texto de Marcelo Costa
fotos de Fernando Yokota
Em muitos textos sobre shows no Scream & Yell, o leitor tem se deparado com elocubrações sobre nostalgia, essa conexão com o passado que, na música, contamina 95% das bandas no mundo (Data Chute Scream & Yell), de Interpol a Garbage, de Information Society a Smashing Pumpkins e tantos outros. Trata-se de uma zona de conforto, afinal muitos artistas sabem, em seu amago, que nunca vão poder competir com suas maiores obras, e por isso é melhor se render a elas em turnês que celebram os anos de glória a tentar criar um material novo e instigante (pois o público, cada vez mais velho e nostálgico, também desdenha o desafio de ouvir coisas novas, preferindo uma maneira de se reconectar com o seu próprio passado).
Nesse desenho de turnês de artistas com carreiras de décadas, alguns nomes, no entanto, fogem deste escrutínio da segurança, pois ainda que abram espaço em seus concertos para material mais antigo, têm no material novo seu grande motivador artístico, daquilo que os faz sair do hotel e enfrentar o público toda noite em busca de algo que não se mede por centenas de vozes cantando junto ou fazendo selfie enquanto a banda passa. Gente como Nick Cave e PJ Harvey, por exemplo. Ou o Tindersticks, banda formada em Nottingham, na Inglaterra, em 1992, que lançou em 2024 seu décimo quarto disco, “Soft Tissue”, espinha dorsal de seus shows recentes, cujo set list ignora hinos dos primeiros discos em prol de material novo.
Após passar pela América do Norte (em sua primeira turnê na região em 16 anos!) para shows em Nova York, Chicago, Los Angeles, São Francisco, Toronto e Montreal, a formação atual em quinteto do Tindersticks desceu, pela primeira vez na carreira, para a América do Sul, para shows em Santiago e São Paulo (uma apresentação em Buenos Aires foi cancelada devido a uma mudança de horários de voo pela companhia aérea na Cidade do México), e quem esperava um set list especial para o público latino ganhou apenas uma concessão a clássicos antigos: “Tiny Tears”, facada emocional presente no segundo disco (clássico) da banda, de 1995, que estava ausente do set desde janeiro de 2023 – tendo ficado de fora de toda a turnê norte-americana –, apareceu como presente no bis dos shows latinos (a única música que eles lançaram no século passado presente na noite).
Tai uma banda que não vive do passado. Não à toa, as oito músicas de “Soft Tissue” entraram nos shows que o grupo fez em 2025, o que é um sinal de fé no repertório do disco. Stuart A. Staples, o líder da banda, explicou em entrevista ao Scream & Yell: “As canções (de ‘Soft Tissue’) são muito fortes, mas elas se arriscam o suficiente ao ponto de, musicalmente, tocarem em certas coisas nas quais nunca havíamos tocado antes”. Esse é um ponto interessante, pois o show acaba se tornando não apenas uma novidade para o público, mas também para a própria banda. Ao invés de brigar com seu próprio repertório (tem artista que mastiga as letras de seu maior hit com certa dose de ódio – Kurt Cobain e Marcelo Camelo manjam bem do assunto), o Tindersticks segue com ele de mãos dadas, e leva consigo o público para um passeio arrebatador.
Em São Paulo, não poderia existir lugar melhor para abrigar o Tindersticks do que o Auditório Simon Bolivar, no complexo do Memorial da América Latina. Trata-se de um show ótimo para se ver sentado em meio a penumbra, pois são canções que, em muitos momentos, soam como se fossem feitas para sonorizar finais de noites em cabarés dos anos 1920. Sem contar que há uma elegância, uma delicadeza e um silêncio que percorrem toda a apresentação de modo tocante, permitindo que detalhes aparentemente inofensivos se destaquem, como em “Trees Fall”, em que o notável baterista Earl Harvin segura, em determinado momento, em uma das mãos, uma baqueta escovinha, e na outra uma baqueta spanking (bumbo), num contraste visual que diz muito sobre a própria música da banda.
