Faixa a Faixa
"Anoche", do Babasónicos
por Leonardo Vinhas
Blog
01/08/2006

Gostar de um disco pode ser um processo lento, de superar preconceitos ou desânimo inicial, passar por cima de expectativas e aprender a degustar, aos poucos, o que se pensara ser um quitute mal preparado. Pode ser também uma paixão arrebatadora, dessas que te ocupam como uma obsessão e se extinguem conforme se consomem. Calha que esse Anoche, dos argentinos Babasónicos, é um raríssimo misto de ambos os casos supracitados, onde a paixão devoradora se arrefece para se tornar um objeto de apreciação e deleite sem qualquer prazo de validade.

Lançado em 2005, o oitavo álbum desses bonairenses fecha uma trilogia que se iniciou com Jessico (2003) e seguiu com Infame (2004), na qual eles abandonaram suas combinações de hard rock, psicodelia drogadaça, surf rock e derivados shoegazers para lançarem todos esses ingredientes e mais outros tantos num caleidoscópio de clichês que permitisse, a partir de distintos olhares, lograr aqueles momentos únicos de perfeição em um formato canção de menos de três minutos.

Chegaram perto com Los Calientes (exercício pop lascivo e dançante à Madchester), Fizz e El Loco (de Jessico) e o conseguiram com Curtis, Putita e Risa (de Infame). Porém, fizeram um Greatest Hits de faixas inéditas com esse Anoche.

Não se trata, contudo, do velho clichê jornalístico que já foi atribuído a discos menos imaginativos (ainda que bons) de Foo Fighters, Green Day e outros power poppers de qualidade oscilante. Adrián "Dárgelos" Rodriguez - um duende arrogante que assume os postos de vocalista, letrista, líder e encrenqueiro-mor da banda - declarou que esse álbum bem poderia ter sido batizado de The Rise & Fall Of Babasónicos, já que registra o momento máximo de uma banda que encara o espírito e o way of life roqueiro ao extremo, das extensas turnês de ônibus (com direito a toda mitologia de devassidão e permissividade) ao consumo assumido de drogas de acordo com dosagens para "fins específicos" (Dárgelos: "já não há mais roqueiros drogados. Somente nós").

Uma banda colhuda o suficiente para desprezar todo o cenário e mitologia rocker local e dizer que quer competir com o U2, e não com o rock argentino. Uma banda que saiu do underground portenho para ser o principal expoente (e "produto de exportação") do rock latino desde que o Soda Stereo conquistou Américas do Sul e Central, México e Espanha. Uma banda que, em quinze anos de carreira, lançou oito discos de inéditas, quatro de remixes (por seu próprio selo!) e nenhum ao vivo ou coletânea.

É claro que sua busca pelo tal "pop perfeito" podia ter resultado infrutífera. As canções de Anoche raramente passam de três minutos e meio, e a cara-de-pau de reciclar ou inventar clichês evidencia que somente uma banda ciente de suas contradições poderia encarar essa tarefa.

É certo também que o pop perfeito já existe há mais de 40 anos e atende pelo nome de In My Life, de uns certos Beatles aí. Mas há quem ouça esse disco e possa dizer: "os Babasónicos são meus Beatles". É sério. Daqui para baixo, ou vem a decadência ou uma revolução musical, mas é melhor deixar o futuro para os desocupados. A nós, resta o presente. Resta Anoche.

Así Se Habla
Conclamação à violência através das guitarras e cozinha batendo pilão, cowbells intercalados entre os riffs e Dárgelos, entre cínico e puto, intimando: "Será tua educação cristã que vê fantasmas em toda a parte? / Será sua aversão social que te isola dos bares? / Vamos, quero uma explicação".

