"Cidade de Deus" de Paulo Lins
(Companhia das Letras, 408 páginas)
por Drex
cartasdemaracangalha.blogspot.com
13/08/2003

Depois de fechar a última das quatrocentas páginas, a palavra que me veio à cabeça foi só uma: ufa!. Cidade de Deus, o livro, é extenso, muito extenso. E eu, que não me gabo em nada da velocidade das minhas leituras, demorei muito para terminá-lo. Entre idas e vindas, com um outro livro intrometido no meio, foram quase três meses. Mas, ao final da empreitada, além da satisfação de chegar ao fim, ficou também a satisfação de ter lido algo bom. Gostei do livro, valeu a pena.

O que fica, tanto no filme quanto no livro, é o mesmo - um retrato da evolução do tráfico e da violência na favela. Sem julgamentos ou respostas fáceis, apenas um retrato. Se o filme opta por transmitir esse retrato através da intensidade do impacto, o livro escolhe um caminho mais extensivo. Possui mais algumas dezenas de personagens, torna ainda mais complexos e emaranhados os longos 20 anos de saga criminosa. Além disso, a narrativa é caudalosa, com longas descrições e cheia de detalhes. Isso tudo, lá pelo meio do livro, chega a tornar-se repetitivo. Talvez a intenção fosse mostrar como a violência se banaliza, mas o fato é que a enxurrada de trairagens, mancumunações, roubos e mortes, acaba uma hora se tornando cansativa. Mas aí (se houver um pouco de persistência, é claro...) o carisma de alguns personagens te atrai novamente, a trama embala, e você é salvo de desistir no meio do caminho.

Carisma, aliás, é coisa que não falta às personagens. Este sim é um dos pontos fortes do livro. Pela extensão, Paulo Lins consegue montar um mosaico bastante completo, explorando os mais variados tipos e figuras que, de alguma forma, se envolviam com aquela realidade. Tem de tudo ali, das mais variadas personalidades às mais variadas motivações, das diversas condições sociais aos diversos cargos dentro da organização criminosa. Desde pé-rapados e estupradores baratos, até migrantes sem sorte, travestis que se dão bem, cocotas sem preocupação e traficantes arrependidos.

É claro que nem todas essas personagens são desenvolvidas a fundo, mas todas possuem um certo colorido real. E, aos escolhidos, Paulo Lins dá um carinho especial. O carisma dos personagens principais vem, claro, da veracidade que conseguem transmitir - são cheios de vida, de vontade, de força, de ódio. Aliás, este também é um dos grandes trunfos do filme. O que faz perceber que, com todos os méritos da excelente adaptação feita pelo roteiro de Bráulio Mantovani e das atuações excepcionais dos meninos da Cidade de Deus, todos ali beberam numa excelente fonte de referências.

"Cidade de Deus" é dividido em três grandes partes, cada uma delas dedicada aos três grandes personagens da trama. A primeira conta a estória do líder do Trio Ternura, Inferninho (no filme, Cabeleira), e o surgimento da violência no complexo residencial. Na segunda parte, quem já domina o tráfico no morro é o malandro responsa Pardalzinho (o Benê cinematográfico) juntamente com seu parceiro endiabrado Zé Miúdo (adivinhem quem? Zé Pequeno, porra...), que é o protagonista da terceira e última parte, justamente quando a guerra de quadrilhas se generaliza na favela, principalmente depois que a ira de Zé Bonito (o Mané Galinha) é despertada.

Já foi possível perceber que um dos grandes baratos do livro é ficar adivinhando os paralelos entre os nomes originais dos personagens e suas adaptações, mais mercadológicas, utilizadas no filme. Um dos nomes que permanecem iguais é justamente o de Buscapé. Apesar de ser mais protagonista no filme que no livro, Buscapé também tem aqui um papel importante: ele atravessa todas as três partes da trama oferecendo um contraponto à vida bandida generalizada da favela. Enquanto ali a maioria dos jovens encontra no tráfico a opção mais viável de ganhar dinheiro, reconhecimento dos amigos, status e ascensão social, Buscapé mantém-se à parte disso. Ele é a exceção que resiste, sabe-se lá por quê, à regra da violência.

Como se vê, no seu argumento principal, o filme é extremamente fiel ao livro. A trama, em seus detalhes, contém muitas diferenças, até porque é infinitamente mais recheada de situações, mas o roteiro conseguiu captar excepcionalmente o espírito da obra e aproveitar as melhores passagens para ilustrá-las na tela. Além da trama principal, Paulo Lins também insere muitas pequenas estórias paralelas, completamente independentes . Estes quase contos, que fazem sentido no livro pela unidade temática e geográfica, são algumas das partes mais interessantes de se ler e dão ainda mais diversidade à estória. Muitos deles, como o caso do nordestino que mata e enterra a mulher infiel, também foram aproveitados no roteiro do filme, habilidosamente costurados à trama principal.

Além da extensão, mais uma coisa ofereceu grande perigo à minha motivação para prosseguir com o livro. No início da leitura, estranhei bastante o estilo do Paulo Lins. Os diálogos, felizmente, são bem espertos e cheios de gírias características da época. Mas na narrativa e, principalmente, nas descrições, ele utiliza uma linguagem que, além de nada coloquial, é quase barroca. As descrições são tão caprichadas que às vezes os matões de Jacarépaguá parecem bosques bucólicos da Idade Média. A narrativa também usa e abusa de metáforas e imagens viajandonas. No começo isso soa bastante deslocado, afinal a estória ali era de violência, pobreza, sarjeta e mundo cão. No decorrer do livro, felizmente, acostuma-se, e isso acaba até se tornando um ponto positivo. Tantos detalhes, tanto esmero na criação do ambiente, acabam aumentando a sensação e o impacto da realidade.

