Entrevista: Luiza Brina fala sobre “Prece”, disco presente nas listas da APCA, da NPR e de Esperanza Spalding

entrevista de Bruno Lisboa

Luiza Brina vive, indiscutivelmente, o melhor ano de sua carreira. “Prece” (2024), seu quarto registro solo, vem colhendo elogios e reconhecimento mundo afora. O álbum, lançado pelo selo dobra discos com apoio da Natura Musical, entrou na lista dos 25 melhores discos do primeiro semestre de 2024 da APCA e também na lista dos 50 grandes discos do ano da NPR, nos Estados Unidos, ao lado de nomes como Kim Gordon, Kali Uchis, Beyoncé, Beth Gibbons e Charli xcx: “Um disco tranquilo, mas colossal”, definiu o jornalista Lars Gotrich no site da rádio.

Não para por ai: em seleção de destaques do Bandcamp, o jornalista Richard Villegas escreveu que “as meditações de Luiza Brina sobre Deus — tanto como um pilar do colonialismo quanto da resistência afro-diaspórica — elevam a música a alturas celestiais” enquanto a icônica Esperanza Spalding não se conformava de não lembrar o nome da artista brasileira ao ser questionada por uma jornalista australiana sobre coisas novas incríveis que ela tinha ouvido recentemente – depois de terminada a entrevista, Spalding mandou um e-mail dizendo que o disco “maravilhoso” era o “Prece” e a artista brasileira se chamava Luiza Brina.

Trata-se de uma série de reconhecimentos incontestes que lançam luz sobre um repertório de canções-orações que Luiza Brina começou a compor por não ter religião, e precisar de suporte num momento de crises de pânico, e que acabaram por se tornar uma linguagem musical. Para dar forma a essas preces, Luiza montou sua própria orquestra, só com mulheres, e contou com o apoio de Charles Tixier (colaborador também de Luiza Lian) na produção musical. O projeto ainda inclui um documentário, “A tecnologia da canção – investigações e conversas de Luiza Brina”, lançado em junho de 2023 (que você pode assistir no final da entrevista).

Na conversa abaixo, Luiza Brina fala sobre sua evolução musical (“’Prece’ é um disco que reúne as minhas experimentações, os meus estudos”), o processo de criação e registro do disco, as diversas colaborações, a escolha por uma sonoridade que transita entre o erudito e o popular, a música como forma de cura (“A música foi ocupando uma espécie de lugar de religião pra mim”), o diálogo entre a produção do disco com o documentário, a sua nova turnê e os formatos de shows, planos futuros e muito mais. Confira!

Desde o início de sua carreira sua musicalidade tem passado por um longo processo evolutivo que resultou no álbum “Prece”. Olhando em retrospecto, como sua evolução artística se materializou na sua forma de compor?
O “Prece” é pra mim um álbum de vida, ele reúne elementos que eu vinha pesquisando e experimentando desde que comecei a compor e fazer música. Sempre tive um interesse por formações inusitadas. Quando eu era adolescente, fazia arranjos para a minha primeira banda, na qual havia violoncelo, sanfona, flauta, percussão. Já tinha ali um sopro, uma corda friccionada, acompanhando as canções que eu fazia no violão e na voz. Depois, para a gravação dos meus dois primeiros discos, fui acompanhada por um grupo que batizei de “O Liquidificador”, que tinha uma instrumentação maior ainda, com adição de quarteto de sopros.

Paralelamente aos discos, eu me formava em composição na Unirio, tomava aulas com o Itiberê Zwarg (baixista do Hermeto Pascoal), e com o percussionista chileno José Izquierdo. Foi o José que me apresentou ao universo do Batá (tambores da Santería cubana) e da percussão baiana, entre outras manifestações das nossas matrizes africanas, e que estão presentes em grande parte da minha produção. Ao longo desses anos todos, tive que trabalhar a minha relação com certos moldes que o mercado brasileiro frequentemente impõe aos músicos. Alguns artistas têm a habilidade de criar a partir destas restrições, mas em algum ponto eu entendi que este não era um caminho possível para mim, tanto por desejo quanto por inabilidade mesmo.

“Prece” é um disco que reúne elementos de todas essas trajetórias, as minhas experimentações, os meus estudos. E com esse compromisso que a cada vez mais consigo firmar comigo mesma e com a minha música, em detrimento deste agente externo que muitas vezes age de maneira formatadora. Além disso, com um certo protagonismo no disco, o violão, meu instrumento principal desde sempre, e cujo papel dentro da canção latino-americana há muitos anos é objeto de investigação minha.

