Um
Adolescente Nos Anos 80 #2
"Close To Me", The Cure por
André Takeda
Spectorama
2000
A
culpa era de seus coturnos. Seus malditos e detonados coturnos
que pareciam pisar em cima de meu coração cada
vez que Julia colocava seus pés na escola. Com seu estilo
punk-gótico-menina, reduzia a pó as outras adolescentes
enquanto atravessava a quadra de futebol de salão e,
para meu desespero, orgulho e medo, caminhava em minha direção
com sua garrafa de guaraná na mão. E eu, em vão,
tentava procurar alguma pista em seu rosto. Um olhar, um movimento
de seus lábios, qualquer coisa que pudesse me dizer se
o que a gente estava vivendo era uma espécie de namoro
ou apenas uma amizade que, além de discos, dividia beijos
e abraços e amassos em nossos quartos e cantos escondidos
da biblioteca. Mas não. Julia não parecia estar
preocupada com minhas angústias e, muito menos, no efeito
desconcertante de seus coturnos.
"Aconteceu
alguma coisa?", ela perguntou com o canudo entre os dentes.
"Como assim?"
"Você não pára de me olhar, João."
"Sei lá. Eu tava só pensando."
"Pensando no quê?"
"Nos seus coturnos."
"Nos meus coturnos?"
"É. Os seus coturnos."
"E o que é que tem meus coturnos?"
"Sei lá, Julia. Você tem estilo, entende?"
"Obrigada. Você também tem, João."
"Que nada. Corto meus cabelos como o Barney do New Order e uso
tênis iguais aos do Robert Smith. Isso por acaso é
estilo?"
"Pelo menos você ouve New Order e Cure. Já é
algo, né?"
"Mas você é diferente. Eu sou uma cópia
xerox vagabunda. E você é original."
"Também copio os ingleses, você sabe disso."
"Só que em você tudo faz sentido."
"Ah, pára de falar bobagem."
"Não é bobagem."
"Minha casa tá vazia hoje à tarde. Passa lá?"
"Não é bobagem, Julia."
"Passa ou não passa?"
Eu
poderia ficar ali sem impor minha vontade para o resto da vida.
Há um abismo enorme entre as meninas e os meninos quando
você é adolescente. No meu caso, um abismo que
parecia intransponível. Julia tinha 16 anos e eu 14.
Você sabe o que é ser um cara de 14 anos apaixonado
por uma menina de 16? Não, você não sabe.
Aqueles míseros dois anos significavam o máximo
de falta de experiência que um ser humano é capaz
de imaginar. Mas, droga, Julia gostava de mim. Eu sabia. Eu
sentia. Eu via em seus olhos fechados cada vez que a gente se
beijava. Por isso, esqueci todo meu medo estúpido e resolvi
abrir o jogo.
"Porra,
Julia, você não me ouve? Não é bobagem!",
gritei.
"O que não é bobagem, demônio de guri?"
"Não é bobagem, caralho. Não é bobagem
eu te ver caminhando com estes coturnos velhos e mal cuidados
e ficar tremendo, zonzo, tarado e, ao mesmo tempo, cheio de
orgulho porque, porra, é comigo que você passa
as tardes. Mas..."
"Mas...?"
"Mas de que adianta a gente passar as tardes juntos se eu nem
sei o que a gente é."
"Como assim?"
"O que a gente é, ora."
"Desculpa, João, mas não entendi mesmo."
"Ah, não me faça falar."
"Falar o quê?"
"Falar em... namoro."
Então,
pela primeira vez depois de três semanas vi Julia desabar.
As pistas que tanto queria finalmente apareceram em seu rosto:
um sorriso tímido nos lábios, as sobrancelhas
arqueadas, o canudo totalmente mordido.
"Você
tá me pedindo em namoro, João?"
"Que é isso, Julia, não viaja."
"Você tá sim me pedindo em namoro."
"Ah, Julia..."
"Que bonitinho...", ela suspirou ao mesmo tempo que envolveu
seus braços em meu pescoço, a garrafa de guaraná
ainda na mão direita, os olhos fechados e, em um beijo,
respondeu o que não perguntei, mas cuja resposta estava
ansioso para ouvir e sentir.
E
naquela tarde, como aconteceu diversas vezes naqueles meados
dos anos 80, eu e Julia rolamos pelo carpete de seu quarto ao
som de discos de bandas inglesas. A agulha passeando pelos sulcos
do vinil. O tema de casa por fazer em cima da escrivaninha.
E, claro, os meus tênis iguais aos do Robert Smith jogados
no canto do quarto ao lado dos malditos e detonados coturnos
de Julia.
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