Sob O CEL #3
Quase Nada Se Modificou
por Carlos Eduardo Lima
Estava eu vendo o show de Roberto Carlos na noite de sábado, gravado em Jerusalém. Matutava com meus botões sobre o quanto o Rei havia se tornado uma figura caricata e distante do que era naquele ponto fulcral da virada das décadas de 60/70 do século passado. Quanto de originalidade e espontaneidade ainda poderia habitar sua mente e seu corpo após tantas idas e vindas do destino e perdas de parentes (enteada, duas esposas, mãe, pai) ao longo do tempo. Como ele lidara com tudo isso sob os holofotes da fama e fortuna? Será que a pálida e triste figura de hoje é o resultado de tudo isso? Ou será que é apenas uma pessoa envelhecendo e deixando de lado aquelas qualidades que só temos quando somos jovens?
Minha divagação sobre a vida do Rei cessou aos primeiros acordes de “O Portão”. Executada lá para o fim do show, minha canção predileta do repertório de RC logo me fez sentir vontade de chorar. Acho que é impossível ouvir “O Portão” sem que algum pingo de emoção tome conta do coração. Talvez seja diferente daqui a cinquenta anos, quando duas gerações de brasileiros já tiver passado a barreira dos 30 anos sem ter em sua lembrança os almoços e jantares de família sonorizados por músicas do Rei. Também não haverá mais a exibição do protocolar especial de Natal com o velho Roberto recebendo convidados e dando sua anuência para o novo sucesso da moda. Essas lembranças terão sumido para sempre, nos deixando – quem nasceu a partir de 1970/80 – prisioneiros de uma circunstância histórica.
O som de Roberto Carlos nos anos 70 é o som das paradas de sucesso, livre de mensagem política (quase sempre), calcado em mensagens religiosas (quase sempre) e permeado pela vontade do Rei em se dirigir para um público adulto. Era inofensivo, bondoso, simples, mas com uma característica marcante: a capacidade de despertar a identificação com o ouvinte. Quem está na casa dos 20, 30, 40 anos tem potencial para se emocionar com canções do Rei feitas nos anos 70. É o que nossas mães, pais, avós ouviam no rádio, viam na televisão, compravam na loja de discos mais próxima. Os lançamentos vinham anualmente, no mês de dezembro, para servir de presente de Natal. A partir de 1974, ano do lançamento do disco que tem “O Portão”, a Globo passou a exibir o especial de Natal do Rei, na noite de 24 de dezembro. Roberto deixava de ser um cantor/compositor de sucesso massivo e acumulava a partir daí um salário de funcionário da emissora de TV. Isso foi decisivo para uma mudança gradativa em sua carreira, uma pasteurização progressiva de seu repertório e a necessidade de emitir opinião sobre assuntos contemporâneos, entre os quais a ecologia, a brasilidade, o fim da ditadura, a inclusão social dos anos 90…
Em 1974, portanto, foi lançado mais um LP homônimo do Rei, cuja a terceira faixa é “O Portão”. A letra é uma das mais harmoniosas construções de Erasmo Carlos e Roberto. É possível sentir cheiros e detalhes precisos de uma jornada de arrependimento e dor, metáfora talvez dos próprios autores, na faixa dos 30 anos, meio desbundados após a fama, enfrentando um período de crescimento da MPB mais politizada de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gilberto Gil. Os companheiros de Jovem Guarda derivaram para o território do popular, sem qualquer preocupação em revestir sua música de algum verniz buscando atingir a classe média. A Roberto e Erasmo restava manter o rumo num híbrido de pop e romântico, no qual canções como “Meu Mar” e “O Portão” são highlights. Se em “Meu Mar”, canção do disco “Sonhos e Memórias”, lançado por Erasmo em 1972, o Tremendão projetava para seu futuro o desejo de morar num paraíso a beira-mar, em “O Portão”, os dois concluem que é bom poder voltar pra casa e ser recebido pelos pais. É como se voltassem de uma guerra, de um lugar onde não foram bem vindos, feridos, sofridos e necessitados daquilo que chamamos “colo de mãe”. Quem não passou por isso na vida? Quem não saiu de casa em busca de sonhos, de aventuras e se estrepou? Quem não sente a necessidade de não ter responsabilidades mesmo que seja por pouquíssimo tempo?
