O novo rock argentino
por Leonardo Vinhas
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24/09/2006

Com a tamanha "facilidade" com que temos acesso à música hoje (pelo menos, a reduzida parcela da população que dispõe de computador com conexão banda larga e horas ociosas para desfrutar a infinidade de arquivos mecanicamente baixados), ficou simples descobrir bandas interessantes no Congo, Sri Lanka ou Pindamonhangaba. A questão capciosa sobre o tema continua sendo: por quê? Por que perder o precioso tempo correndo atrás de algo que não seja o precioso pop anglófilo com o qual nós estamos, via de regra, acostumados desde cedo? O que importa tanto conhecer tanta música assim?

Para quem tem a música não como um objeto-fetiche e sim como paixão, a resposta é: importa muito. Com o mainstream nacional tão pobre, e com o cenário independente tão preso a vícios e maneirismos (ao menos, o cenário coberto pela imprensa especializada), é uma possibilidade de fugir da dieta rala que é empurrada a ouvidos, cérebros e corações famintos de algo que faça mais que servir de trilha sonora para casas noturnas badaladas pelo público universi(o)tário-classe-média, propagandas de TV ou novelas e seriados globais. E quem diria que algo de muito bom poderia vir de tão perto... logo ali do vizinho?

Se a Argentina é um país legal ou não, nem vamos discutir (muito menos entrar no tema da rivalidade sócio-futebolística), até porque seria uma discussão primária e infértil. Porém, a terra atualmente governada aos empurrões pelo proto-Perón do século XXI Nestor Kirchner está legando ao mundo coquetéis pop muito mais interessantes que seus eternos rivais... isso no mainstream!

O presente texto não se propõe a traçar um "mapa do melhor rock argentino", ou enaltecer as virtudes deles em detrimentos das de quaisquer outros. Primeiro porque se faz muita porcaria por lá também - basta conferir seu atual líder das paradas, Miranda!, uma cruza entre Pet Shop Boys, Bow Wow Wow e Kid Abelha Remix com letrinhas pseudo-sexuais, certamente uma das coisas mais irritantes do últimos tempos. Segundo porque tal mapeamento é impossível: a indústria cultural argentina é sólida e diversificada no que tange à música pop. Suas "cenas" se criam e se mantém sozinhas, em vez de serem inventadas pela imprensa. Há desde uma nova geração de tangueiros (que envolve jovens puristas e pasteurizadores eletrônicos) até incontáveis filhotes da cultura stoneana, fora um forte underground punk e emo (a praga chegou lá também). Há coisas inclassificáveis, chupações caradura de indie gringo, cumbia eletrificada, murga com guitarras... O que esse texto pretende é apenas relatar, de forma não exatamente imparcial, experiências sonoras que foram facilitadas pela vida na fronteira com o país vizinho. Uma matéria sobre essa tal "indústria" pode até pintar num futuro próximo, mas a prioridade aqui são as bandas.

E para começo de conversa, se suas referências de rock argentino ainda são Soda Stereo, Fito Paez e Charly Garcia, um recado: esqueça-os. O SS acabou e hoje é objeto de revivals que só fazem sentido para quem viveu o ápice comercial da banda (a "Sodamania"), Fito, fora a Herbert Vianna, só interessa a quem nasceu em solo portenho e tem mais de 30 anos e preguiça de ouvir coisas novas. Já Garcia é o que Raul Seixas seria caso tivesse sobrevivido aos seus excessos: um pateta excêntrico que se mantém na mídia graças a glórias passadas e escândalos recentes, produzindo nada de interessante.

Mas quem precisa desses tipos quando se têm os Babasõnicos? Já dissecados aqui no S&Y, o sexteto liderado pelo duende feioso Adrián Dárgelos ousou reciclar vários clichês do pop europeu para fazer algo surpreendentemente novo e universal. Sua busca pelo pop perfeito já chegou a diversos resultados frutíferos, um mais inesquecível que o outro, e sua combinação de provocação visual, arrogância calculada e sedução melódica chegou a um ponto onde qualquer resistência é inútil e adoração e embasbacamento são quase imediato.

Eles conseguem, por exemplo, juntar todos os lugares comuns do pop psicodélico para criar... um bolero! (Mareo, do disco Infame). Saíram de um indigesto coquetel surf rock / hip hop (a estréia Pasto, de 1992), para transitar entre vários gêneros repletos de sacanagens e referências macabras até chegar no heavy disco de Babasónica (1997) e no sacolejo pop clubber de Miami (1999), seus primeiros registros coesos e cativantes. A partir de Jessico (2001), declararam-se "fartos do rock argentino" e iniciaram sua jornada rumo ao pop perfeito, para poderem "competir de igual para igual com o U2".