Quanto à violência (e esbarrando naquelas polêmicas criadas quanto a estética, cosmética, retrato ou exploração da pobreza, no filme ou no livro) não sou besta para tentar decifrar aqui qualquer mensagem, diagnóstico ou proposta que o livro teria para oferecer. Acredito também que é besta quem procura ali resposta. Ali está a radiografia; a resposta, e as soluções (se existem soluções) têm que vir depois. E, para quem está acostumado a ver uma radiografia sempre tirada pelo Cidade Alerta, está ali uma perspectiva bastante diferente.


TRECHOS DO LIVRO

1)
É bem verdade que Branquinho só dava tiros quando a quadrilha de Bonito ia aos Apês, mesmo assim quando Miúdo lhe impunha. Essa onda de bandido não era nada do que queria, por isso achou até boa a investida da polícia para poder sair na rua sem medo de que Miúdo o obrigasse a ficar de revólver na esquina esperando o bando de Bonito.


Num domingo, saiu cedo para ir à casa da ex-namorada, iria tentar a reconciliação. Chegou em frente ao prédio dela, levou as mãos em cone à boca e gritou seu nome várias vezes. ninguém atendia. Resolveu entrar no prédio. Bateu na porta três vezes e só na quarta a namorada o atendeu, ainda sonolenta.
Deixou-o na sala e entrou no banheiro. Depois de alguns minutos voltou:

- Olha, se você veio aqui numa de tentar voltar, pode tirar o cavalinho da chuva, sabe qualé? Eu t6o cansada de ser enganada... Você não toma uma atitude, não junta dinheiro, não fala em casamento, já fez o que queria comigo. Sabe... Eu não tô mais querendo ser enganada.

- Eu te prometo que, a partir desse mês, eu vou começar a juntar um dinheiro todo mês.

- Você sempre fala isso, depois fala que não deu... tá sempre comprando roupa, gastando dinheiro com cocaína...

- Fala baixo, garota...

- Minha mãe não taí, não. Vou te falar uma coisa, já até arrumei um namorado, entendeu? Não fica no meu pé, não que ele é ciumento e é polícia. É melhor você ficar longe de mim - finalizou enquanto abria a porta.


Branquinho saiu cabisbaixo, não acreditava que um dia ela lhe dissesse que tinha outro, foi burro, pois se pensasse mais nela isso não aconteceria. Chegou ao final da escada com os olhos cheios de lágrimas, ficou com vergonha de alguém vê-lo daquele jeito, deu meia-volta.


A namorada o atendeu também chorando, abraçaram-se, beijaram-se e fizeram sexo ali mesmo na sala, sob a promessa de que ele gozaria fora. Porém, logo depois, ela voltou a dizer que estava mesmo de caso com o soldado Morais e que não o largaria, porque o policial em menos de um mês a levara para conhecer seus pais e lhe prometera alugar uma casa para os dois morarem juntos.

- Tu não acha que isso tá rápido demais não, Cidinha?

- Melhor do que você que tá comigo há três anos e não toma uma atitude.

Tomaram banho, fizeram sexo novamente no banheiro e, quando Branquinho se despediu, ela disse:

- De repente, a gente faz isso de novo.

Minutos depois, a namorada recebeu o recado de que o soldado Morais a esperava logo no largo da Freguesia, arrumou-se e foi ao seu encontro. Ele a levou para um motel.

- Goze fora, tá?!

2)
Sandro Cenoura mandou todo mundo se entocar , só iria voltar a combater quando Bonito voltasse, estava com medo, não tinha pulso para comandar a quadrilha. A polícia estava dando em cima, os jornais todos os dias faziam matéria sobre Cidade de Deus, seu nome sempre vinha estampado na primeira página.

Entocou-se na casa de um amigo, a mulher este estava sumida havia mais de uma semana, poderia abrigar Cenoura sem ter de ouvir falação por ter colocado bandido dentro de casa. Cenoura, com as mãos trêmulas, coração acelerado. O companheiro dormia no quarto completamente embriagado, rangia os dentes, soltava gases, remexia-se na cama. Que vida desgraçada era a sua, na verdade não queria estar nessa porra dessa guerra, sempre gostara de dinheiro, dinheiro era o que queria, e esse babaca querendo tomar sua boca. Olho-grande, safado; nunca gostou do Miúdo. Lembrou-se do tempo em que trabalhava de faxineiro na PUC, única vez que se fantasiara de otário, pois sabia que não ficaria rico limpando as sujeiras que a brancalhada fazia, e só os otários trabalham com a certeza de que não vão desfrutar das coisas boas da vida. Por isso largara tudo, nunca mais levou aquela desgraceira de vida. Maconha, cocaína, isso é que dava dinheiro, se não fosse o Miúdo estaria rico.


Pensou nos filhos, queria que eles estudassem na PUC, sempre ouviu dizer que escola de padre é que era a boa. Dois filhos. O que poderia deixar para eles? A herança mais visível era a guerra. Bonito bem que poderia voltar logo, para partir com ele para cima de Miúdo com todo o ódio que sentia naquele momento. Matá-lo, tomar a boca da Treze e trabalhar duro um ano; compraria um sítio no interior para criar galinha, faria uma piscina, construiria um banheiro com sauna. Tentou se lembrar de como se fazia coquetel Molotov e nada. Somente a angústia dominava-lhe o espírito. A gastrite voltou a castigá-lo. Leite. Na geladeira somente batatas passadas, um bife preto em cima dum óleo branco encardido. Na prateleira uma garrafa de conhaque, não hesitou. Bebeu tudo para uma noite bem-dormida, se algum inimigo chegasse não teria problema, morreria dormindo. Há certas horas em que a própria morte parece ser extremamente necessária.