texto de Gabriel Pinheiro
Imagine um povoado incrustado no interior da Argentina, entre as montanhas e uma densa floresta. Durante o inverno, a paisagem é ofuscada pelo branco intenso da neve. Ali, uma população de não mais de cem pessoas vive uma vida comum, ordinária. Entre o trabalho e o lar, entre as conversas com vizinhos e um programa diário obrigatório: assistir ao capítulo inédito de uma novela na televisão. Uma vez ao ano, essa pequena comunidade realiza o Festival da Neve, momento em que sua pequena população se reúne, numa celebração das raízes alemãs que marcam a fundação daquela comunidade. Isso apenas até o Festival de 1987. “O massacre” (2024) é o primeiro romance do argentino Luciano Lamberti publicado no Brasil pela Darkside Books, com tradução de Diogo Cardoso.
O Festival da Neve de 1987, no povoado argentino de Kruger, se transforma num verdadeiro festim diabólico. Sem explicações, uma espécie de surto ou insanidade coletiva toma conta de sua quase centena de habitantes, que começam a atacar e a matar uns aos outros. Não há motivo aparente para tais atos brutais: há apenas a mais pura e intensa violência. Neste dia festivo, quase a totalidade da população é assassinada e os poucos sobreviventes viverão assombrados por aquilo que testemunharam.
“O massacre” é uma pequena e bem lapidada jóia de terror. Enxuta, a narrativa acompanha a cidade de Kruger pré-massacre, no dia em questão e em períodos futuros, onde as perguntas permanecem sem respostas conclusivas. Luciano Lamberti trabalha com diferentes registros, que trazem um tom fortemente documental para a trama ficcional. A narração em terceira pessoa, que mergulha tanto no interior de casas quanto dos personagens, é intercalada com registros como inquéritos policiais, depoimentos, anotações de diário, entrevistas, descrições de fotografias e trechos do roteiro de um folhetim televisivo acompanhado diariamente por quase toda aquela comunidade. Kruger ganha realidade pelas mãos habilidosas de Lamberti.
O fatídico dia é narrado com riqueza de detalhes – um ponto de atenção para os estômagos mais fracos. Há um capítulo onde, como uma obra de Hieronymus Bosch, diferentes cenas se desenrolam simultaneamente. O texto, como uma câmera cinematográfica em travelling, parece passear, flutuar por diferentes casas, cômodos e ambientes de Kruger e, em todos deles, um horror inexplicável domina a cena.
“O massacre” é uma reflexão sobre a memória e o esquecimento e sobre a inexplicabilidade de uma violência que parece constituir o próprio humano historicamente. Mais um exemplar valioso da literatura de gênero latino-americana e seu olhar para os esqueletos no armário ao sul da Linha do Equador. “Se alguém se dispõe a investigar com um mínimo de rigor, na história argentina, na história universal, verá que ela está repleta de casos como esse. As pessoas se esquecem deles, um tanto pelo anseio do novo e outro porque é mais saudável esquecer”.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.