texto de Fabio Machado
Pouco antes da banda de David Cross tocar o primeiro acorde no palco da Casa Rockambole, em noite curada pela Balaclava Records, entusiastas do rock progressivo de todas as idades – com alguma vantagem para o nicho com mais de 35 anos, como era de se esperar – estavam reunidos na parte externa, onde foi realizado um rápido bate-papo com David Cross (violino), John Mitchell (guitarra e vocal), Mick Paul (baixo e vocal), Sheila Maloney (teclados) e Jeremy Stacey (bateria). Em dado momento, um dos presentes perguntou para Cross se ele achava que a música era infinita; Cross respondeu que sim, e os próximos minutos deram razão ao violinista que integrou a formação do King Crimson responsável por obras como “Larks’ Tongues in Aspic” (1973), “Starless and Bible Black” (1974) e “Red” (1974).
Após o bate-papo, todos estavam contando os minutos para o início da apresentação – inclusive o guitarrista John Mitchell, que encerrou a conversa perguntando ao público, de forma bem-humorada: “Shall we play?” Com a resposta afirmativa dos presentes, em alguns minutos a banda se encaminhou ao palco, o público lotou o belo salão da Casa Rockambole, e em pouco tempo o show foi iniciado com a pesada “Tonk” (do disco “Exiles”, de 1997) seguida por uma sequência que ganhou o coração dos presentes: “The Great Deceiver” e “Red”, dois destaques da sua passagem pelo King Crimson. “Red”, particularmente, surpreendeu mais uma vez pelo peso e volume das guitarras, que seguiria nessa mesma pegada até o fim da apresentação.
Para acalmar os ânimos, Cross seguiu com “The Pool” e “Starfall” (do disco solo “Sign of the Crow”, de 2016). Se a primeira é uma balada que lembra o lado mais suave e lírico do King Crimson, a última transita por sonoridades mais modernas do prog metal a lá Dream Theater. Na sequência, o violinista incluiu mais uma da carreira solo antes de mergulhar “na parte sombria do King Crimson”, em suas próprias palavras: a épica “Calamity” (de “Testing for Destruction”, 1994) que também começa calma, mas depois vira uma pequena jornada de riffs e solos.
No geral, as canções solo da David Cross Band mostraram competência técnica de todos os integrantes da banda e foram bem-recebidas pela plateia. Mas todos aguardavam ali uma prometida overdose de King Crimson, que foi finalmente anunciada por John Mitchell: a execução na íntegra do disco “Larks’ Tongues in Aspic”, que iniciou com Mitchell, Cross e Paul tocando kalimbas e logo começando os acordes de “Larks’ Tongues in Aspic, Part One”.
Apesar do evidente clima de celebração e animação dos presentes, é preciso fazer uma crítica para parte do público que insistia em ficar batendo papo em momentos-chave de silêncio. É difícil pensar que pessoas vão preferir conversar em um show, especialmente de rock progressivo; não só pelo fato óbvio de que se está perdendo parte importante da música, mas também por ter lugares muitos melhores para ficar de conversa com amigos. Mas voltemos o foco para a apresentação.
Apesar desse contexto, a energia e a voz da plateia se fez presente na bela “Book of Saturday” (cantada por John Mitchell) e em “Exiles” (agora na voz de Mick Paul). Mas o clima começou a esquentar literalmente no lado B do disco com “Easy Money”, com vocais alternando entre Mitchell, Cross e os demais integrantes. O groove lisérgico que é a característica principal da canção ganhou músculos e muito peso na interpretação do conjunto.
Na sequência, um bem-vindo respiro com a atmosférica “The Talking Drum”. Aqui, o baterista Jeremy Stacey mostra porque foi escolhido como um dos percussionistas que fez parte da última encarnação do King Crimson, fazendo uma improvisação que respeita o original de Bill Brufford, mas também mostra sua voz no instrumento. O violino de Cross também é um ponto alto da música, dessa vez muito mais alto e distorcido do que na versão de estúdio.
Mas o ápice não poderia ser outro com a faixa que talvez é a mais emblemática do disco: “Larks’ Tongues in Aspic, Part Two”. Já foi dito aqui como as guitarras pesadas foram uma constante durante a apresentação, mas aqui limites foram ultrapassados e chegaram ao território do metal (foi de surpreender ninguém ter começado uma roda no meio do público) – alguns ouvintes mais tradicionalistas podem ter sentido que era volume demais. Enfim, não teve roda, mas foi uma experiência única ver o público agitar e interagir com uma música instrumental cheia de riffs e ritmos complexos.
De alma lavada e jogo ganho, a David Cross Band encerra o show, agradece e pergunta para a plateia em êxtase se querem mais uma. O bis não poderia ser outro senão “Starless”, outro clássico do King Crimson que não poderia faltar nessa noite. Mais uma vez créditos para o público que cantou riffs, melodias e vocais até que veio o inesperado (ou não, já que estamos em São Paulo): um apagão interrompeu a banda no meio da música. Após alguns segundos incrédulos, os integrantes retomaram a música de onde pararam e seguiram para um final apoteótico. Está aí a prova de que a música é mesmo infinita, e transcende não só o tempo e a memória, mas às vezes também supera a própria incerteza da eletricidade.
– Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos.