Elegia
por Leonardo Vinhas
30/09/2002

leonardo.vinhas@bol.com.br

"Tétrico", "sombrio" e outros adjetivos lacônicos são freqüentemente usados para definir a música do Elegia, um quinteto com fortes inspirações oitentistas. Como na maioria das boas bandas que são vítimas de estereótipos, o rótulo passa longe do que o som realmente é: uma orgânica e complexa compilação de névoas pop e imagens obscuras amparadas por uma forte base rock. As influências, contudo, não tornam o som tão derivativo quanto se possa supor: o experimentalismo do Felt convive harmoniosamente com o insuspeito sacolejo do Bauhaus e com o pique soturno do Cure sem afetar a identidade da banda. Como já escrevi em outra circunstância, é um raro caso onde se aplica o clichê "se tivesse surgido em qualquer buraco da Inglaterra, seria idolatrado por muitos".

Na estrada há quase quinze anos, restam da formação original o guitarrista Marcelo D'Angelo e o baterista Escobar, que constituem com o baixista e violinista Emerson Deniz o núcleo mais ativo da banda, já que o vocalista Paulo Gotoh (irmão de Escobar) e a vocalista de apoio Katia Mayumi moram no Japão há sete anos! Sim, o disco de estréia da banda (lançado em 1999 pelo selo Airplãine of Noise Records) teve seus vocais gravados do outro lado do mundo enquanto o instrumental era registrado em São José dos Campos (SP) no estúdio Hocus Pocus, da propriedade de D'Angelo e Toninho Ribeiro (Vermelho 40).

Numa inusitada conexão Kawasaki / São José dos Campos / Taubaté, o Scream & Yell indagou Paulo e Marcelo sobre a distância física dos integrantes da banda e a distância que separa seu impressionante trabalho do grande público.


Vocês não são uma banda gótica, mas na imensa maioria das vezes são associados a esse rótulo. Incomoda a caracterização?

Paulo Gotoh: Não incomoda. Apesar de, em minha opinião, não definir nosso som. O que fazemos não é restrito a determinado rótulo, acho que vai um pouco além. Diria que boa parte das bandas de nossas influências são cultuadas por quem tem afinidades com o estilo ou são consideradas góticas mesmo quando os próprios artistas não assumem o rótulo como Bauhaus, The Cure, Siouxsie & The Banshees, Sisters Of Mercy e Joy Division por exemplo, daí a direta associação. Nossas influências vêm principalmente dos anos 80, inclusive gothic-rock. Foi, talvez, o segmento que mais deu retorno ao nosso trabalho, nos deu mais oportunidades. Costumávamos adotar o termo pós-punk quando nos perguntavam por definições no começo, devido a boa parte das influências virem de lá, de onde gothic-rock é uma de suas variações, mas é claro que não considero uma definição perfeita, pois se prender a um rótulo apenas limita ainda mais sua música. Quanto mais diferentes estilos ouvir, melhor para seu trabalho.

Marcelo D'Angelo: Até um tempo atrás isso me incomodava um pouco, sim, pois nossas influências não se restringem apenas a bandas góticas, mas hoje em dia eu não me importo muito com isso, pois é inevitável essa comparação, afinal nossas maiores influências vêm de bandas que são rotuladas como góticas. Mas nos nunca pensamos nisso na hora de compor as músicas, se vai soar gótico ou não, não importa. Se me perguntam uma definição do nosso som, diria que somos uma banda pós-punk.

A influência dos anos 80 na música e no visual do Elegia é forte. O que essa década teve de tão especial para vocês?

PG: Foi quando entramos em contato com a música alternativa, que então era bem diversificada e não tão segmentada (como hoje) e costumava ser tocada em todos lugares. Era comum tocar nos clubes e muito eventualmente em rádios e TVs. Sons que variavam de goth-rock, post-punk, guitar, industrial, bandas com as quais nos identificávamos.

MD: Para mim foi um dos melhores períodos pois eu vivi essa época, adoro bandas e tudo dos anos 60 e 70, como Velvet, Doors, Beatles, Kraftwerk, Bowie,etc... mas os 80 a gente acompanhou, tinha aquela expectativa para sair o novo LP dos Smiths, do New Order, do Cure, teve a primeira explosão de bandas de rock no Brasil com Legião (que eu particularmente adoro), Plebe, Ira!, Ultraje, Fellini, Violeta... Lembra do disco de vinil, de trocar fita cassete dos discos que não dava pra comprar? Era de uma certa forma tudo mais inocente, não se tinha tanta informação como hoje em dia com internet, MTV, etc...E foi o período da adolescência, quando vimos isso tudo e começamos a tocar.

A banda tem uma "identidade visual" bem marcante. Isso é tão importante quanto a música?