Carismático / Yegua / Un Flash
A quintessência do pó babasónico em uma mini-epopéia de três faixas que se fundem e não totalizam 10 minutos. Em sua junção, revelam uma síntese decrescente em termos musicais (da perfeição cristalina de Carismático à simplicidade de Un Flash) e crescente em termos líricos, cujos refrões progridem até restar o mínimo de palavras para seduzir o ouvinte. Carismático é o primeiro "movimento", com uma golpeante linha de baixo pontuada pelas melhores invencionices do tecladista Diego Tuñon, cedendo seu estribilho para o começo de Yegua, uma evolução da rock song arquetípica, terminando nas tramas de guitarras e vozes de Un Flash. As imagens mais poeticamente ricas encontram seu potencial de aceitação nos refrões mais simples, que vão se aperfeiçoando a cada canção até atingirem uma desconcertante exatidão sintetizada: "tenho que aprender a fingir mais e não mostrar o que sinto", do primeiro "movimento" encontra depuração em "algumas noites sou fácil / não acato limites" até a perfeição da derradeiro frase: "só eu e você".

Pobre Duende
Irritado com as cobranças dos fãs antigos, que atacavam a "fase pop" da banda, e com a superficialidade dos fãs de última hora, Dárgelos compôs uma fábula folk de um minuto e vinte segundos que execra a ambos os grupos e profetiza que o rock vai ser destruído por seus próprios admiradores supostos: "ustedes lo querían / ustedes lo pedían / ahí lo tienes". De arrepiar.

Solita
Canção hard e acelerada, onde um incrédulo garoto celebra sua inacreditável sorte de sair com um monumento feminino. A voz aérea, apaixonada, quase espacial em alguns momentos, contrasta com a aceleração desembestada das guitarras, brevemente freadas por pauladas de baixo e bateria.

Puesto
Canção de amor de discothéque psicodélica, cheia de efeitinhos para embalar a letra singela e o clima de devoção delirante de um camarada em estado lisérgico e outra deusa do sexo oposto.

Falsário
Quase uma dance track de vocais travados e brincadeiras com o andamento, reforçando os estados alterados de consciência quase ocultos na letra ("Já me conhece / use-me ao avesso / use-me para experimentar"). Uma faixa "segunda divisão" dentre as pérolas do disco, nem por isso uma a ser desconsiderada.

Capricho
Uma das "baladas pastorais" que o guitarrista Mariano Dominguez adora compor, onde ele e Diego Rodriguez (guitarrista-base e também percussionista e vocalista de apoio) criam ventos bucólicos para que Dárgelos entoe a única letra despojada do disco. Uma love song de primavera, para embalar sonhos das moças e insistências dos moços.

El Colmo
Balada disco com clima de boogie contemplativo, encapsulando o sonho delirante por novos ares e anonimato ("por isso, canção, me leve para longe / onde ninguém se lembre de mim / quero ser o murmúrio de alguma cidade que não saiba quem sou"). Mas no fim, o solitário reconhece: "trocaria tudo pelo dom que faz as mulheres rirem". Refrão poderosíssimo, mas até aí, qual das outras não têm?

Ciegos Por El Diezmo
Riff "pára-e-começa" e guitarras em alto e bom som raspam o tacho (nem tão no tacho assim) de outro clichê: o do hard rock. Passagens para bater a cabeça, "bridge" na medida para levar os braços ao alto com o punho cerrado, letra cheias de palavras de ordem e a certeza de que isso pode ser em espanhol melhor que em inglês. Ilusão poderosa e contagiante.

Examénes
Piano, detalhes nos arranjos de guitarra e um pedido quase suplicante: "não brinque assim comigo, moça, que eu sou simples". Uma canção beatle sem a influência do quarteto de Liverpool, quem sabe o protótipo para a pop song dos anos 00.

Muñeco
Entre embalos rocker e balada estradeira, algo evocativa, tem aquela cara de encerramento do álbum, mas ainda resta...

Luces
As guitarras, a voz, baixo, tudo falando muito alto, para que Dárgelos e seus amigos reexaminem a condição do rock atual e decretem sua morte: "sumam-se caretas / calem-se profetas / ouçam um cometa gritar / arrogante rock"". Fim. Será mesmo?


Site Oficial
http://www.babasonicos.com