Escorraçando quase todo o rock de seu país de origem e investindo numa produção inacreditavelmente apurada, lançaram Infame em 2003, onde as influências retrô e a química entre inspiração e empenho obsessivo geraram uns tantos hits inesquecíveis (Irresponsables, Curtis, Risa, Sin Mi Diablo, a magnífica Putita...) até chegar ao monumento à música que é Anoche (2005). A única banda que consegue encarnar - e viver - todas as contradições de ser rock sem necessariamente tocar rock, e ainda assim viver o espírito roqueiro de uma forma absurdamente não-caricata.

De seu trabalho ao longo dos anos, muitas bandas tiram inspiração, mas é um companheiro de geração que responde por outros grandes momentos pop: El Otro Yo, formado pelos irmãos Aldana, já foi muito badalado pela crítica brasileira em outros tempos, e não sem razão. Seu indie pop tem raízes facilmente identificáveis, mas seu tempero pessoal vai além do mero sotaque portenho. Ao longo de seus quase quinze anos de carreira, evoluíram de trio popzinho de poucos acordes e arranjos espertos para artesãos preocupados com detalhes e filigranas nas canções, sem perder a manha pop ou o ataque ao vivo, "ataque" esse que já foi até mesmo físico. No último festival Cosquín Siempre Rock, o líder Cristián Aldana teve que ser tirado do palco aos socos pela segurança, que queria impedi-lo de estourar o tempo da sua apresentação. O show só parou porque os seguranças estavam violentamente empenhados em seu trabalho. Rrrrrock!

E nesse espírito de clichês de rock, várias bandas bebem na fonte de Jagger & Richards, algo nada surpreendente num país que chama a si próprio de "pátria stone". Da primeira leva, que combinava estruturas dos Glimmer Twins com o rock de Los Redondos (mítica banda independente argentina, que conseguia pôr 100 mil pessoas para pogar aos som de seu clássico Jijiji), veio o tal rock barrial, com bandas como Los Piojos, Ratones Paranóicos, Viejas Locas, Divididos (autores de Que Ves?, que foi regravada pelo Tihuana) e La Renga. Embora populares, essas bandas nada mais eram (são) que pastiche rocker com sotaque portenho, que, embora tenha influenciado bandas medíocres que hoje estampam o peito da molecada em camisetas (Jóvenes Pordioseros, Intoxicados e outras), também serviram de inspiração para a mais contraditória das bandas argentinas, os Callejeros.

Também já resenhado no S&Y, o sexteto que esteve no centro da tragédia de Cromañon começou como uma versão punkificada do rock stoneano e atingiu um pique de popularidade quase religioso com seu segundo álbum, Presión. Seguidos de pertos pelos fãs, que viajavam pelo país acompanhando as turnês, pareciam estar prontos para superar Los Redondos quando aconteceu o 30-D. À parte as extensas considerações sobre o caso, pode-se dizer que a banda lembra a melhor fase do Barão Vermelho (mas bem melhor que a banda de Frejat). Seu rock airado, ingênuo e suingado tem um apelo que não pode ser explicado em palavras, até porque é sustentado por modestos méritos artísticos. Sua convocatória está naquele fator altamente subjetivo que faz com que uma canção se prenda a você e não o abandone mais. A resposta para o poder dos Callejeros não está na dupla de guitarras simples, no sax simultaneamente discreto e onipresente ou no batuque candombero de seu som. Talvez esteja na voz singular de Patrício Fontanet, talvez nas letras impregnadas de misticismo anti-clerical e rebeldia adolescente. Talvez seja algo mais. Certamente, em nada que cabe em rotulações verbais.

Descendentes dos Callejeros, El Bordo é uma das mais recentes promessas de cepa roqueira. Aqui a promessa é crível porque eles são uma banda intrinsecamente pop, onde sua melodia é arejada o suficiente para permitir ventos roqueiros sem que isso soe como viadagem emo ou formulazinha fácil. Ainda são inexperientes, mas podem vir a ser o que seus "padrinhos" não puderam, uma vez que foram vitimados pela tragédia. É esperar para ver.