Outro fato que chama a atenção é que, diferente das apresentações que a banda faz acompanhada de quarteto de cordas em muitos lugares da Europa (como essa em Londres, 2009), nessa turnê pelas Américas, esses sons são emulados ao vivo tanto por pedais na guitarra quanto disparados nos teclados, o que remete – e muito – ao grande Mercury Rev, que é uma conexão óbvia, ainda que muita gente os aproxime primeiramente dos Bad Seeds de Nick Cave. A diferença é que enquanto Jonathan Donahue tende a Disneylândia, ao espaço e ao cinema de estrada, Stuart A. Staples mira aquele boteco escuro às 5 da manhã frequentado por bêbados, solitários e perdidos (muitas vezes os três adjetivos personificados na mesma pessoa)…
Jonathan Donahue é “Sing” (principalmente na fase “All is Dream”)
Stuart A. Staples é “Folhas de Outono” (e, claro, Claire Denis)
Um show do Tindersticks é recheado de pequenos grandes momentos sem necessitar de solos angulosos de guitarra ou viradas barulhentas de bateria. É tudo tão no seu lugar dentro dos arranjos das canções do grupo que basta um riff mais grave de Neil Fraser, por exemplo, em “Show Me Everything” ou “Medicine”, ou uma linha de baixo mais destacada de Dan McKinna (como em “Lady with the Braid”) para que o espectador absorva as nuances de espírito que aquele momento busca registrar através de sons e melodias. É um momento compartilhado, não algo isolado (como aquele hit que você ouviu tanto e tem tanta história sua envolvida que você acredita ser seu, ainda que seja um hit… de muita gente). É uma apresentação silenciosa e, ao mesmo tempo, grandiosa, principalmente se você mergulhar dentro dela.
Em São Paulo, o público iniciou a apresentação de forma acanhada, tentando entender a dinâmica do quinteto e do próprio show. Sem trocar palavras com a plateia, a banda seguia seu script, o que foi conquistando a plateia a cada número. O crescendo foi nítido: a partir da décima canção da noite, os aplausos começaram a soar cada mais efusivos conforme o número terminava, deixando a banda levemente desconcertada: em certo momento do trecho final, em que seis canções de “Soft Tissue” são tocadas em sequencia, os aplausos soaram tão alto que os integrantes se entreolharam tentando entender a mágica que estava acontecendo.
Em 20 canções esmagadoramente sutis destiladas por cerca de uma hora e quarenta minutos sem pressa, mas com classe e elegância, o Tindersticks ofereceu ao público não uma versão sua (e nossa) do passado, mas seu próprio “momentum” artístico num daqueles shows que poderiam durar horas e dias, quiça meses e anos, claro, com a penumbra devidamente abastecida de um bar com drinques, cigarros e talvez uma mesa de qualquer jogatina, só para decoração – os traumas, os fantasmas e a melancolia, cada um poderia levar os seus, o que superlotaria o lugar… de ainda mais silêncio. “You need a place to fall / I need a place to hide”, como canta Staples em certo momento da noite. Estávamos, todos nós, no lugar certo. Nós, a música e nada mais.
Set List
How He Entered (“The Waiting Room”, 2016)
A Night So Still (“The Something Rain”, 2012)
Trees Fall (“No Treasure But Hope”, 2019)
Falling, the Light (“Soft Tissue”, 2024)
Nancy (“Soft Tissue”, 2024)
Second Chance Man (“The Waiting Room”, 2016)
Lady With the Braid (“Distractions”, 2021)
Willow (Trilha sonora do filme “High Life”, 2019)
The Bough Bends (“Distractions”, 2021)
Medicine (“The Something Rain”, 2012)
Always a Stranger (“Soft Tissue”, 2024)
The Secret of Breathing (“Soft Tissue”, 2024)
Turned My Back (“Soft Tissue”, 2024)
Don’t Walk, Run (“Soft Tissue”, 2024)
New World (“Soft Tissue”, 2024)
Soon to Be April (“Soft Tissue”, 2024)
Bis
Stars at Noon (Trilha sonora do filme “Star at Noon”, 2022)
Show Me Everything (“The Something Rain”, 2012)
Tiny Tears (“Tindersticks II”), 1995
For the Beauty (“No Treasure But Hope”, 2019)
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br
Perfeito!
Que texto magnífico.