Depois
de fechar a última das quatrocentas páginas, a
palavra que me veio à cabeça foi só uma:
ufa!. Cidade de Deus, o livro, é extenso, muito
extenso. E eu, que não me gabo em nada da velocidade
das minhas leituras, demorei muito para terminá-lo. Entre
idas e vindas, com um outro livro intrometido no meio, foram
quase três meses. Mas, ao final da empreitada, além
da satisfação de chegar ao fim, ficou também
a satisfação de ter lido algo bom. Gostei do livro,
valeu a pena.
O
que fica, tanto no filme
quanto no livro, é o mesmo - um retrato da evolução
do tráfico e da violência na favela. Sem julgamentos
ou respostas fáceis, apenas um retrato. Se o filme opta
por transmitir esse retrato através da intensidade do
impacto, o livro escolhe um caminho mais extensivo. Possui mais
algumas dezenas de personagens, torna ainda mais complexos e
emaranhados os longos 20 anos de saga criminosa. Além
disso, a narrativa é caudalosa, com longas descrições
e cheia de detalhes. Isso tudo, lá pelo meio do livro,
chega a tornar-se repetitivo. Talvez a intenção
fosse mostrar como a violência se banaliza, mas o fato
é que a enxurrada de trairagens, mancumunações,
roubos e mortes, acaba uma hora se tornando cansativa. Mas aí
(se houver um pouco de persistência, é claro...)
o carisma de alguns personagens te atrai novamente, a trama
embala, e você é salvo de desistir no meio do caminho.
Carisma,
aliás, é coisa que não falta às
personagens. Este sim é um dos pontos fortes do livro.
Pela extensão, Paulo Lins consegue montar um mosaico
bastante completo, explorando os mais variados tipos e figuras
que, de alguma forma, se envolviam com aquela realidade. Tem
de tudo ali, das mais variadas personalidades às mais
variadas motivações, das diversas condições
sociais aos diversos cargos dentro da organização
criminosa. Desde pé-rapados e estupradores baratos, até
migrantes sem sorte, travestis que se dão bem, cocotas
sem preocupação e traficantes arrependidos.
É
claro que nem todas essas personagens são desenvolvidas
a fundo, mas todas possuem um certo colorido real. E, aos escolhidos,
Paulo Lins dá um carinho especial. O carisma dos personagens
principais vem, claro, da veracidade que conseguem transmitir
- são cheios de vida, de vontade, de força, de
ódio. Aliás, este também é um dos
grandes trunfos do filme. O que faz perceber que, com todos
os méritos da excelente adaptação feita
pelo roteiro de Bráulio Mantovani e das atuações
excepcionais dos meninos da Cidade de Deus, todos ali beberam
numa excelente fonte de referências.
"Cidade
de Deus" é dividido em três grandes partes, cada
uma delas dedicada aos três grandes personagens da trama.
A primeira conta a estória do líder do Trio Ternura,
Inferninho (no filme, Cabeleira), e o surgimento da violência
no complexo residencial. Na segunda parte, quem já domina
o tráfico no morro é o malandro responsa Pardalzinho
(o Benê cinematográfico) juntamente com seu parceiro
endiabrado Zé Miúdo (adivinhem quem? Zé
Pequeno, porra...), que é o protagonista da terceira
e última parte, justamente quando a guerra de quadrilhas
se generaliza na favela, principalmente depois que a ira de
Zé Bonito (o Mané Galinha) é despertada.
Já foi possível perceber que um dos grandes baratos
do livro é ficar adivinhando os paralelos entre os nomes
originais dos personagens e suas adaptações, mais
mercadológicas, utilizadas no filme. Um dos nomes que
permanecem iguais é justamente o de Buscapé. Apesar
de ser mais protagonista no filme que no livro, Buscapé
também tem aqui um papel importante: ele atravessa todas
as três partes da trama oferecendo um contraponto à
vida bandida generalizada da favela. Enquanto ali a maioria
dos jovens encontra no tráfico a opção
mais viável de ganhar dinheiro, reconhecimento dos amigos,
status e ascensão social, Buscapé mantém-se
à parte disso. Ele é a exceção que
resiste, sabe-se lá por quê, à regra da
violência.