O legal em “O Portão” é que os autores não se esquecem de algo muito importante quando se volta pra casa dos pais: lá ficou grande parte de nós, perdida em lembranças, sentimentos e, muito provavelmente, coisas mal resolvidas. Quando o personagem da letra olha para seu retrato na parede e reflete sobre o porquê de sua volta, admite ao mesmo tempo uma derrota clamorosa para a vida, notando que precisa se reencontrar para poder sair novamente em busca de algo. O encontro com a figura paterna/materna que o abraça no fim da música é a própria redenção de uma geração que se arvorou a combater um monte de coisas, a emitir opinião e participar de uma série de processos históricos de mudança social – sem sucesso. “O Portão”, meus amigos, é uma canção sobre porrada na cara, sofrimento e a necessidade de dar dois passos para trás, visando poder andar pra frente de novo. Geração Hippie voltando pra casa? Militantes de esquerda saindo da prisão? Gente de trinta anos precisando agir como adulta depois de uma adolescência prolongada? Qualquer resposta é válida para descobrir de onde vem o personagem da canção.
Sim, se você está pensando que essa letra ainda pode ser atual, não há qualquer engano. Às vezes o processo descrito aí pode se dar em apenas um dia de vida, noutras pode demorar muito tempo. O que fica claro é que quem volta pras coisas que deixou, o faz por necessidade, mesmo que se sinta mais maduro e forte, nunca vai se sentir imune às coisas que deixou, que viveu, ao cachorro que late assim que nos vê.
Duas notas sobre esse texto:
– Eu o escrevo em tom muito confessional, não só porque já precisei voltar pra casa, mas, sobretudo, pelo fato de haver experimentado o fim daquilo que eu sempre entendi por CASA nesses últimos dias. Após a morte de minha mãe, colocado o apartamento para alugar, foram-se móveis, recordações, tralhas caseiras que eram o referencial de lar. Não é fácil passar por isso.
– Olhe bem o vídeo do comercial de cigarro que foi sonorizado pela canção lá no início dos anos 70. Um jovem Herson Capri volta pra casa, é recebido por pais velhinhos, amigos e uma namoradinha de cabelo curto, todo feliz. Sim, o Rei musicando um comercial de cigarros…
CEL é Carlos Eduardo Lima, historiador, jornalista e fã de música. Conhece Marcelo Costa por carta desde o fim dos anos 90, quando o Scream & Yell era um fanzine escrito por ele e amigos, lá em sua natal Taubaté. Já escreveu no S&Y por um bom tempo, em idas e vindas. Hoje tem certeza de que o mundo como o conhecíamos acabou lá por volta de 1994/95 mas não está conformado com isso.
CEL, Parabens pela coragem de escrever sobre Roberto Carlos, num site voltado para “jovens” , musica alternativa, etc.
Eu até os 20 anos, odiava Roberto Carlos. Exatamento porque meus pais ouviam, tocava no radio a exaustao. Hoje ja vejo com outros olhos, e sim tem muita coisa boa no repertorio dele.
O foda, è mesmo esse especial todo final de ano.
Muita exposicao joga mais contra do que a favor de qualquer artista.
Carlos… Texto lindo, cara. Não conheço bem a obra do Roberto, mas “Quase nada se modificou”, na minha leitura, é muito mais sobre uma situação que muitos estão começando a vivenciar por estes tempos. Eu e meus amigos, por exemplo. E usar “O portão” para transmitir a mensagem foi uma ótima sacada. Vou divulgar o texto no meu blog, certamente. Parabéns.
Roberto Carlos é patrimônio nacional
http://veiaurbana.wordpress.com/2011/04/19/roberto-carlos-70-anos/
:~
O Portão tem uma das frases mais singelas e lindas de toda MPB.
“Meu cachorro me sorriu latindo”
É demais!
Acredito que seja da lavra do Erasmo, pois o mesmo tem uma música, não me lembro o nome agora, que diz:
“Quero a amizade de um cachorro manso”
PS: O Roberto do fim dos anos 60 e começo dos 70 é uma das jóias de nossa música.
Zé Henrique, a músia do Erasmo que tem esse verso do vira-lata é, justamente “Meu Mar”, que eu menciono acima. No disco dele, o Sonhos e Memorias, a canção que abre o Lado A é “Largo da Segunda-Feira”, na qual o Tremendão relembra sua infância na Tijuca, RJ. Os caras estavam se reavaliando mesmo.
Obrigado pelos comentários elogiosos, pessoal.
Infelizmente ele se tornou tudo isso mesmo. Vejo o absurdo quando escuto músicas como “A história de um homem mau”. O repertório antigo é sensacional até início dos anos 70. Minhas lembranças são fortes, até porque herdei do meu pai toda a coleção de vinis de Roberto.
Belo texto, confessional, mas por que não?
A coisa mais incrível sobre RC para mim é que eu nunca tive um disco dele em casa (nem na casa dos meus pais) e eu sei praticamente todas as musicas dele até a década de 80…depois q a coisa descambou – quando ele começou a usar brinco de pena de passarinho (o horror) – me mantive ao largo da carreira do rei.
