Entrevista: Matt Elliott reflete sobre os 20 anos de “Drinking Songs” e o fim dos dias

entrevista de Guilherme Lage

É comum no meio jornalístico o uso da expressão “lost media”. Ela diz respeito a conteúdos que se “perdem” em uma câmera, arquivo de texto, áudio, seja lá o que for. Com o tempo, algumas delas acabam se tornando algum tipo de lenda urbana, rendem um cochicho ou outro entre admiradores de determinados artistas, curiosos para saber o que foi dito por seus ídolos em dado momento de suas histórias. Nunca imaginei que um dia seria eu a soltar algo assim ao mundo. Esta entrevista, feita com Matt Elliott, foi dada como “perdida” por um bom tempo. Várias noites mal dormidas depois, pensando na clássica lamúria dos escritores de “cara, como isso foi acontecer comigo?” como em uma grande reviravolta, boa parte da conversa pôde ser recuperada.

Apesar do desgosto que tomou conta de boa parte do ano, por ter sido alvo do azar, talvez seja essa má sorte momentânea que torne a conversa um pouco especial: recuperada via escafandro em desesperadas tentativas, “tape trading”. Matt Elliott é como uma espécie de herói escondido para admiradores da música folk. O britânico tem a habilidade de tocar assuntos dos mais íntimos com uma sinceridade capaz de fazer qualquer coração de pedra sangrar. Natural de Bristol, começou a carreira arriscando com os sintetizadores, explorando emoções na música eletrônica e no noise, com a Third Eye Foundation, que leva para frente até hoje, desde que começou timidamente nos anos 1990.

Em 2004, atingiu seu ápice, com “Drinking Songs”. As músicas são feitas para isso mesmo: beber, afogar as mágoas quando o mundo parece um lugar pesado demais, terrivelmente avassalador. Naquele álbum, encontrou a identidade que se tornou conhecida pelos fãs. Efeitos na voz e no violão, quase inéditos no que era conhecido como “dark folk” a àquela altura. Em 2023, o músico lançou um dos melhores trabalhos de sua carreira, “The End Of Days”, no qual se dedica a um instrumento pouco convencional para quem vai assistir a um artista solo: o saxofone, que ele mesmo admite “eu não queria tocar, achava um instrumento chato (risos)”.

Apesar da fama de “sadsack”, de triste demais, o homem por trás da obra não é assim. Pelo menos não aparentou ser, durante a conversa. As risadas não foram raras, assim como sua abertura para falar das coisas, por mais pesadas que fossem, como luto e guerras. Dentre uma frase e outra, as unhas compridas, característica clássica dos violonistas, iam ao cabelo ou até à barba, enquanto apontava uma certa surpresa “uau, não acredito que estou falando com alguém da América Latina”. Confira a entrevista.

“The End Of Days”, como você chegou a esse conceito? Começou com o disco ou antes veio a faixa?
Hum… essa é uma pergunta um pouco difícil, porque realmente não consigo me lembrar direito quando comecei com o conceito de “The End of Days”. É tão ridículo, eu toquei essa música ao vivo não faz nem duas ou três semanas, mas realmente não consigo me lembrar exatamente de onde veio. “End Of Day”s, a faixa, não foi a primeira que compus, acho que tudo começou com “Flowers For Bea”, acho que é minha música favorita do disco. Tudo começou meio que ali, então o conceito foi acontecendo. Realmente, não consigo me lembrar. Escrever as letras é um pouco difícil para mim, mas gosto muito da faixa. Acho que o conceito foi acontecendo conforme eu ia escrevendo o disco.

Já que você mencionou “Flowers For Bea”, a letra realmente me pegou, porque o luto é uma experiência tão humana, qual foi a ideia por trás da música?
Na verdade, aconteceu algo perto da minha casa, a uns dois quarteirões daqui. Um cara passou a noite inteira bebendo e se drogando e, no início da manhã, atropelou uma enfermeira que estava passando. Na verdade, por pouco ele não atropelou a mãe da minha filha bem na frente dela. Ela passou por ali poucos minutos depois do atropelamento, seria horrível se tivesse acontecido algo a ela. Eu me lembro que depois do acidente, eu passava por onde o atropelamento havia acontecido e havia centenas de flores por lá, todos os dias, Eu passava por lá e percebia como essa pessoa, que era obviamente muito amada, fazia falta para outras pessoas.

