"Quase Dois Irmãos"
por
Marcelo Miranda
Fotos - Divulgação
miranda@areaweb.com.br
07/05/2005
Existem dois filmes dentro de Quase Dois Irmãos que tentam se associar de alguma forma. São filmes interligados, mas tão distintos que parecem ter sido feitos de forma independente e por pessoas diferentes. Falta coesão entre as duas partes, faltam vasos comunicantes. Irônico que algo assim aconteça num trabalho em que a temática maior é exatamente a separação.
De um lado, os presos políticos escorraçados pela repressão do regime militar; do outro, marginais “comuns”. Todos dividindo o mesmo espaço da prisão de Ilha Grande, no Rio de Janeiro. A diretora Lucia Murat sabe do que está falando: visitava o marido constantemente nos anos 70, ele próprio um preso político, e percebia a tensão norteando aquele ambiente, tensão prestes a explodir.
Sua abordagem dessa situação é um dos pontos altos de Quase Dois Irmãos. Através do olhar de uma dupla de amigos de infância, o espectador toma consciência da impossibilidade de convivência entre classes. Pois é isso que Murat parece querer nos dizer no subir dos créditos, após o desfecho pessimista: simplesmente não há solução para o imbricamento entre ricos e pobres, burgueses e gente do morro. Até mesmo quando existe a ideologia democrática, a tentativa de diálogo para o bem comum, algo não se encaixa e até quem tanto defendia a ligação passa a apoiar a separação – num jogo de poder e política em que importa pouco o destino dos colegas se um lado não incomodar o outro.
Há desesperança no discurso de Murat. Ela apresenta a realidade da cadeia ora de maneira violenta, ora retratando a camaradagem entre os presos. Parece haver solução ali, apesar de tudo. Até a chegada de outro grupo, disposto a fazer daquele espaço limitado seu território. E começa a guerra interna, opondo os dois amigos e gerando os hoje tão conhecidos esquadrões da morte – especificamente, o Comando Vermelho. É neste ponto que Murat perde a esperança, deixando de lado o clima de rivalidade entre os presos políticos e a ditadura e focando a narrativa na guerra urbana dos morros cariocas dos nossos dias, quase uma justificativa para sua descrença.
Essa junção dos dois universos não acontece cronologicamente. Lucia Murat utiliza linguagem entrecortada em todo o filme, às vezes misturando quatro períodos temporais (nunca causando confusão na cabeça do público, graças à montagem e à fotografia, que diferencia uma época de outra com discrição). Só que Murat não consegue manter o interesse nas cenas que acontecem nos morros do Rio.
A diretora teve o auxílio de Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus) para compor este trecho, e provavelmente aí está o problema: ela não tem o domínio desse mundo como tem do presídio em Ilha Grande. A história da garotinha rica interessada no traficante não tem força, não convence, destoa do resto, não gera conseqüências suficientes para tomar tanto espaço, mesmo que sua resolução afete a vida de personagens importantes – já que isso soa como artifício de enredo, e não como desenvolvimento de idéias. Em vez disso, Murat poderia se ater mais ao relacionamento dos protagonistas, principalmente na infância (o título do filme força uma ligação não tão firme entre a dupla, se pensarmos apenas no que está impresso ou mesmo insinuado na tela).
A cineasta deixa de entregar um grande filme devido à pretensão de querer criar uma tese ampla demais. A ambição de exprimir a teia de ilegalidades e mesmo a explicação para a situação social na qual o Brasil chegou se perde pelo caminho, desfocando o interesse real que o filme teria se se preocupasse mais com seus personagens e menos com o contexto nacional. Está se tornando mania do cinema brasileiro, de querer jogar tudo na tela grande como se fosse necessidade explicar alguma coisa, entender através das imagens.
O cinema tem, sim, como uma de suas funções a compreensão e a epifania. Mas a complexa realidade brasileira não será desvendada num único filme. Alguns quase chegam lá, como O Invasor, caso raro. Quase Dois Irmãos encosta, mas ainda passa longe. Demonstra simplismo em alguns aspectos, ingenuidade em outros. A direção firme de Murat e o bom elenco (destaque máximo para Flávio Bauraqui, o amigo negro dos anos 70) não são suficientes para torná-lo memorável – para não dizer fundamental, algo que a diretora parecia tanto alcançar.
Leia também:
Cidade de Deus,
o livro de Paulo Lins, por Drex Alvarez
Cidade de Deus,
o filme de Fernando Meirelles, por Marcelo Costa
O Invasor, por Marcelo
Costa
Site Oficial do
filme Quase Dois Irmãos
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