O Rock Argentino Depois Do 30-D
Ou: O Rock Argentino Depois De Cromañon
por Leonardo Vinhas
Blog
Foto: Wikepedia - Familiares acendem velas em protesto público
15/03/2006

Buenos Aires, 30 de dezembro de 2004. Na boate República Cromañon, a banda Callejeros se prepara para o terceiro e último de seus shows comemorativos. Nos dias 28 e 29, haviam tocado, respectivamente, a íntegra de dois álbuns, Sed (1997) e Presión (1990), e no dia 30 seria a vez da execução de todo o repertório de Rocanroles Sin Destino (2004), disco que deu à banda de garotos suburbanos, que misturavam clichês de Stones e Creedence com toques gardelianos, uma explosão de popularidade só vista antes com Patrício Rey y Sus Redonditos, uma das maiores lendas do rock argento. 2004 havia sido seu melhor ano e eles queriam encerra-lo com três apresentações consagradoras.

Mal começara a primeira música do show e um festival de fogos de artifícios, principalmente "bengalas" (rojões de três tiros), se faz presente, de modo a deixar o palco invisível atrás da cortina de fumaça. Por mais que fogos em um recinto fechado pareçam incabíveis, a pirotecnia era uma prática comum na Argentina, tanto em partidas de futebol como em shows de rock. Era - até o dia 30 de dezembro de 2004.

Na terceira música, um rojão atingiu um forro que supostamente servia para "isolamento acústico" no teto, incendiando-o. O fogo se alastrou pela casa. O público presente correu para as saídas de emergência, e encontrou várias das portas trancadas. Como mais duas mil pessoas ficaram do lado de fora e tentavam entrar no local, Omar Chabán, dono da casa, decidiu colocar cadeados nas portas para impedir a invasão. Até que fossem encontradas as duas únicas portas abertas, dezenas de pessoas perderam suas vidas nas chamas, na fumaça ou mesmo pisoteadas pelos desesperados que tentavam deixar o local. Detalhe: a boate comportava, no máximo, 2.800 pessoas. Naquela noite, mais de 4 mil pessoas se apertavam no República Cromañon.

Alguns dias depois, o saldo final apontava: 194 mortos e quase 1.000 feridos no "30-D', a data criou um "antes" e um "depois" para o rock argentino.

A intensidade do rock portenho

A Argentina é o país sul-americano em que o rock arde com mais intensidade. É ali que garotos e garotas estão (ou parecem estar) sempre prontos para ir a um show e pogar; onde camisetas dos Ramones são compradas em feirinhas de artesanatos; onde a paixão pela música e pelo futebol não raramente leva a atitudes aguerridas e, mais ainda, insensatas.

A "tragédia de Cromañon", como ficou conhecido o episódio, adquiriu proporções jamais vistas na história da música popular mundial. Não só pela quantidade de vítimas fatais, mas também pelo levante político que ela gerou. Logo na semana seguinte à tragédia, Omar Chabán estava preso sob a acusação de homicídio culposo. O secretário de Justiça e Segurança portenho, Juan Martín Sansone, dois de seus funcionários, mais a subsecretária de Controle Comunitária Fabiana Fiszbin, renunciam a seus cargos devido às pressões populares. O chefe de governo portenho, Aníbal Ibarra, é o próximo a entrar na lista de acusados, devido à sua suposta negligência e tolerância à corrupção.

De fato, a boate Cromañon tinha suas permissões, alvarás e exames de segurança vencidos desde novembro de 2004. E o fato de haver ocorrido um incêndio, ainda que sem mortes, em 1º de maio de 2004, só fez evidenciar o descaso das autoridades para com o controle de bares e casas noturnas.

Posteriormente, os Callejeros também seriam implicados na acusação. Apesar de terem perdidos vários entes queridos (parentes, amigos e namoradas estavam na ala VIP e encontraram maior dificuldade para sair - os que não morreram ficaram gravemente feridos), foram considerados irresponsáveis por fomentarem o uso de fogos de artifícios, acusação comprovada por diversos vídeos coletados de shows anteriores, e por tocarem em um lugar que - segundo a acusação - sabiam não estar habilitado para funcionar.