O engraçado do luto, como você disse, é que todo mundo experimenta de forma diferente. Muita gente vai dizer “já é hora de superar” ou você pensa: eu preciso seguir em frente. Mas o choque, ele permanece por muito tempo. Eu passei por isso com meu melhor amigo, em 2016, ele também morreu e eu me lembro de sentir um choque imenso, não conseguia reagir. Quando passava por aquelas flores, via elas apodrecendo e pensava como o luto é diferente para todo mundo. Foi também nessa época que eu comecei a tocar saxofone. Tive um 2019 completamente louco, turnês atrás de turnês por toda a Europa, Ucrânia, Alemanha, França, e me lembro de pensar no fim do ano: nossa, eu adoraria não fazer nada durante um ano inteiro. Então, a covid aconteceu e eu pude fazer isso sem me sentir culpado. Porque eu me sinto um pouco culpado quando não estou trabalhando, não estou em turnê. Quer dizer, quando estou em casa também trabalho, componho, mas é algo que não é a mesma coisa. E para falar a verdade, eu gostei desse tempo afastado, gosto de ter um tempo sozinho comigo mesmo, então não me afetou tanto. Mas no fim do ano, já estava me sentindo um pouco entediado, foi quando comecei a tocar saxofone para valer e começar a gostar do instrumento e compor com ele.

Falando no sax, como você decidiu pegar e começar a escrever músicas com ele?
É engraçado, porque eu costumava odiar saxofone (risos). Eu me lembro nos anos 90, eu trabalhava numa loja de discos e meu chefe era simplesmente apaixonado por jazz e Miles Davis, eu não era tão chegado na época, eu era um garoto gótico, gostava mesmo era de Joy Division e coisas do tipo. Mas me lembro quando comecei a usar diferentes instrumentos no meu show, e o meu violoncelista tocava de uma forma magistral, puxava uma nota e a segurava de uma forma que simplesmente não é possível de se fazer com o violão. Eu fiquei pensando que seria legal ter um instrumento que soasse assim tão livre. Primeiro eu pensei em comprar um clarinete, sempre amei clarinete, pensei que seria legal usar um nas músicas, mas depois, pensei no saxofone e é um instrumento muito diferente, pensei que aquele era o instrumento certo para compor. Não sei, quando você toca um instrumento, sua relação com a música muda muito, porque você começa a ver tantas outras possibilidades de compor, e acho, de verdade, que todo mundo deveria tentar tocar um saxofone.

Na época da pandemia foi engraçado, porque me lembrei do meu chefe, porque eu simplesmente não parava de ouvir Miles Davis, então decidi que o saxofone era o instrumento certo para utilizar nas minhas próximas composições. Acho que foi uma boa decisão na minha vida, minha carreira é feita do que considero boas decisões. Começar a compor como comecei foi uma boa decisão, me mudar para França há 20 e poucos anos foi uma boa decisão, acho que é assim que as coisas funcionam. Me lembrou a época quando eu estava escrevendo o “Drinking Songs”, em que eu comecei a experimentar com o violão e ver onde ia dar.

Já que você citou o “Drinking Songs”, me lembro que conheci sua música por acaso, por meio desse disco. Faço parte de um grupo no Facebook onde as pessoas compartilham diferentes tipos de música, de jazz fusion a black metal, e de repente “The Guilty Party” apareceu por lá e todo mundo ficou de cara. Eu pensei “preciso conhecer mais sobre esse cara”. Você ouve muito isso? Pessoas que conheceram sua música por acaso?
Sim, na verdade, gosto muito disso. Todo mundo vem falar comigo que conheceu minha música por acidente, e realmente gostou daquilo e decidiu conhecer meu trabalho mais a fundo, e geralmente isso acontece justamente com o “Drinking Songs”. De uma hora para a outra as coisas começaram a crescer e alguém chegou para mim e disse “você tem 1 milhão de visualizações no Youtube” e eu pensei: o que? Porque eu estava acostumado a ter 10 mil, 15 mil visualizações. Dali por diante as coisas começaram a crescer, de repente eu tinha 4 milhões de visualizações. Eu não me importo tanto com isso, com ser famoso e nem nada disso, mas poxa, isso é realmente uma grande validação do seu trabalho, não é?

