Entrevista: “O nosso punk é o punk 77, garage, rock 1960, Stooges, New York Dolls, MC5”, diz Clemente sobre o Inocentes

entrevista de Leonardo Vinhas

“Antes do Fim” parece um título temerário para uma banda que tem mais de 40 anos de carreira. Mas calma: o Inocentes não parece ter planos imediatos de passar a régua na sua trajetória, iniciada em 1981. Na verdade, “Antes do Fim” batiza seu primeiro álbum acústico, no qual algumas das melhores faixas da banda ganham releituras “desplugadas” inspiradas pelas raízes do rock’n’roll..

Banda “punk” lançando disco acústico não é novidade: os argentinos Attaque 77 já o haviam feito em 2012. Só que, enquanto o deles havia sido gravado no pomposo Teatro Opera com uma banda “inflada”, cheia de convidados, o dos brasileiros é despojado, gravado em estúdio só com um órgão aqui e ali, e procurando reencontrar a essência rocker de cada canção. Longe de querer emular a “fórmula” envernizada que ficou popular graças ao programa MTV Unplugged, o que o Inocentes faz nesse disco é beber no rock’n’roll, rockabilly, folk e country para trazer vida nova às suas canções.

Dá tão certo que algumas delas parecem ganhar sua versão definitiva: “Ele Disse Não” e “Deixa Pra Lá”, por exemplo, são muito superiores às gravações originais de estúdio. Outras, como “Expresso Oriente” e “Nem Tudo Volta”, podem não chegar a tanto, mas decididamente ganham vida nova e se mostram mais atraentes que nunca.

Outras canções não sofrem grandes mudanças musicais, mas a roupagem acústica ajuda a ter mais foco nas letras. É o caso de “A Face de Deus” e “O Homem Negro”, duas das melhores composições da banda. E evidentemente, estão aqui as preferidas dos fãs, como “Garotos do Subúrbio”, a versão de “São Paulo” (365) e o clássico “Pânico em SP”.

Poucas bandas do rock brasileiro têm um corpo de obra consistente como o Inocentes, e essa coleção de canções despojadas, mas não menos enérgicas, é uma seleção justa de um bom tanto daquilo que eles fizeram de melhor. Além disso, aponta caminhos sonoros que a banda pode voltar a explorar: por que não fazer um álbum de inéditas nesse mesmo formato?

Mas o show elétrico continua existindo, assim como há planos de gravar um EP elétrico em breve. Clemente Nascimento, vocalista e guitarrista da banda, já está nessa seara há mais de 40 anos, e não vai parar. O mundo pode chegar ao fim, mas os Inocentes seguirão tocando, e, a julgar por essa entrevista, continuarão com disposição para enfrentar o conformismo roqueiro, o pensamento rígido disfarçado de progressismo, o ódio recalcado dos reacionários e os clichês do rock brasileiro.

Por que fazer o acústico a essa altura da carreira?
É um acústico sem pretensões, só o registro de um momento que a banda viveu. Durante a pandemia, tive que reaprender a tocar as músicas, porque fiz muita live acústica aqui de casa. Fui rearranjando, colocando acorde onde era só power chord… Tive que reaprender a cantar as músicas. O Anselmo (Monstro, baixista) era um dos que mais assistia essas lives, sempre falando que ficou legal. Um belo dia ele falou de fazermos isso juntos pra ver como ficava (risos), e ficou legal. Decidimos registrar, porque foi um período que a gente teve… não aquele papo de “se reinventar”, mas mano, tive que ralar pra poder fazer essas lives sozinho em casa.

Lembro de uma entrevista sua para a revista Bizz na época do “Estilhaços” (1992) no qual você dizia que nunca tocou punk. Que descobriu que tocava punk pela finada revista Pop. Que você, na verdade, tocava rock.
Ah, sim! Eu gostava de confundir para conquistar! (risos)

E esse acústico é, decididamente, um disco de rock’n’roll, rockabilly, folk rock: ele trabalha com a estética das bases do gênero. Mas muito fã dos Inocentes ainda vê a banda como punk. O que você diria para quem tem essa percepção?
A pergunta é: de que punk esse cara gosta? A gente vem lá da primeira geração. Ouvimos o pré-punk, principalmente eu, o Ronaldo (Passos, guitarrista) e o Anselmo. Eu conheci o mundo antes de o punk nascer, então tudo isso que você falou faz parte da nossa formação. O nosso punk é o punk 77, garage, rock dos anos 1960, Stooges, New York Dolls, MC5… A gente é de um mundo onde não existia o hardcore. As pessoas vêm me mostrar coisas dizendo que é hardcore e eu vejo metal ali, não vejo hardcore. O que é punk? Ratos de Porão? Garotos Podres, que toca ska? O punk é plural, tem várias influências, ninguém toca a mesma coisa.

