Entrevista com Wellington Dias
por Leonardo Vinhas
Foto: Fabricio Brizon / Divulgação
lvinhas1@yahoo.com.br
26/05/2005

A uma distância de menos de 100 quilômetros de São Paulo começa o Vale do Paraíba, região de clima mais ou menos aprazível (as quatro estações existem, ainda que em cidades diferentes) compreendida entre a Serra da Mantiqueira, Serra do Mar e Serra da Bocaina. De Jacareí a Queluz, pode-se encontrar todo tipo de empreitada comercial: extração mineral, as mais variadas manufaturas, artesanato tradicional, artesanato pra-gringo-ver, turismo social, turismo ecológico, prestadoras de serviço minúsculas ou multinacionais, etc. Se isso não representa emprego, é um dos fatores que garante a diversidade de caracteres, tribos e histórias que se encontra em seus 46 municípios.

E é claro que tinha que surgir música de um lugar assim! Não há onde a música não manifeste seu desejo de existir, mas será que os valeparaibanos têm algo para dignificar essa existência. Há sete anos Wellington Dias se encarrega de demonstrar as possibilidades disso acontecer. No comando do selo-zine Gramophone Multimídia, ele vem documentando a maioria dos eventos independentes da região, sem se preocupar muito em enfocar um estilo específico, embora o rock assuma o papel principal. Também já faz certo tempo que ele deixou de ser espectador-registrador para assumir o papel de organizador. Já encarou shows e festas que transitaram entre a completa roubada financeira e o mais indelével prazer pessoal.

Wellington Dias pode ser um cara sonhador, mas está longe do mito quixotesco. Em 2001, bancou a coletânea Gramophone Multimídia vol. 1, com 21 bandas da região, muitas em seu único registro em CD. Constavam do CD ainda “estrangeiros” como Leela (RJ), La Carne (SP-capital) e Radical Sem Dó (DF), mas o motivo principal da bolachina vir ao mundo foi mesmo colocar as bandas locais nos CDs players do povão - custava míseros R$ 6,00.

Mais um documento histórico que um bom disco, a coletânea atingiu seu objetivo. Nesse ínterim de quatro anos, as cenas das cidades tiveram altos e baixos, mas as bandas (principalmente as da nova geração) se profissionalizaram (umas mais, outras menos), os espaços para shows cresceram e agora vem ao mundo o segundo volume, agora duplo (!) e muito recomendável. A resenha dele está logo após essa entrevista que você começa a ler agora.

Como surgiu o projeto da coletânea Gramophone vol. 1?
Foi meio que sem muitos planos, conforme o site foi completando anos, fui organizando festas comemorando o aniversário do mesmo. Quando era para festejar os três anos de existência, resolvi, ao invés de investir na festa, investir no CD... Foi bem assim mesmo! Sem preocupações com venda, propaganda e tais! E acabou que foi muito legal, super-divulgado e durante bom tempo (até atualmente ainda acontece), a musica da banda que esta na coletânea é a mais conhecida do publico. Coincidência ou não, isso me emociona sempre que assisto a um show e vejo isso acontecer, como foi o exemplo do Leela no Hocus Pocus (nota: bar e estúdio de São José dos Campos).

Você incluiu um CD só de covers no segundo volume da coletânea, recém-lançado. Por que, se é tão importante para as bandas firmarem seu caráter autoral? Você também não teme uma ação por parte dos órgãos de proteção ao direito autoral?
A inclusão do CD com versões foi para dar um panorama do que vem influenciando as bandas. A idéia surgiu após ouvir algumas versões bem interessantes feitas em shows. Algumas bandas entenderam bem a idéia, fazendo uma "versão" realmente de alguma banda, colocando toda a sua criatividade para recriar algo muitas vezes clássico! Quanto à proteção do direito autoral, o risco existe, mas a idéia é uma recriação da música, colocando algo de sua personalidade em um som existente. E como o CD é distribuído por vias alternativas, e praticamente a preço de custo, dificilmente isso pode vir a acarretar algum tipo de problema.

Qual foi seu critério para selecionar as bandas das coletâneas?
Chamei bandas que já haviam saído no e-zine. Não houve nenhum outro critério além deste, tanto que se pode ouvir na mesma seqüência desde bandas que na época estavam com menos de 03 meses de existência até bandas com mais de 10 anos, nos mais variados estilos. Como é o próprio site: uma enorme e variada "colcha de retalhos".