Mas aí, o Youtube mudou algumas regras e tudo sumiu, de repente pensei “ué, onde foi parar a minha validação?” (risos). Mas eu gosto muito do fato de ter um meu pequeno mundinho musical, em que as pessoas descobrem por acaso e vêm falar comigo, acho uma coisa muito especial. Parece que é justamente como as coisas devem ser, parece que é um pequeno sussurro do universo, e quando isso acontece, você deve ouvir. Bom, pelo menos, eu acredito nisso. Acredito nesses sinais do universo. Acredito, por exemplo, que meu saxofone era destinado a mim. Ele é um instrumento lindo, feito na década de 1990, assim como outros instrumentos que eu tenho, que são dos anos 1950. Para mim, é incrível.

Uma coisa que acho interessante no seu trabalho é que você usa sua voz como um verdadeiro instrumento, utiliza várias camadas vocais nas suas músicas, noto isso principalmente no “Drinking Songs”. É algo que você usa como uma assinatura própria?
Sim. Eu não sei se já disse isso, mas letras para mim são um pouco difíceis de fazer, mas no “Drinking Songs” (2004) eu queria fazer um disco que soasse como várias pessoas cantando juntas num bar. Geralmente, num bar, as pessoas cantam sobre futebol, coisas assim. Eu queria fazer algo como pessoas cantando sobre como a vida é triste, como é disfuncional. Então, essa parte de utilizar várias camadas da minha voz, vem daí. Era como se fosse um coral. Eu me lembro que quando comecei a cantar, realmente não gostava muito da minha voz, é natural. Quando você ouve sua voz gravada a primeira vez, pensa “meu deus, que porra é essa? É horrível”. Isso começou até antes, durante o “The Mess We Made” (2003), mas pude contar com grandes produtores que me ajudaram nesse processo de gravar as vozes em camadas, o que acabou se tornando algo que eu acho sim uma assinatura bem interessante do meu trabalho.

Você vem de uma cena DIY de Bristol dos anos 1990. Bristol, Inglaterra, 20 anos depois da explosão do punk, como as pessoas reagiram a esse tipo de música folk, eletrônica, jazz?
Bom, era uma cena DIY bem pequena. Naquela época Bristol ficou conhecida por conta do Portishead e do Massive Attack, então não era tanta gente assim que prestava atenção na nossa cena. Acontece que muita gente daquela cena também deixou de fazer música, a galera começou a ir para a faculdade. Eu não, fui trabalhar em uma loja de discos e foi aquilo que me chamou atenção na época. Na verdade, não mantenho tanto contato com a turma daquela época, tenho mais contato com a Janet aqui e ali, mas com o tempo nós acabamos nos distanciando.

E o que mais te inspira para escrever ultimamente?
Olha, acho que ainda mantenho alguma coisa idealista, porque eu também, assim como as outras pessoas, muitas vezes não gosto de como as coisas são no mundo, se você me entende. Eu me sinto uma pessoa extremamente sortuda, porque tenho o melhor trabalho do mundo. Realmente encaro fazer música como a melhor coisa de todas, mas também ainda sinto muita raiva de ver as coisas que acontecem no mundo. É frustrante ver guerras, ver o que a muitas crianças são submetidas, pessoas vivendo em condições desumanas. Então é impossível não ter inspiração para escrever. Porque o próprio mundo nos confronta com diversas situações que desafiam nossa própria percepção de vida.

Pois é, enquanto conversamos agora mesmo, há crianças sendo mortas na Palestina
Sim! Eu fiz um post sobre isso há algum tempo, sobre o genocídio em Gaza e as pessoas me atacaram demais. Eu geralmente não sou de dar a minha opinião nas redes sociais, mas me senti obrigado a fazer. Eu quase me arrependi por conta dos ataques, foi uma coisa surreal, mas mantive o que tinha dito. Me espanta muito a indignação seletiva das pessoas, especialmente em um evento como esse. Sim, no 7 de outubro, sei que houve 1200 pessoas mortas em Israel, mas se colocarmos em perspectiva, essas 1200 pessoas são mais importantes que outras 30 mil assassinadas em Gaza? É algo que me entristece e surpreende bastante durante este tempos que vivemos. E é até uma coisa que me motivou a escrever, porque é isso que vejo, o fim dos dias.

– Guilherme Lage (fb.com/lage.guilherme66) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.

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