Como
se vê, no seu argumento principal, o filme é extremamente
fiel ao livro. A trama, em seus detalhes, contém muitas
diferenças, até porque é infinitamente
mais recheada de situações, mas o roteiro conseguiu
captar excepcionalmente o espírito da obra e aproveitar
as melhores passagens para ilustrá-las na tela. Além
da trama principal, Paulo Lins também insere muitas pequenas
estórias paralelas, completamente independentes . Estes
quase contos, que fazem sentido no livro pela unidade temática
e geográfica, são algumas das partes mais interessantes
de se ler e dão ainda mais diversidade à estória.
Muitos deles, como o caso do nordestino que mata e enterra a
mulher infiel, também foram aproveitados no roteiro do
filme, habilidosamente costurados à trama principal.
Além
da extensão, mais uma coisa ofereceu grande perigo à
minha motivação para prosseguir com o livro. No
início da leitura, estranhei bastante o estilo do Paulo
Lins. Os diálogos, felizmente, são bem espertos
e cheios de gírias características da época.
Mas na narrativa e, principalmente, nas descrições,
ele utiliza uma linguagem que, além de nada coloquial,
é quase barroca. As descrições são
tão caprichadas que às vezes os matões
de Jacarépaguá parecem bosques bucólicos
da Idade Média. A narrativa também usa e abusa
de metáforas e imagens viajandonas. No começo
isso soa bastante deslocado, afinal a estória ali era
de violência, pobreza, sarjeta e mundo cão. No
decorrer do livro, felizmente, acostuma-se, e isso acaba até
se tornando um ponto positivo. Tantos detalhes, tanto esmero
na criação do ambiente, acabam aumentando a sensação
e o impacto da realidade.
Quanto
à violência (e esbarrando naquelas polêmicas
criadas quanto a estética, cosmética, retrato
ou exploração da pobreza, no filme ou no livro)
não sou besta para tentar decifrar aqui qualquer mensagem,
diagnóstico ou proposta que o livro teria para oferecer.
Acredito também que é besta quem procura ali resposta.
Ali está a radiografia; a resposta, e as soluções
(se existem soluções) têm que vir depois.
E, para quem está acostumado a ver uma radiografia sempre
tirada pelo Cidade Alerta, está ali uma perspectiva
bastante diferente.
TRECHOS
DO LIVRO
1)
É bem verdade que Branquinho só dava tiros quando
a quadrilha de Bonito ia aos Apês, mesmo assim quando
Miúdo lhe impunha. Essa onda de bandido não era
nada do que queria, por isso achou até boa a investida
da polícia para poder sair na rua sem medo de que Miúdo
o obrigasse a ficar de revólver na esquina esperando
o bando de Bonito.
Num domingo, saiu cedo para ir à casa da ex-namorada,
iria tentar a reconciliação. Chegou em frente
ao prédio dela, levou as mãos em cone à
boca e gritou seu nome várias vezes. ninguém atendia.
Resolveu entrar no prédio. Bateu na porta três
vezes e só na quarta a namorada o atendeu, ainda sonolenta.
Deixou-o na sala e entrou no banheiro. Depois de alguns minutos
voltou:
- Olha, se você veio aqui numa de tentar voltar, pode
tirar o cavalinho da chuva, sabe qualé? Eu t6o cansada
de ser enganada... Você não toma uma atitude, não
junta dinheiro, não fala em casamento, já fez
o que queria comigo. Sabe... Eu não tô mais querendo
ser enganada.
- Eu te prometo que, a partir desse mês, eu vou começar
a juntar um dinheiro todo mês.
- Você sempre fala isso, depois fala que não deu...
tá sempre comprando roupa, gastando dinheiro com cocaína...
- Fala baixo, garota...