A repercussão da coletânea 2 está indo de acordo com suas expectativas?
Como é de se esperar com projetos do gênero, em principio o disco superou as expectativas, mas atualmente está com uma saída normal, sem grandes vendagens, mas sendo distribuído aos poucos de mão em mão. E não tenho do que reclamar, até porque a intenção não é almejar lucros com sua venda, e sim a difusão do e-zine e das bandas participantes.

Imagino que as coletâneas não sejam empreitadas das mais lucrativas. Por que fazê-las, então?
Sabe aquele prazer de estar fazendo alguma coisa? É isso! Retorno financeiro nunca foi o que procuro com os projetos da Gramophone; seja nos eventos que organizo, nos apoios, lançamentos e tudo que envolve o site. Lógico que tudo isso divulga bastante o site e cria laços de amizades que não tem preço... Por isso faço o que faço, incluindo a coletânea.

Qual é a maior dificuldade que você vê para organizar shows no Vale do Paraiba?
Para mim, a maior dificuldade é a falta de tempo e de locais que abracem o projeto como quero que ocorra. Sei que quem tem uma casa noturna depende de lucros para a subsistência, mas acho que para eventos esporádicos estes lugares poderiam abnegar um pouco do lucro a favor da causa.

Todo mundo aqui tem a falácia do "é difícil", mas a Gramophone está na área faz anos. Qual o segredo da longevidade do site/selo/promotor de eventos?
Não vou dizer que é fácil! O Gramophone está na área há quase sete anos de maneira simples, mas da maneira mais honesta possível Não possuo conhecimento e nem tempo disponível para incrementá-lo. Acho que o segredo esta na total falta de compromissos com ninguém, nem mesmo comigo! Não tenho que fazê-lo se tornar rentável, faço pelo prazer de fazê-lo. Se quero colocar algo diferente do corriqueiro faço sem ter que submeter à idéia a ninguém, pois faço tudo sozinho... Acho que é mais ou menos por ai, não visar lucros e ser o mais honesto possível, se não agradar a todo mundo paciência! Agrado a mim, aos poucos o pessoal percebe por onde ando e por quais motivos e tudo se acerta!

Estar em SP (Wellington deixou sua terra natal há um mês) não vai diminuir o ritmo dos trabalhos? Ou - pelo contrário - vai ampliar o leque de atuação da Gramophone?
A minha mudança para São Paulo foi estritamente profissional (para quem não sabe o Gramophone não é fonte de renda), precisava melhorá-la. Não houve um abandono da região, pois estou retornando todos os fins de semana - na verdade, tenho tido bastante ajuda de um pessoal que abraçou a idéia do Gramophone e na maior boa vontade tem feito coberturas de shows em que não posso estar presente, fato esse que veio a ampliar a atuação do e-zine. Essas pessoas são a Paty Mory de São Paulo, o Fabricio Brizon de Taubaté, e Adriana, de Ribeirão Preto.

Como você vê a cena valeparaibana, em termos de banda e de público?
A cena no vale é muito boa, temos grandes bandas, zines, sites, selos... Falta uma certa freqüência no que se faz; é muito cíclico: por vezes melhora aqui, por vezes melhora ali... O dia em que resolvermos andar numa única trilha sem tentar empurrar o outro do caminho provavelmente teremos a maior cena no Brasil. Pena que cada vez mais vejo que tudo isso que imagino um dia se acertar seja totalmente onírico e estamos meio que fadados aos ciclos regionais ditados pela moda, por interesses e coisas assim. Público? Ele existe, mas ainda esta imaturo demais perante o porte do que está sendo produzido na região, é um dos maiores pilares de toda a inconstância na cena. Acho que falta personalidade ao publico em geral. Sobre bandas, apesar de existirem bandas muito boas, também elas “ajudam” bastante no que citei anteriormente.

Quais são as perspectivas para um futuro próximo aqui no Vale? Quem você destacaria?
Muito difícil essa questão. Destaques existem, mas a longevidade dos mesmos é que anda deixando a desejar... Uma banda a qual eu destacaria com mérito é a The Vain, de Taubaté. O pessoal tem princípios e é muito profissional, traçando metas e sempre procurando outras maiores após conquistarem as primeiras! Admiro muito a garra daqueles moleques! Existem muitas bandas boas e promissoras em diversos estilos pela região, mas para não ficar citando diversas; acho que meu top atualmente está sendo o The Vain, com sua postura, profissionalismo e principalmente musicalidade que dia a dia vem progredindo.

O que é a Gramophone para você: um meio de vida, um ganha-pão, uma diversão, um sonho?
Ou nada disso?

