"Senãles", dos Callejeros
por Leonardo Vinhas
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02/08/2006

Como se mede o valor de um disco? Ou não se mede, já que ele é apenas uma coleção de canções? Mas não há, de fato, canções que salvam ou vidas? Ou as perdem? Pode parecer um dilema infrutífero e auto-indulgente, um típico exercício de filosofia inaplicável e masturbatória, mas é algo bem plausível, quase imprescindível, quando se pensa em Señales, o recém-lançado álbum dos Callejeros.

Para quem não conhece, o sexteto era o maior fenômeno do rock argentino desde Patrício Rey Y Sus Redonditos de Ricota (o nome é sério, pode acreditar). Los Redondos, como eram conhecidos, pelejaram oito anos (de 1976 a 1984) no underground portenho até conseguir gravar seu primeiro disco, a partir do qual sua carreira literalmente só fez crescer: seus shows chegavam a juntar quase uma centena de milhares de pessoas antes do seu fim, no início desses anos 00. Jijiji, seu maior hit, põe até seguranças para pogar em casas noturnas, para se ter uma idéia do nível de adoração.

Corte para 2004: a fama dos Callejeros estava no nível de adoração do maior fenômeno do rock argento. Fãs adolescentes viajavam junto com a banda, numa versão teen e latino-americana dos deadheads, enquanto fãs mais velhos eram seduzidos pela aura mística da banda, embalada num vigor juvenil que comunica aquele tesão de estar vivo.

O som dos Callejeros - um cruzamento de Stones circa 70, Creedence, Carlos Gardel e pop argento - encontrava na pátria stoner (como os roqueiros argentinos se referem ao seu país, e não como referência ao rock de Fu Manchu e Queens of The Stone Age) um berço esplêndido para uma história de sucesso irrefreável. Isso tudo até o fatídico 30-D, 30 de dezembro de 2004, quando 194 pessoas morreram durante um show da banda na boate República Cromañon, graças a um incêndio provocado por fogos de artifício disparados da platéia.

O cerco que se fez à banda, desde pais das vítimas ameaçando-os de morte até a pressão de colegas de profissão para que assumam sua parte de culpa na tragédia, dividiu a história do rock argentino ao meio, e colocou o grupo de Patrício "Pato" Fontanet numa situação agonizante. Com medo de se apresentar, enfrentando julgamento e tendo lidar com a dor da perda (Fontanet perdeu a namorada, o baterista Edu Vasquez perdeu a mãe, e também o pai do guitarrista Maxi Djerfy se foi; o baixista Cristián Torrejón chegou a ter queimaduras graves em quase metade de seu corpo; vários parentes e amigos foram hospitalizados, muitos em estado grave e alguns carregarão seqüelas físicas para o resto de suas vidas), mas com a necessidade de expor sua visão dos fatos e buscar expiação pública e também pessoal.

Depois de muitas pendengas judiciais e muitas, mas muita polêmica, Señales viu a luz do dia, trazendo um cover, duas canções que estavam prontas havia muito tempo e nove faixas compostas pós-Cromañon. E aí? Señales é, inegavelmente, o trabalho mais bem resolvido da banda, o primeiro que dá para ouvir sem pular faixas. Rocanroles Sin Destino (2004), o trabalho anterior, teria chegado lá, se não desandasse lá pela sétima ou oitava faixa. Sed (2001) era muito cru, ainda que com um bem-vindo pique punk, e Presión (2003) podia ter boas faixas (entre elas o megahit Una Nueva Noche Fria), mas não segurava a onda. Juntando os três, teríamos um bom disco, quase parecido com esse recente.

"Quase" porque Señales traz mais acentuado o costado gardeliano da banda. Claro, os rocks a la Stones estão lá (Puede, Sin Paciencia, Creo, Hoy), bem como também o tipo de reggae fajuto que as bandas novas argentinas adoram fazer (Sueño, para alegrar os poucos universitários bichos-grilos que sobraram). Mas o sax sempre parcimonioso de Juan Carbone aqui dita toda a dinâmica das composições, resultando em "tango-rock" (Limites) e até tango mesmo (Desencuentros, versão de uma velharia de letra sentida e desesperançada). Junto com ele, o batuque criollo de Edu Vasquez dão a banda o caráter que os tiram da vala comum do rock barrial (imitações de Jagger & Richards com letras ocas, trilha sonora oficial da geração pós-Duhalde). Além, é claro, da voz de Pato (trocadilho involuntário).

Fontanet é um cantor raro, que combina raiva e sutileza na mesma medida. Os primeiros discos traziam sua voz com aquele tom de anjo desiludido, mas ainda com fé. Depois de tudo que ocorreu, essa inocência passa longe aqui, mas a confusão de alguém que sabe que errou (feio) e que se descobriu vazio, mas ao mesmo tempo quer conquistar sua redenção (a preços questionáveis, talvez?), está em quase todo verso cantado nas doze faixas do álbum, em especial na incomodamente fatalista faixa-título.

Essas virtudes quase caem por terra ao se constatar a auto-indulgência do disco. É como se o misticismo cristão - que antes rendera a maravilhosa Rebelde, Agitador y Revolucionário, de 2004 - tivesse se impregnado neles ao ponto do messianismo. A postura de "mártires do rock" e a confiança de que serão perdoados (pelos céus ou pelo acaso) resvala em uma perigosa e repulsiva auto-indulgência. O oportunismo comercial - lançar o disco antes do julgamento oficial, ao proibitivo preço de 45 pesos, enquanto a média é 23 (alegando como motivo a exagerada arte de capa, até porque consideram o artista que a fez como membro da banda, honraria que estendem ao seu empresário...) só pinta o quadro com cores mais feias.

Enfim, como avaliar um disco, se ele é só música? O problema de Señales está no "só". Quando é música, erra pouco (9 de Julio é uma das raras altamente dispensáveis) e acerta muito (o rock vaudeville candombero de Frente Al Rio, dedicado à falecida noiva de Fontanet, é desde já uma das melhores faixas do ano). Saindo desse campo, resta bem pouco o que louvar. Poderíamos deixar de lado e só ouvir o som. Mas há 194 corpos que não nos deixam pensar assim. Não mesmo.

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