E é legal que essa influência do pós-punk aparece ao longo da discografia não só em composição, mas também em produção, mas no acústico ela sumiu! Alguns baixos tiveram as linhas mudadas, os climas mudaram bem.
A gente quis pegar as canções e voltar à essência delas. E o Ronaldo tem muita influência do rockabilly, ele é fã do guitarrista do Stray Cats, o… (demora a lembrar, até que o repórter “assopra”) Ah, o Brian Setzer! Então, o Ronaldo é fã dele, e gosta muito de country, blues e tal. Cada um trouxe suas influências pessoais, também, e isso foi legal. A gente não foi pondo trava. A gente deixou aberto, pra tudo trabalhar a favor da canção.

Como estão sendo os shows acústicos?
Agora em novembro [de 2024] a gente tocou no Blue Note [em São Paulo] e foi uma loucura (vídeos acima)! Porque o Inocentes teve várias fases: surgiu lá no meio do movimento punk, vindo do gueto, inventando a cena punk de São Paulo… O Inocentes é minha terceira banda. Antes teve o Restos de Nada e o Condutores de Cadáveres. Depois dessa primeira fase, a gente foi pra Warner (risos), começou a tocar na rádio. Viramos uma banda, entre aspas, “popular”. Aí tem várias formações, o que muda completamente a sonoridade. E as pessoas acham que sou eu, o Clemente, que está mudando tudo (risos). Não, é a banda! Às vezes, sou coagido! (risos) Mas com tantas fases, a gente tem vários públicos. Não é só o “punk punk”, tem o cara que ouvia Inocentes na rádio.

Além do Inocentes, você toca na Plebe Rude, outra banda dos anos 1980. Só que a Plebe ficou muito associada a essa década específica, enquanto o Inocentes teve outros momentos, aquele período do “Embalado a Vácuo” (1998) deu uma boa renovada no público. Você ainda testemunha essa renovação, vê um público bem mais jovem nos shows?
Sim, pra caramba! É louco, a gente tocou naquele festival que teve o Suicidal Tendencies (Esquenta RockFun Fest), em que tinha grades dividindo o público por causa do multicabos da mesa de som. Sei que do meu lado direito tinha um público bem mais jovem (ri), molecada de 16, 17 anos, roda, pogo, o bicho pegando. E do lado esquerdo só o público mais velho, só no coturninho (risos). Era engraçado!

Falando em festivais, o Inocentes vai tocar em janeiro no Upfront Festival, em São Paulo. Uma das bandas no lineup é o Skamoondongos, que você produziu. Esse seu lado de produtor não é muito comentado em entrevistas, mas vamos falar um pouco disso. Tem alguma banda cujo trabalho você curte, mas acha que poderia trazer uma cara diferente para o som?
Tem várias bandas que eu acho legais e com quem eu gostaria de estar no estúdio, mas não tenho essa coisa do produtor que muda sonoramente a banda. Na verdade, eu sou mais aquele que fotografa (ri). Eu gosto muito de Anônimos Anônimos, uma puta banda legal pra caralho. Gosto de Molho Negro pra caramba… Tem várias bandas legais tocando. Mas assim, eu fui produzir muitas vezes obrigado (risos), porque era a maneira que eu tinha de poder levar aquela banda pro estúdio. O Skamoondongos, por exemplo. Eu estava na Paradoxx e me deram essa missão de fazer a coletânea de ska (“Ska Brasil”, de 1997). Eu tive que brigar, porque achavam a demo deles ruim. Eu disse pros caras [da gravadora]: “pode deixar que no estúdio eu me garanto”. Eu estava certo, porque foi a banda da coletânea que estourou, né?

