Um
Adolescente Nos Anos 80 #3
"The Boy With The Thorn In His Side",
The Smiths por
André Takeda
Spectorama
2000
Uma,
duas, três, quatro, cinco, seis, sete. Sete horas livres
para eu fazer o que me desse na telha. Porque, se havia uma
parte do dia que era minha e somente minha, essa parte era aquele
infinito e, ao mesmo tempo, curto espaço que iniciava
com a minha saída da escola e terminava com a volta dos
meus pais para a casa. A maioria dos meus colegas passava as
tardes da semana em um revezamento físico-cultural: segundas,
quartas e sextas para curso de inglês e terças
e quintas para aulas de natação. Talvez fosse
a minha preguiça ou, quem sabe, meus pais não
viam motivos para investir no meu futuro, mas minhas tardes
não eram feitas de idiomas e exercícios. Quero
dizer, não assim ao pé da letra.
Afinal,
eu tinha meus discos e uma namorada. E, não sei se você
sabe, com uma boa coleção de discos e uma namorada,
é possível aprender muito bem a língua
inglesa e fazer bastante exercícios em sete horas.
"O
que quer dizer 'thorn', João?"
"Sei lá, Julia, procura no dicionário."
"Peraí um pouquinho..."
E,
assim, Julia afastava seus coturnos do caminho e caminhava até
minha estante, tentando não escorregar com suas meias
brancas de algodão tocando o chão de meu quarto.
Ainda em pé, com seu uniforme do colégio com as
mangas rasgadas à mão, ela folheava com rapidez
o dicionário. E num sorriso que só não
me derrubava porque eu já estava deitado ao lado do meu
velho aparelho de som Gradiente, ela dizia em voz alta o significado
da palavra.
"Tem
certeza que é espinho, Julia?"
"Tá aqui no dicionário."
"Caralho. O que esse cara quer dizer com 'o menino com o espinho
no seu lado'?"
"Sei lá. Presta atenção no resto da letra..."
"Parece que é a história de um cara meio incompreendido."
"Olha isso: 'desire for love'."
"E?"
"E, sei lá, João, vai ver que o tal espinho é
uma metáfora."
"Que é uma metáfora eu já tinha percebido."
"Preconceito."
"O quê?"
"Preconceito. Talvez seja uma metáfora pra preconceito."
"Pode ser. Li em algum lugar que o Morrissey é gay."
"Faz sentindo."
"Escuta, esta é a parte da música que mais gosto.
Que guitarras..."
"É lindo."
E
assim nós passávamos nossas tardes: ouvindo discos,
traduzindo as letras, tentando entender os significados de tantas
metáforas e poesias, até então um terreno
meio desconhecido para quem há poucos anos atrás
ainda brincava com os bonequinhos Playmobil. Enquanto trocávamos
de bandas, indo da poesia excessivamente romântica de
Morrissey aos gritos de protesto de Joe Strummer, eu já
não agüentava mais ver Julia tão vestida
e tão desnuda sem seus coturnos, afinal, quando você
tem quatorze anos, uma menina sem sapatos é o suficiente
para colocar seus hormônios para trabalharem, e, então,
olhava para o rádio-relógio na escrivaninha e
percebia que ainda restavam algumas horas da tarde. Impulsionado
pelos meus amigos roqueiros, esquecia meu medo estúpido
e abraçava com força Julia. Era hora dos exercícios.
Beijava sua boca daquele jeito desesperado que só um
adolescente sabe beijar e, lógico, começava minha
exploração por baixo de sua camiseta. Como meus
amigos que, provavelmente, estavam naquele momento em uma piscina,
eu mergulhava de cabeça na idéia de tocar e descobrir
e sentir cada vez mais o corpo de Julia.
Mas
ambos sabíamos que havia um limite.
"Pára,
João."
"Só mais um pouquinho."
"Teus pais já devem estar chegando."
"Droga."
"Não fica assim. Você sabe que ainda vai acontecer."
"Quando?"
"Não sei."
"Você nunca sabe."
"Ah, deixa de fazer manha, João."
"Tudo bem."
"Ei, vamos ouvir de novo teu disco novo dos Smiths?"
Assim,
mais uma das minhas e somente minhas tardes chegava ao fim.
Logo, meus pais estavam em casa, eu levava Julia até
a parada de ônibus, minha mãe preparava o jantar
e depois eu fazia meus trabalhos do colégio que deveriam
ser feitos muitas horas antes. Aquelas noites não eram,
claro, os melhores momentos de minha adolescência. Mas
era só eu pensar que o dia de amanhã sempre vem
acompanhado de uma tarde que tudo ficava bem novamente. Afinal,
tem vezes em que tudo que você precisa para ser feliz
é um bom disco de rock, uma namorada de meias brancas
e sete horas para aproveitar tudo isso.
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