- Minha mãe não taí, não. Vou te
falar uma coisa, já até arrumei um namorado, entendeu?
Não fica no meu pé, não que ele é
ciumento e é polícia. É melhor você
ficar longe de mim - finalizou enquanto abria a porta.
Branquinho saiu cabisbaixo, não acreditava que um dia
ela lhe dissesse que tinha outro, foi burro, pois se pensasse
mais nela isso não aconteceria. Chegou ao final da escada
com os olhos cheios de lágrimas, ficou com vergonha de
alguém vê-lo daquele jeito, deu meia-volta.
A namorada o atendeu também chorando, abraçaram-se,
beijaram-se e fizeram sexo ali mesmo na sala, sob a promessa
de que ele gozaria fora. Porém, logo depois, ela voltou
a dizer que estava mesmo de caso com o soldado Morais e que
não o largaria, porque o policial em menos de um mês
a levara para conhecer seus pais e lhe prometera alugar uma
casa para os dois morarem juntos.
- Tu não acha que isso tá rápido demais
não, Cidinha?
- Melhor do que você que tá comigo há três
anos e não toma uma atitude.
Tomaram banho, fizeram sexo novamente no banheiro e, quando
Branquinho se despediu, ela disse:
- De repente, a gente faz isso de novo.
Minutos depois, a namorada recebeu o recado de que o soldado
Morais a esperava logo no largo da Freguesia, arrumou-se e foi
ao seu encontro. Ele a levou para um motel.
- Goze fora, tá?!
2)
Sandro Cenoura mandou todo mundo se entocar , só iria
voltar a combater quando Bonito voltasse, estava com medo, não
tinha pulso para comandar a quadrilha. A polícia estava
dando em cima, os jornais todos os dias faziam matéria
sobre Cidade de Deus, seu nome sempre vinha estampado na primeira
página.
Entocou-se na casa de um amigo, a mulher este estava sumida
havia mais de uma semana, poderia abrigar Cenoura sem ter de
ouvir falação por ter colocado bandido dentro
de casa. Cenoura, com as mãos trêmulas, coração
acelerado. O companheiro dormia no quarto completamente embriagado,
rangia os dentes, soltava gases, remexia-se na cama. Que vida
desgraçada era a sua, na verdade não queria estar
nessa porra dessa guerra, sempre gostara de dinheiro, dinheiro
era o que queria, e esse babaca querendo tomar sua boca. Olho-grande,
safado; nunca gostou do Miúdo. Lembrou-se do tempo em
que trabalhava de faxineiro na PUC, única vez que se
fantasiara de otário, pois sabia que não ficaria
rico limpando as sujeiras que a brancalhada fazia, e só
os otários trabalham com a certeza de que não
vão desfrutar das coisas boas da vida. Por isso largara
tudo, nunca mais levou aquela desgraceira de vida. Maconha,
cocaína, isso é que dava dinheiro, se não
fosse o Miúdo estaria rico.
Pensou nos filhos, queria que eles estudassem na PUC, sempre
ouviu dizer que escola de padre é que era a boa. Dois
filhos. O que poderia deixar para eles? A herança mais
visível era a guerra. Bonito bem que poderia voltar logo,
para partir com ele para cima de Miúdo com todo o ódio
que sentia naquele momento. Matá-lo, tomar a boca da
Treze e trabalhar duro um ano; compraria um sítio no
interior para criar galinha, faria uma piscina, construiria
um banheiro com sauna. Tentou se lembrar de como se fazia coquetel
Molotov e nada. Somente a angústia dominava-lhe o espírito.
A gastrite voltou a castigá-lo. Leite. Na geladeira somente
batatas passadas, um bife preto em cima dum óleo branco
encardido. Na prateleira uma garrafa de conhaque, não
hesitou. Bebeu tudo para uma noite bem-dormida, se algum inimigo
chegasse não teria problema, morreria dormindo. Há
certas horas em que a própria morte parece ser extremamente
necessária.
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