De nova geração, ainda que não tão nova assim, tem muita gente com hitzinhos interessantes que não escondem trabalhos geralmente ordinários, como Emmanuel Horvilleur, Lucas Martí e Kapanga (uma espécie de Charlie Brown local, mais famosos por preparar um certo "iogurte de cannabis" que por sua música). A exceção à essa galera mais-ou-menos é o Arbol, outro que começou como um sub-Charlie Brown e hoje, depois do encontro com o produtor Gustavo Santaolalla (ganhador do Oscar pela canção de Brokeback Mountain, descobridor do Café Tacuba e Molotov, produtor de Juanes - versão masculina da Shakira - e mentor do Bajofondo Tango Club), faz uma mescla de melodias infantilóides (à Pato Fu circa Gol de Quem?), chamamé e power pop. Seu disco Guau! (2004) estourou até junto a fãs de Miranda!, tiozinhos ranzinzas e crianças em idade pré-escolar. Também, uma banda que consegue compor uma canção cujo refrão é apenas o nome Osvaldo repetido várias vezes (a hilária Prejuicios) e captar o espírito infantil de vontades não-realizadas sem soar piegas (Pequenos Suemos) merece aplausos e reconhecimento.

O mesmo Santaolalla usou suas mãos de Midas (e lábia demoniacamente eficaz) para convencer a Bersuit Vergarabat a abandonar o arremedo de rock que cometiam para assumir de vez suas raízes de ritmos folclóricos temperados com intensidade rock, escatologia machista e coração cafona. O bizarro Libertinaje marcou a guinada que explodiria com La Argentinidad Al Palo, disco duplo polêmico, grotesco e estranho, que entretanto trazia gemas como Ades Tiempo, Porno Star, La Soledad e a controversa faixa-título. Testosterona (2005) resolveu a equação, graças à influência de Andrés Calamaro (um ser que parece uma aberração que mistura Guilherme Arantes, Wander Wildner, Wando e Flávio Venturini numa persona junkie), que saiu de seu exílio cocainômano para efetuar um bem-sucedido retorno aos palcos, acompanhado da BV. Os excessos ficaram nas letras, e até o nome foi reduzido para Bersuit. A introspecção passou a conviver com o batuque, sugerindo uma espécie de Café Tacuba portenho. Portanto, se você odeia a banda mexicana, fique avisado para nem chegar perto.

A lista poderia seguir, contemplando o punk veterano do Attaque 77 (que gravou Roberto Carlos, Erasure, The Who e Legião Urbana em versões divertidamente estranhas em seu álbum Otras Canciones), que mesmo sem o vigor de antes ainda dá no couro, até o pop cool e eletrônico do Entre Rios, que sugere algo com uma Cat Power latina com balanço praieiro (na dúvida, confira o hit Hoy No). Mas me agrada pensar que aqui tem um pequeno convite para que os preconceitos sejam deixados de lado. Ainda não nos acostumamos a ouvir rock em espanhol, e do pop, esperamos apenas o folclórico ou o pasteurizado. Mas os lugares-comuns estão lotados de gente como Juanes, Shakira, Luis Miguel e Jennifer Lopez, para não falar do reggaeton. Tem coisas muito mais interessantes nascendo além de nossas fronteiras, mais desafiadoras e com potencial de ocupar algum momento estratégico da sua vida ou da sua diversão. Claro que também sobra lixo. Mas como canta Dárgelos em "Risa": "la alegria llegó / y sé que no dura para siempre". Aproveitemos.

EL BAILE ARGENTO

A seleção de canções que se segue não tem a pretensão de ser "o melhor do rock argentino" ou algo do tipo. É só uma lista (e todas as listas são parciais e passíveis de discussão) com as favoritas da casa. Corra atrás das bandas e confirme a escalação... ou faça sua própria.

Yo Me Sentaria a Tu Mesa - Fabulosos Cadillacs
Chickanoréxica - Árbol
Risa - Babasónicos
La Soledad - Bersuit
Silbando Una Ilusión - El Bordo
Te Quiero Igual - Andrés Calamaro
Una Nueva Noche Fría - Callejeros
La Colina de La Vida - Attaque 77
Profundidad - El Otro Yo
Carismático - Babasónicos
Hoy No - Entre Ríos
Esperando El Impacto - Bersuit
Nunca Quise - Intoxicados
Un Minuto - León Gieco e Pato Fontanet
Suerte - Arbol
Jijiji - Los Redondos
La Ciudad de la Furia - Soda Stereo com Andrea Echeverry (Aterciopelados)

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"Anoche", do Babasónicos, por Leonardo Vinhas
"Señales", dos Callejeros, por Leonardo Vinhas
"Testosterona", do Bersuit, por Leonardo Vinhas