Nesse período de pouco mais de um ano desde a tragédia, o cenário do rock argentino mudou radicalmente. Bares e casas noturnas fecharam. Não se entra mais em um show - qualquer show - sem antes passar por uma revista ostensiva, muitas vezes paranóica. No tradicional festival Gesell Rock deste ano, a polícia chegou a revistar até mesmo as carteiras dos espectadores, em busca de bombinhas ou coisas do tipo. Pais proíbem os filhos de sair à noite com muito mais freqüência que antes. E o rock se torna ferramenta política por vias indesejadas e pouco benéficas.

Todo o processo movido contra Aníbal Ibarra levou mais em consideração o oportunismo de seus adversários que seu real envolvimento no ocorrido. É inegável que a fiscalização do governo se mostrou incompetente - ainda assim, a maior responsabilidade cai sobre os responsáveis sobre as áreas competentes. Seria como destituir um presidente porque um gabinete, dentre vários outros - não cumpriu sua função. E foi exatamente isso que aconteceu. No dia 09 de março de 2006, Ibarra foi finalmente destituído de seu cargo e ainda pode ter ainda seus direitos políticos cassados. Chaban, depois de muitas idas e vindas à cadeia, está solto e vive cercado de seguranças, devido às ameaças de morte que recebeu dos pais das vítimas.

E quanto aos Callejeros? Ameaçados de morte ("se subirem, os matamos aí mesmo", disse um pai de uma vítima por telefone ao empresário da banda), não voltaram mais aos palcos desde então. A casa do baixista Cristian Torrejón, local de ensaios da banda, chegou a ser alvejada por um disparo na calada da noite. O vocalista Pato Fontanet foi convidado por León Gieco (uma espécie de "Bob Dylan argentino") para gravar uma canção sobre o ocorrido, a bela Um Minuto (dos dilacerantes versos "a vida desenhou um sorriso na minha / e em um minuto triste o apagou como se fosse nada"), mas protestos dos pais das vítimas fizeram com que o caudilho, pela primeira vez, voltasse atrás em uma polêmica e retirasse a faixa de seu álbum Por Favor, Perdón y Gracías (mas ele a mantém no encerramento de seus shows). A Gieco somam-se outros artistas, que defendem a ausência de culpabilidade da banda. Do outro lado, Gustavo Cordera, polêmico líder da Bersuit Vergarabat, puxa o coro dos músicos que consideram os Callejeros irresponsáveis e levianos, e que certamente têm responsabilidade pelo ocorrido.

A banda prometeu voltar aos palcos em 08 de abril, em Córdoba. Trinta mil ingressos foram postos à venda (para um local onde cabem quase 50 mil), e um grande esquema de segurança foi montado. Pode ser o começo de uma nova história, esperançosamente menos triste, para o rock argento.

Seqüelas

Por enquanto, as seqüelas sobressaem, e o tumulto na entrada do show dos Rolling Stones (22 feridos e 125 pessoas presas na segunda noite de apresentação da banda no estádio do River Plate, em fevereiro) mostra a principal lição: prendam Ibarra, Chaban, Callejeros, quem quer que seja, mas nada irá resolver se não houver uma mudança na mentalidade "hooligan" dos rockers argentinos. Assim como nos estádios de futebol na Inglaterra ou nos bailes de Carnaval em clubes no Brasil, é raro encontrar quem não esteja predisposto a uma forma muito estranha de "festejar" em um show na Argentina.

A reação dos familiares das vítimas também chama a atenção com ameaças criminosas de morte e atentados terroristas, mostrando que a dor não encontra solução fácil. Isso fica emblemático ao passar em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino: nas amuradas, o grafite "Justicia Por Los Pibes de Cromañon - Basta de Impunidad". No chão, pintado: "Muerte a Ibarra!". Justiça?

Até 8 de abril, muitas perguntas ficaram sem resposta.
Dentre elas: terá sido Rocanroles Sin Destino o réquiem do rock argento?


Links
Portal Terra Argentina - Cronologia dos Fatos

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