E é a única que está na ativa até hoje.
Exatamente. Porque era de verdade. Os caras da gravadora achavam que era uma moda, mas eu falava que o Skamoondongos tinha que entrar porque era a única banda que era de verdade. Eu tinha uma loja na Galeria [do Rock] que os moleques frequentavam, eu vendia muitos discos de ska da terceira geração, eu sabia que eles eram da cena, gostavam mesmo. O Skuba também era de verdade, mas era de Curitiba e eu não conhecia os caras. Briguei pelo Skamoondongos e a banda entrou. Eu não sou aquele produtor, né? É uma coisa meio sazonal.

Você talvez seja o único cara do rock brasileiro – certamente o único da sua geração – que jogou em todas as posições: músico, compositor, intérprete, produtor, funcionário de gravadora, radialista, jornalista… Tendo essa vida de envolvimento total com a música, como você faz para ainda preservar o interesse sem que os BOs e os anos nas costas não tirem seu prazer pela coisa toda? Porque tenho certeza que seu saco encheu em várias momentos. Como você fez para não falar “foda-se, já deu”?
Ah, tive meus momentos (ri). Mas cara, eu preferia só tocar, mas faço esse monte de coisas porque não consigo sobreviver só do Inocentes. Sou da classe trabalhadora (risos). Sou obrigado a me deter em várias posições: produtor, roadie, toda a cadeia. Mas o legal é que aprendi muita coisa: como funciona uma gravadora, como lidar com ela. Não tenho aquelas crises de músico, sei quanto o cara está gastando, o que ele pode fazer e o que não pode. É muito fácil tratar com a gente porque não tem a viagem de artista de achar que a gente é o máximo e a gravadora tem que nos dar alguma coisa. Isso não é realista (risos), e a gente trabalha com a realidade. Mas muitas vezes eu fico de saco cheio. Agora, por exemplo, estou numa crise artística, de composição mesmo. Eu não sei o que as pessoas acham que é o punk pra elas hoje, ainda mais por causa dessa coisa das mídias sociais, dessa ascensão da extrema direita… Pô, mano, eu fiz uma música que ninguém entende? (risos)

O Raul Seixas falava que era muito ruim tocar para 3 mil pessoas e que no máximo três entenderam o que ele estava cantando.
Exatamente.

É muito complicado. Alguns trabalhos são tão contracultura que até quem se diz contracultural não aceita aquilo (risos).
Exatamente! Porque a gente não cai naquele discurso fácil, né? (Efusivo) “Nós somos antifascistas, uhu”… Porque não é só isso! São tantos meandros, tanta coisa acontecendo no mundo, não é só preto e branco, tem uma zona cinza gigante.

Falando em coisas que não são tão simples assim: nos anos 1980 e 1990, mal se falava em representatividade e afins. Mas em textos a partir dos anos 2000, começaram a te identificar como o único frontman negro da sua geração. Não mudou muito desde então. Você falava disso nas suas letras, não só “O Homem Negro”. Você também não vinha da classe média alta, como a enorme maioria dos músicos do rock brasileiro. Dito tudo isso, você tinha dimensão dessa representatividade naquela época?
Cara, eu me sentia solitário (ri). Só tinha eu, né mano? Quando comecei a tocar, eu estava na periferia, estava sempre rodeado de negros. A primeira banda, Restos de Nada, e o próprio Inocentes: a formação que chega na Warner tinha o Tonhão e o André, que têm a mãe negra e o pai branco. Se você pensar bem, aquela formação que chega na Warner era a mais negra possível, é que o Tonhão puxou mais o pai dele, apesar do beição (ri). Mas é louco, porque não existia esse discurso de representatividade, identitarismo, anti-racismo, papapá. É difícil você explicar que o identitarismo, o empreendedorismo, a meritocracia, tudo faz parte do neoliberalismo, e quando você tira a luta coletiva, tira a força do movimento. Quando você pensa só no eu, isso é um problema. Só que como falar isso numa música? (risos) Eu não consigo explicar isso muito bem numa música. Como vou falar que eu não concordo muito com o modo de luta do identitarismo? Concordo com a causa, mas o modo de lutar eu acho errado. Mas se eu falar isso, vão dizer que eu sou racista, qualquer porra assim. As pessoas não entendem.