Hoje, acho q a figura dele volta ao trono por causa da idade. Ele posa de jovem ainda (e o erasmo também – fiquei impressionada com o erasmo outro dia, cheio de rugas mas tentando manter a fama de mal kkkkkkkkkk) mas tá velhinho. É hora de louvar o tanto q ele fez pela música pop brasileira nos anos 60 e 70 e esquecer as mazelas de depois.
Antes q alguém me acuse: nada contra velhinhos, hein? pelo contrário. Sou do tipo que adora uma ruga com rock & roll!!!
Sensacional, fiquei arrepiado!!!!!!!!!!!!!
Ahh, que interessante, Cel, a frase é da música que vc mencionou.
Vanessa da Mata(Aiaiai), O jeito do Erasmo e do Roberto posarem de jovens são completamente diferentes!
O Roberto posa de jovem fazendo botox e bronzeamento artificial, mas é velho por dentro.
Já o Erasmo é velho por fora, mas mantém a inqueitude dos que estão começando a vida.
Como vc falou em ruga e rock’n’roll, me lembrei dos Stones.
Keith Richards, falando sobre Mick Jagger, certa vez disse:
“As vezes eu penso: Para aonde foi aquele meu amigo?”
Acho que o Erasmo de vez quando pensa o mesmo.
belo texto. Robertão é daquelas memórias afetivas que não desaparecem jamais. abs
O Roberto poderia ser menos maníaco com um monte de coisas e valorizar o repertório que ele pouco visita hoje em dia. Os TOC’s dele nos impedem de ouvir um monte de coisas legais e necessárias. E, sim, a comparação dele e do Erasmo com Mick e Kiff faz sentido.
concordo totalmente zé henrique…o jeito de erasmo e rc posarem de jovens é diferente, mas ambos são estranhos. Acho o Keith o velho rock&roll melhor de todos. E sim, a comparação entre as duplas faz sentido mas o RC envelheceu muito pior do que o mick
rapaz, que coisa a música nos promove. Roberto é demais.
Zé, em relação ao lance da letra, o Paulo César Araújo conta naquele livro proibido, que o próprio roberto ficou pensando na solução da letra. A ideia foi dele mesmo. Achei o texto sensacional, só discordo quando dizem que ele não falava nada de político ou social. Em plena ditadura ele cantou ‘será que tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda’. e fez Debaixo dos Caracóis de seus cabelos, pro Caetano exilado. Em Negra, ele louva o amor interracial, o que não era comum. O Divã e Traumas são muito confessionais, no nível de Mother ou God, de John Lennon. E o lance de ter aberto o caminho para a música soul talvez tenha sido uma das maiores contribuições dele para a música pop brasileira. O cara foi foda!
Ahh, massa saber disso, Ismael. Não li nada desse livro, pensei que a frase era do Erasmo.
Vanessa, dessa vez sou eu que concordo contigo – o Roberto envelheceu bem pior que o Mick(tb, é difícil alguém ter envelhecido pior que o cara, né? rsrrs. E o Erasmo tb nunca foi tão louco – no bom e no mau sentido – quanto o Richards.
Mas o destino das duplas tem a ver, sim.
o bacana desse livro- e não sei porque o roberto pirou com ele- é que dimensiona a importancia musical mesmo do RC. mostra que ele absorveu a bossa nova antes de toda a galera que depois embarcou na viagem (caetano, chico, gal etc), sendo elogiado (e surpreendendo ao chico) pelo João Gilberto. mostra que RC foi o primeiro a por uma banda de rock pra tocar em estúdio (não se fazia isso à época) e o primeiro a por um contrabaixo elétrico numa canção. Também mostra o impacto que foi ‘quero que vá tudo pro inferno’. Inclusive com depoimentos de gente como Djavan, Fagner, Zé Ramalho, Alceu…dizendo que lembravam exatamente a primeira vez que ouviram a música. É interessante porque mostra muito da contemporaneidade de RC com o que se fazia fora, como Animals, Procol Harum, Zombies. e depois entra o lance da soul music, Ele incentivou o Tim Maia a compor Não Vou FIcar. O tim apareceu com uma balada e ele disse que gravaria uma dele se fosse mais porrada, mais agitada. O Tim voltou com essa. É um livro imperdível e o RC deu um tiro no pé quando mandou recolher…
Dei conta de que tinha chegado à maioridade quando Outra Vez passou a fazer sentido para mim (eu sei, a canção não é do R.C., mas é a versão feita por ele que me assombra).
O texto é de 4 anos atrás e continua atual.
Belo trabalho!