Nada disso! É uma válvula de escape! É por meio da Gramophone que consigo chegar o mais perto de tudo que vejo como perfeito, na certeza de que é um grande sonho. É onde esqueço do dia ruim de trabalho que tive na fábrica, onde esqueço as diferenças sociais existentes ao nosso redor (não precisa querer olhar o mundo todo). É fazendo o Gramophone, da maneira que faço, que chego o mais perto da anarquia, que maravilha se pudéssemos viver 24 horas assim! Mas infelizmente não da pra sonhar muito numa guerra capitalista devastadora como a que a gente vive. Enquanto puder tirar minha fonte de renda do meu trabalho como projetista, sem precisar fazer o e-zine virar grana, ele existirá; quando isso não for mais possível podem ter a certeza que ele acaba antes de dar seus primeiros passos rumo ao caminho monetário.


Gramophone Multimída vol. 2
por Leonardo Vinhas

Os dois volumes da coletânea do selo-zine Gramophone Multimídia espelham bem a cena que pretendem retratar: enquanto o 1º tinha muitas (e insipientes) bandas na efervescência de uma cena em formação, o 2º traz bandas mais "assentadas", com identidade musical mais definida, para o bem ou para o mal.

A razão é simples: depois do boom de shows de hardcore no período 2000-2001, a maioria dos espaços da região fechou ou diminuiu muito a freqüência de eventos. Por outro lado, os que restaram (promotores e casas) aprenderam um pouco com alguns erros e investiram na qualidade dos poucos shows que aconteciam. Com mais informações e referências melhores, a molecada começou a pensar além dos três acordes, cerveja e discurso de protesto de sala de aula. Esse rumo à profissionalização (que ainda não foi atingida, diga-se) também peneirou o trabalho das bandas que persistiram, resultando numa depuração de elementos altamente nocivos ao seu som.

Assim, Blemish e Elegia, estrelas da primeira coletânea, chegam com faixas muito melhores a esse segundo volume (Breathe Out e Escravos, respectivamente), reflexo de muito suor nos palcos. Mas agora eles dividem os holofotes com The Vain (ainda que tenha coisa melhor em seu repertório que Handscreen Rainbow), Unicerebraiz (com a impagável Loco) e os “estrangeiros” do La Carne (de Osasco, com a frenética É Baderna!) e Ludovic (paulistanos obsessivos que arrastam paixão e violência em Vane, Vane, Vane).

Também reflexo dessa mudança é que o hardcore já não é o estilo predominante, dividindo espaço com indies (Seamus, Implastika, Vermelho 40, Fuzzbox), grunge (Yang) e até com as guitarradas indefiníveis do College (cujo vocalista precisa urgentemente aprender a cantar para não comprometer o instrumental desconcertante). No espaço punk, a sinceridade do Estado de Coma (apesar da letra indigente) e a competência dos Gin Tonics nos fazem relevar a nulidade do Green Come e o som sub-Blink do Y2K.

Das 20 bandas, 16 aparecem no CD 2, composto só de covers. The Vain justifica o preço do CD com sua versão demolidora de Teardrop, do Massive Attack, que não faz menos que deixar o ouvinte boquiaberto, seja pelo arranjo primoroso ou pela belíssima interpretação de Vivian Cunha, convidada a assumir os vocais. Logo atrás, o Seamus cativa corações e mentes com uma Nothing Lasts Forever, original do Echo & The Bunnymen, em versão semi-acústica, na qual Fernando Lalli mostra que umas aulas de técnica vocal não fazem mal a ninguém.

La Carne e Elegia cravam os dentes no osso dos Smiths e logram boas versões de What Difference Does It Make? e How Soon Is Now?, ainda que ambas tenham inconvenientes (o registro fonográfico da primeira e o vocal da segunda). Reatores e Estado de Coma injetam intensidade punk em That’s Alright e I Want To Hold Your Hand e se saem muito bem. As demais bandas oscilam entre o correto, o esquecível e o cômico, sendo que no último ninguém supera a versão casca-quase-grossa para Atirei o Pau no Gato cometida pelo Yang.

Como analisar uma coletânea de vinte bandas que têm em comum entre si apenas a região geoeconômica em que vivem? Há desde bandas rotuláveis que dificilmente passarão de "audíveis"até bandas geniais, cujo talento está evidente ou a espera de lapidação - essa triagem o tempo faz. Mas não há dúvida que há canções de sobra que farão você correr atrás de algumas bandas. As coletâneas estão disponíveis no site da Gramophone (R$10 a 1ª - R$15 a 2ª). Aqui está a fonte. O garimpo é trabalho (e prazer) de cada um.


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