O historiador Tony Judt apontava isso em alguns textos que essa microidentificação acabava fragmentando a luta coletiva. Que, ao buscar a microrepresentatividade, a voz coletiva se diluía, e as diferenças eram acentuadas, diminuindo a chance de aproximação e entendimento. Vejo isso acontecendo e no universo da música acontece também, e tem desdobramentos estranhos, como a “causa” virando a suposta razão de ser desse artista. Vi um evento de uma instituição grande uma vez que anunciava uma programação apenas com bandas formadas por mulheres. Nos textos de apresentação das bandas, não havia uma única palavra sobre a música que elas tocavam! É estranho isso.
É estranho isso! Você pega a Mercenárias, era música! Quatro meninas fazendo música. Isso é o importante. Bad Brains, Pure Hell…Eu acompanho várias bandas novas aí, mas é o que você falou: a causa é mais importante que a música. Você não sabe nem se a música é boa – e você não pode criticar a música, porque senão você apanha (risos). Eu não gosto da Pabllo Vittar, mas náo é que eu não gosto da pessoa, eu não gostava da música. Mas não posso falar.

Sei como é (risos). Aliás, posso publicar isso?
Então… Não sei! (risos) Tem que ter um jeito de se falar que o importante é a música. Até porque a gente faz música.

A MPB tem, continuadamente, movimentos revisionistas, em que um artista meio esquecido é recuperado e alçado a uma dimensão maior. Mas esse movimento não acontece com frequência no rock brasileiro. Por que você acha que não existe essa tendência de revalorizar o passado roqueiro do Brasil?
Porque todo mundo está sempre preocupado com o que fez sucesso, não com o que tem qualidade artística. Você fala com um “roqueiro normal”, a referência dele é o Capital Inicial (risos). Esse resgate vai ficar no meio do caminho. Mas tenho visto esse resgate acontecendo com as Mercenárias mesmo, por exemplo. Elas estão fazendo bastante shows – para um público restrito e tal – mas tem uma geração nova de meninas que as estão seguindo. Inclusive eu e a Sandra [Coutinho, baixista d’As Mercenárias] temos um projeto chamado Jackfancy, que tocou muito pelo underground e que vai sair agora nas plataformas. A gravação é da época (nota: a dupla atuou entre 2007 e 2013), tudo com base eletrônica – ela é boa nisso – e guitarras. Eu conheço a Sandra desde antes d’As Mercenárias, da época em que ela acompanhava a Eliete Negreiros e ia nos ensaios dos Inocentes.

Voltando ao “Antes do Fim”: ele vai ser editado em algum formato físico?
Saiu o vinil já pela Red Star, o nosso selo. Vendeu bem, e acho que está quase acabando – na real, acho que acabou, temos que prensar de novo. A gente não sabe se lança em CD, porque CD, realmente… Mas vinil é legal, a galera curte. Muita gente pede pra lançar em CD, mas não sei se vamos lançar.

E para encerrar: fazer um álbum como esse é um jeito de olhar para o próprio passado. Como você disse nessa entrevista, cada disco é um retrato do momento. Desses 43 anos de carreira, qual é o retrato que melhor define o Inocentes? Qual disco tem a banda melhor representada?
Cara, eu gosto muito do “Adeus Carne” (1987), gosto muito do “Embalado a Vácuo” (1997), que é com essa formação atual, que vai fazer 30 anos em 2025. E gosto muito desse acústico. A gente vai relançar o “Ruas” (1996) em vinil, ele é o primeiro registro da formação atual (com Clemente, Ronaldo, Anselmo e o baterista Nonô). Mas realmente, se for pegar uma fotografia do Inocentes, esse acústico é um disco onde a gente conseguiu recriar as canções de uma maneira completamente despretensiosa, com amor mesmo. São releituras que fazem letras soarem, pra galera poder cantar… Foi um disco bem legal de se fazer. É um disco bem sincero, porque não tem pretensão de fazer sucesso. A gente sabe que não vai tocar nas rádios (ri). É um disco para a gente poder tocar em outros lugares, porque tem gente que não vai mais em show nosso. Não vai num porão, numa quebrada, num lugar mais tosco. Por isso que o Blue Note estava lotado num domingo de chuva! Teve um cara que chegou e falou que a última vez que tinha visto a gente tinha sido no Madame Satã (risos).

Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e autor do livro “O Evangelho Segundo Odair: Censura, Igreja e O Filho de José e Maria“. 

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