PG: Não, a música vem em primeiro lugar, mas é claro, ter uma identidade visual também faz parte do trabalho, principalmente nas performances ao vivo. Afinal, até tocar de bermudas e camisetas é uma política visual. Adotamos aquela com a qual nos identificamos mais.

MD: Nada é mais importante que a música, apesar de também ser legal se ter uma boa apresentação nos shows, desde que a gente se sinta à vontade. Na verdade, nunca parei para pensar sobre isso...

O fato do som de vocês não ser facilmente rotulado isola vocês um pouco no cenário independente, não é mesmo? Fica difícil se encaixar em festivais ou panelinhas...

MD: Com certeza é mais difícil...mas a gente tem um relacionamento legal com bandas de vários estilos, já tocamos com bandas de hardcore, metal, pop, guitar, não me importo onde tocar, desde que a galera seja legal e tenha condições. Talvez até porque é difícil de nos classificar, acabamos tocando não só com bandas góticas, o que é legal, pois mais pessoas acabam ouvindo nosso som.

PG: Festivais que se prendem a um determinada tendência apenas, geralmente, só aceitarão bandas daquela tendência. Já tocamos em vários festivais independentes onde a mentalidade dos organizadores era mais aberta a diversas tendências. Não nos importamos onde tocar, desde que haja condições mínimas para fazê-lo, o que às vezes não aconteceu. O importante é atingir o maior número de público, e daí conquistar a simpatia de quem se identifica com nosso som.

O inglês é fundamental para a concepção musical de vocês ou o português pode vir a aparecer?

PG: No começo, as letras eram em português, mas sempre me senti mais confortável com inglês por boa parte das bandas que gosto cantar nessa língua, sua sonoridade combina bem com o rock, e por também ser uma língua universal atualmente e com isso passar nossa mensagem a uma audiência de número maior, não restringindo apenas ao público da língua portuguesa. Isso não impede que também façamos músicas em português, japonês, alemão, ou o que seja.

MD: O Paulo compõe a maioria das letras e se sente mais confortável com o inglês, mas nunca descartamos nossa língua natal, tanto que no próximo CD incluiremos uma canção em português. Acho que uma música boa é uma música boa, seja ela em inglês, alemão, espanhol ou esperanto. Só não deve rolar preconceito, tipo rock só em inglês, ou só em português. Se a música for boa, se foi feita com sinceridade e coração, é isso que importa.

Vocês tocaram em duas edições do WGT, um festival de música gótica (olha o rótulo de novo!) na Alemanha. Como surgiu o convite e como foi a repercussão de suas apresentações?

PG: O Wave-Gotik-Treffen em Leipzig é um festival da cultura gótica, medieval, e como seu próprio nome diz também aberto para Wave (80s, pós-punk). Tudo começou quando fui em 99 para fazer a cobertura para um web-zine, na época um artista japonês que eu conheço ia se apresentar, e nos trâmites para conseguir o passe de imprensa eu conheci um dos organizadores e sem muitas pretensões lhe dei um CD. Ele gostou e nos convidou para tocar na 9ª edição, e depois nos chamaram novamente para a 10ª. Tivemos uma boa aceitação na mídia local, pois fazíamos rock com apenas baixo guitarra e bateria, como boa parte das bandas 80s e gothic-rock, algo que tornou-se raro no estilo. Por conta disso ganhamos um pouco de  repercussão no Brasil.

MD: A repercussão na Europa foi muito boa, tivemos comentários favoráveis em revistas e sites, não só da Alemanha como da França, Suíça, Portugal, a maioria destacando o fato de sermos do Brasil e fazermos o som como uma banda de rock básica (guitarra, baixo, bateria).
 

Além da Alemanha, vocês já tocaram em outro países? E quais os estados por onde vocês excursionaram?

MD: Foi só Alemanha mesmo, e por aqui interior e capital de São Paulo, gostaríamos muito de ir para outros estados, quem tiver propostas...

PG: Estamos abertos a propostas em outros países também.

Tem uma história dizendo que a banda começou no Ceará... (risos)

PG: Bem, o Marcelo morou em Maceió, onde conheceu o Ricardo (Dimas, primeiro baixista do Elegia), talvez daí venha esse boato.  Ele pode lhe contar com mais detalhes.

MD: Pô ... de onde você desencavou essa? (risos) Eu morei uns anos em Maceió onde conheci o Ricardo, nosso primeiro baixista, foi lá que eu tive minha primeira banda, tocava baixo numa banda de punk rock chamada Câmara dos Deturpados (risos), alguns anos depois voltei para São José, e o Ricardo veio morar em Taubaté, foi ai que começamos o Elegia: eu, ele o Escobar e a Ursula nos vocais. O Paulo entrou um ano depois, mas ele já era uma espécie de "membro virtual", tinha dado o nome da banda e tudo...Mas a gente começou aqui mesmo em São José.

