vê aquelas fotos se perguntar: “mas como é que ele conseguiu essa imagem?”. Uma parte razoável da culpa disso se deve ao auxílio de câmeras portáteis, como a Leica.

Dois pontos importantes da carreira de Ródtchenko são retratos e fotomontagens. Quanto aos primeiros cabe comentar que também há uma quebra de paradigmas sobre o que era feito até então. Os retratos feitos pelo russo não parecem posados: ou os retratados não olham para a lente e dão a impressão de fazer (fotografando, fumando) ou observar algo além da imagem; ou estão olhando de maneira tão fixa para a câmera que parecem encarar o observador.

Já sobre as fotomontagens, é possível dizer que elas também são muito importantes na ideia de “revolucionar o pensamento visual”: é muito mais fácil se fazer entender a partir de fotografias e formas geométricas em disposição simples: uma moça de aparência convidativa gritando “Livros!” é um ótimo e claro apelo para que se leia mais. Quanto às cores, vale notar que o que era uma dificuldade técnica – a reprodução colorida era muito cara – se tornou opção estética: as fotomontagens de Ródtchenko primam pela utilização de poucas e fortes cores, como o vermelho e o azul, contrastando com o usual p&b.

Nos anos 30, Ródtchenko foi acusado de plagiar a Bauhaus. Ledo engano: ambos compartilhavam ideais e condições de trabalho semelhantes, chegando a resultados muito parecidos. Assim, é possível observar impressões digitais dos alemães e do russo em lugares tão díspares quanto o design gráfico, – o que são as infografias senão uma evolução das fotomontagens? – websites, capas de discos – as capas de “Velo”, de Caetano Veloso, e “You Could Have It So Much Better”, da banda Franz Ferdinand, remetem à fotomontagem Knigui – e coberturas jornalísticas – as massas “geometrizadas” são presença maciça nas fotografias de desfiles de Carnaval.

Talvez as utilizações modernas para o que Ródtchenko idealizou não sejam o que ele queria para sua arte – nem sejam mostras fidedignas de arte feita para o povo, em meio ao cenário da “indústria cultural”. Mas é inegável que a obra dele não seja presente nos dias de hoje. As pessoas podem até não ter mudado de ponto de vista, mas com alguma certeza é possível dizer que seu universo imagético é bem mais amplo e rico por culpa de homens como Ródtchenko.

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– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop. Todas as imagens por Moscow House of Photography Museum / Divulgação

3 thoughts on “Ródtchenko: dever de experimentar

  1. Ródchenko foi um visionário, numa época em que a critividade e experimentalismo falavam muito mais alto do que um simples toque de Photoshop.
    Grande!

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