Cidade
De Deus
por
Marcelo Costa 28/08/2002
Ação.
Uma galinha presencia a morte de "irmãos". Pagode ao
fundo. A camêra flagra a angústia do galináceo
ao ouvir o barulho de uma faca sendo afiada. Destino. Destino
que nada. A galinha foge, a camêra abre o plano e nos
vemos em uma favela. Alguém grita: "Pega a galinha ai!"
e sai todo mundo atrás do bípede. São mais
ou menos cinco minutos que marcam esse ínicio de filme,
e são cinco minutos soberbos. Uma aula de edição
e uma aula de cinematografia. As imagens conseguem passar todo
pretenso sentimento de um galo condenado a morte. Agora, sabe
o que é melhor? É que os 130 minutos que se seguem
mantém a inteligência, a edição e
a genialidade no limite máximo. Nenhum desperdício,
nenhum exagero. Sim, Cidade de Deus já nasce clássico.
Fernando
Meirelles consegue empregar em seu segundo filme aquilo que
chamou a atenção em sua excelente estréia,
Domésticas, o Filme: ritmo. Meirelles é
um contador de histórias de mão cheia e usa da
melhor maneira o que os recursos do cinema lhe permitem.
Cidade
de Deus conta história da favela homônina fundada
no Rio de Janeiro na década de 60, em uma área
desabitada, duas horas de ônibus de Copacabana. O filme
de Meirelles, baseado no livro de Paulo Lins, acompanha mais
de 20 anos na vida dos moradores, do nascimento pobre da favela
"bancada" com recursos governamentais ao tráfico de drogas
e as constantes brigas pelo domínio do ponto.
O
filme é narrado por Buscapé, um garoto da favela
que nunca teve coragem para entrar no crime e sempre quis ser
fotógrafo. É através da ótica dele
que podemos acompanhar os altos e baixos na vida da favela,
tudo pela disputa do comando do tráfico.
Pelas
lentes de Meirelles flagramos o nascimento de alguns dos principais
bandidos cariocas. Longe dos empregos, sem escolas, sem saneamento
básico, sem luz e transporte e esquecida pelo governo,
os moradores da favela acabam adentrando a criminalidade. Começam
com pequenos furtos até chegar ao grande barato: drogas.
E armas. E formação de quadrilhas. E caos.
Você já viu essa história antes, claro,
fragmentada em noticiários. Aqui ela surge amarrada,
na integra, retratando degradação e violência.
Mas
longe de ser apenas um auto-retrato sobre o pobre destino dessas
pessoas, Cidade de Deus é uma aula de história.
E de realidade. E de cinema. Nos 135 minutos do filme, conhecemos
como funciona o tráfico, da bagunça que o rege,
da sua hierarquização até como surgem os
novos traficantes. Mais. Descobrimos como o governo tem parte
fundamental nisso ao abandonar seu povo a própria sorte.
Com
precisão cinematográfica, dinamismo, edição
sensacional, bela montagem, cores distorcidas, belo roteiro
e piadas na dose certa, Cidade de Deus surge como um
dos grandes filmes brasileiros dos últimos tempos, rivalizando
com a retomada do cinema latino-americano via Argentina (Nove
Rainhas) e México (Amores
Brutos - E
Sua Mãe Também), além de O
Invasor e Abril
Despedaçado, claro. Sua força está
na história, excelente, que não busca pregar dogmas
ou tender a posições, sejam estas políticas
ou religiosas. É apenas uma história contada da
forma mais real possível, sem dramatizações
(os dramas existem, não surgem a toa e nós sabemos
os porques) nem buscando ser educativo. É apenas um "foi
assim", num olhar até poético de quem sabe que,
como cantam os Racionais MCs, nada como um dia após o
outro dia.
Uma
das sacadas geniais de Meirelles é que seu longa traz
no elenco apenas moradores de comunidades cariocas. Antes das
filmagens, realizadas na favela que dá nome ao filme,
além de Nova Sepetiba e Cidade Alta, o diretor e a co-diretora
selecionaram, entre os inscritos, 200 pessoas para a realização
das oficinas de interpretação. Matheus Nachtergaele,
que vive Sandro Cenoura, é um dos únicos atores
profissionais. E as atuações desses não-atores
rendem as maiores surpresas do filme. Alexandre Rodrigues (Buscapé),
Leandro Firmino da Hora (Zé Pequeno) e Phellipe Haagensen
(Bene) têm atuações notáveis no provável
melhor filme de 2002.
Cidade
de Deus coloca o dedo na ferida, mostra o problema, porém,
não traz soluções. Estas devem ser encontradas
pelos governantes que, na pior das hipóteses, não
deveriam cometer os mesmos erros. Não deveriam. Construído
numa área rural a 70 km do centro do Rio, três
horas de ônibus até lá, e projetada para
abrigar 55 mil pessoas, o Nova Sepetiba é hoje o que
era a Cidade de Deus há 36 anos, nascendo como um dos
principais projetos da prefeitura de Anthony Garotinho. Vivendo
e não aprendendo.
Ação.
Ação!!!
|