A primeira tiragem do CD se esgotou. Vem aí uma segunda prensagem ou o foco é o segundo CD?

PG: Estamos estudando uma segunda prensagem sim, mas por enquanto a ênfase é para o próximo CD.

MD: Os planos são lançar o segundo CD ano que vem, junto com uma segunda prensagem do primeiro.

PG: Ei, eu não sabia disso! (risos) Vocês nem me falam nada...

Como estão as novas composições? Tem um instrumental bem forte que vem se destacando nos shows...

PG: Estão cada vez mais variadas com elementos novos como percussão eletrônica, backing vocal feminino, mais viola, estamos muito entusiasmados com as possibilidades do próximo CD e esperamos que seja ainda melhor que o anterior.

MD: Bem, esse próximo CD está bem diversificado, juntamos algumas músicas antigas que a gente adora tocar e achávamos importante registrar, e material novo. Incorporamos percussão eletrônica, os backings da Kátia, viola. Na hora de compor material novo começamos a ir descartando as músicas que foram ficando parecidas com outras coisas que já tínhamos feito. Essa música a que você se referiu foi bem influenciada pela nossa estadia na Alemanha, onde assistimos umas apresentações de bandas que tocam músicas medievais, com instrumentos de época, a gente pirou naquelas apresentações, no peso que os caras conseguiam impor com aquelas canções, me impressionou muito aquilo, daí acabou rolando esse som. Tentei ir tocando algo como um mantra, o Escobar veio com aquelas batidas e o Emerson com a melodia na viola erudita, e no CD ela vai estar com um vocal do Paulo, e ela é meio como nossa impressão do que vimos na viagem .

Aliás, vocês ainda compõem juntos, apesar da distância?

PG: Devido à distância compomos em separado, a melodia no Brasil as letras e os vocais, aqui no Japão, o que não nos impede de nos manter ativos. Para o próximo álbum, nós compomos boa parte das músicas juntos aproveitando minha passagem pelo Brasil, final do ano passado.

MD: Geralmente eu chego com uma melodia ou riff na guitarra e desenvolvemos no ensaio, com a música mais ou menos pronta gravamos e mandamos para o Paulo, que escreve a letra e encaixa na música. É um processo um pouco demorado, mas que vem funcionando pra gente nesse últimos anos.

Como foi feita a gravação do disco, sendo que o Paulo já estava no Japão? O fato do disco ter sido gravado em duas etapas e dois locais diferentes teve algum impacto significativo no resultado?

PG: No primeiro CD os instrumentais foram gravados no Brasil e os vocais aqui no Japão,  mixagem e a masterização foram feitas aí no Brasil. Isso leva mais tempo que o normal, mas com relação à música pouco difere. Muitas bandas também usam esse esquema, e hoje em dia graças à internet, a distância se encurtou bastante.

MD: Fora o fato de ter demorado um pouco mais que o normal, não houve maiores contratempos.

Marcelo, as apresentações em trio já estão sendo realizadas há tempo. Isso não cria uma distância em relação ao Paulo e à Mayumi? Falando nela, ela está definitivamente incorporada à banda?

PG: Bem, dizemos entre nós que praticamente somos duas bandas, uma comigo e a Mayumi no vocal e outra com o Marcelo, mas isso é inevitável, pelo menos enquanto estivermos por aqui. Nas apresentações no exterior, que são mais eventuais, estaremos participando, claro. Agora a Mayumi já é um membro ativo na banda desde o meio de 2001, no último WGT ela fez backing vocals para nós, e o próximo CD já conta com sua voz em várias músicas.

MD: Não sinto uma distância do dois por esse fato, mesmo que de uma certa forma somos duas bandas em uma. Os shows em que tocamos como um trio são diferentes de quando estamos todos juntos, mas essa foi a forma que encontramos para continuar tocando enquanto eles não voltam.

Paulo, você deve voltar ao Brasil em breve? Se não, como fica a banda?

PG: Por enquanto, não posso voltar ao Brasil, devo ficar por aqui por mais um tempo. Então vamos levando no esquema até eu poder voltar definitivamente.

E o projeto paralelo do Marcelo, o Fuzzbox? Ano passado saiu uma composição inédita em português. Maiores novidades a caminho?

MD: O Fuzzbox rolou numa época em que o Elegia estava meio parado, nosso baixista (Ricardo) Dimas tinha saído, o Paulo estava no Japão, ficamos meio sem rumo, e na mesma época rolou de compor aquelas músicas e acabei entrando no estúdio para gravar. Chamei a Fabiane, na época baterista do Mary Help, e o resto toquei tudo, fora a viola do Emerson em "Herb Song" e uma participação da Selma, do Jerks (nos vocais de "Perfect Day"). Logo depois o Emerson entrou para o Elegia, a gente voltou à ativa e eu acabei nem divulgando direito o CD. Mas gosto muito dele. Ano passado rolou essa música ("Inverno") para a coletânea da Gramophone, gostei da experiência de fazer o som em português e provavelmente no ano que vem devo lançar alguma coisa também, vamos ver o que rola até lá...

Última pergunta: quem chama o Elegia de banda gótica deve ser trancado numa catacumba para aprender? (risos)

PG: Nem tanto, mas penso que deveria escutar mais nossa música e tirar suas próprias conclusões.

MD: Não, não chega a tanto...E como diria o Mestre do Kung-fu (alguém lembra desse seriado?): "pode me chamar de qualquer nome, pois isso não vai mudar o que na essência eu sou".

Site: http://www.e-elegia.com/
 




ELEGIA (1999, Airpãine of Noise)
As luzes entre as sombras

Elegia, o disco da banda de mesmo nome, é um prisma pelo qual diversas cores se escurecem ao passar. O senso de composição da banda privilegia simultaneamente melodia e arranjo, obtendo um resultado onde é detectável à primeira audição a influência dos anos 80 britânicos, mas que logo revela surpresas.

No rótulo "gótico" que empurram à banda, caberia apenas a faixa de abertura Sublime Perversion. Ainda assim, o peso grave lentamente invadido por um violino já aponta para outras direções. Baixos estalados ou alterados por chorus, guitarras ora soando espaciais ora cuspindo riffs, bateria primorosa, vozes discretas ou empostadas (com grande  referência à Robert Smith nas inflexões), tudo isso se apresenta com freqüência e qualidade.

O disco é cheio de pique e os trechos mais lentos jamais beiram a letargia. Nos momentos em que a banda assume suas características pessoais, saem faixas dançantes e fortes, apesar das letras insistirem nas imagens "dark" (os indies de tempos atrás).

Nessa condição, Strix e Anajs são faixas para, como dizia Morrissey, "dançar para gastar as pernas até os joelhos". Não à toa, são as faixas mais pedidas dos shows, onde é perceptível a diferença entre o vocal de Marcelo Dangelo e o de Paulo Gotoh: enquanto o vocalista "oficial" ora recorre a maneirismos teatrais, Dangelo é mais contido e direto, atenuando ainda mais as feições anglófilas da banda.

Teatro à parte, é difícil falar de sua música sem recorrer a cores. As harmonias são quase visuais, parecem filmes de diversos tipos passados por um filtro mais pesado e menos romântico, sem forçar no lado depressivo. As 11 faixas do disco são um caleidoscópio com filtros cinzas, definitivamente impróprias para um dia de sol, mas nem por isso para serem curtidas por metidos a coitados na escuridão de seus quartos embolorados.

Elegia ao vivo realmente é um assombro: eu, que só os vi como trio, sempre fico impressionado com a figura daqueles três caras de preto tocando com fúria compenetrada, em especial o fenomenal baterista Escobar. Em disco, a virulência é menos intensa, mas ainda assim muito contagiante e inovadora. Uma música que pega o ouvinte pelo mistério e pela dinâmica que se insinua a cada surpreendente virada.

Chamem-me de mentiroso, mas não me lembro de nada assim nos anos 80, principalmente feito em território nacional.

Leonardo Vinhas, quase 24 anos, não usa muito preto, vive de bermudão e camiseta regata, mas não perde um único show do Elegia.


EPÍLOGO:


FUZZBOX
Destination Anywhere

O projeto paralelo de Marcelo D'Angelo é uma grata surpresa: São sete faixas despretensiosamente pop e guitarreiras, onde o rapaz assume vocais, guitarras e baixo, acompanhado pela bateria de Fabiane Ribeiro (Mary Help e Reatores).

Assim como no Elegia, os vocais são em inglês, mas ao contrário das influências góticas e pós-punk, aqui o alicerce está fincado nas guitar bands do final dos anos 80 (Pixies, That Petrol Emotion, etc) e no pop bem sacado de Jesus And Mary Chain (fase Automatic) e Psychedelic Furs.

"Ih, cheira à coisa indie", diria o leitor mais desconfiado. Não dá para desconsiderar esse "parentesco", mas a absoluta desencanação e o jeito que o moço tem para compor refrãos proporciona uma considerável diferença em relação aos parceirinhos nacionais.

E se esse cara adotar o português em possíveis faixas vindouras, pode vir coisa muito bacana por aí. Por enquanto, Destination Anywhere (título que reflete o espírito descontraído do disco) é um petisco dos mais instigantes.