“Prece” é um álbum que requer uma escuta atenta dada a riqueza dos arranjos e das letras. Essa associação tem rendido elogios da crítica especializada e de artistas como Esperanza Spalding. Como se deu o processo de gestação e de materialização do novo repertório?
Esse disco teve uma longa gestação. Acho que, como eu disse, é um disco de uma vida inteira, que venho fazendo desde que comecei, ainda criança, a me interessar pela música, pela canção. Mas o repertório, a série de canções-orações começou a ser composta em 2010 – e sigo ainda compondo neste formato, que ao longo desses anos foi se tornando uma linguagem pra mim, como um subgênero da canção. Em 2021 o projeto do disco foi aprovado em um edital da Natura Musical, e, da aprovação à entrega foram quatro anos de feitura – fechamento do repertório, criação dos arranjos, gravação, pós produção, mixagem, masterização e lançamento – o que é bastante raro nos tempos de agora, onde tudo tem que ser produzido de maneira quase instantânea. Desde o lançamento, tenho sentido uma recepção muito calorosa do disco. Saber que ele está tocando pessoas que eu admiro muito – como a Esperanza! – me faz crer que ele tem atingido de forma verdadeira o público. Sinto que isso de certa forma respalda o compromisso que assumi com uma estética mais pessoal, que frequentemente entra em divergência com exigências mais mercadológicas.

O álbum conta com uma orquestra de mulheres e participações de artistas de diferentes países. Como foi a experiência de trabalhar com uma equipe de diferentes referências culturais? E como essas colaborações moldaram o resultado final do disco?
Sim, o álbum conta com colaborações de figuras de diversos países, desde dentro da própria orquestra – que é formada por mulheres que vivem atualmente em BH, mas que vieram de diversos lugares, como a Venezuela, os EUA, Canadá, entre outros – até participações especiais como por exemplo da Silvana Estrada (México) e da LvRod (Argentina). Por outro lado, fiz questão também de trazer participações de Minas Gerais, de figuras que admiro muito, como por exemplo o Sérgio Pererê e o Maurício Tizumba, que cantam comigo em faixas do disco. E quem gravou as percussões populares foi o chileno José Izquierdo, com quem estudo há muitos anos, acho que mais de uma década, já. Acho que o pensamento sobre essas colaborações se dá em espiral, no sentido de que são figuras e culturas com quem dialogo há algum tempo. Nesse sentido, são colaborações indiretas de longa data, que se consolidaram no disco, afirmando de alguma maneira minhas referências e minhas bases, mas também pra onde estou olhando hoje.

No disco sua sonoridade é uma simbiose que une orquestrações clássicas com intervenções eletrônicas e elementos da música popular. Como você encara a fusão entre esses estilos, e como essa combinação contribuiu para a narrativa do álbum?
Essas são três vertentes que venho me interessando há tempos – me formei em Composição pela Unirio, onde estudei orquestração e outras matérias, tenho trabalhado como produtora musical e me interessado cada vez mais por desenho de som (embora quem tenha trabalhado na pós produção do disco, com os eletrônicos, tenha sido o Charles Tixier, produtor que eu admiro) e, por fim, a canção e a música popular sempre foram condutoras do meu trabalho, é da canção que eu parto sempre. Gosto de misturar elementos, por exemplo, de trazer uma ideia rítmica oriunda de um toque específico de tambores para o dedilhado do violão, ou escrever essa rítmica para algum instrumento da orquestra. Então acho que o disco é a consolidação do encontro desses elementos que fui conjugando ao longo da vida.

A espiritualidade é o fio condutor de “Prece”, com composições dedicadas a figuras de orixás e elementos da natureza. De que forma essa busca por fé e conexão influenciou sua nova fase?
Em 2010 eu tive crises de pânico intensas. Eu nunca tive religião e ali senti muita necessidade de me conectar com esse lugar, e de acreditar na própria vida. Comecei então a compor essas canções que fui chamando de “Orações”, em busca desse sentido. Então essa busca foi essencial para que eu encontrasse essa série de canções, que foi se tornando minha linguagem, onde a música foi ocupando uma espécie de lugar de religião pra mim.

Voltando a falar de participações, no disco você conta com as participações de cantautores como Silvana Estrada (México), LvRod (Argentina), Iara Rennó e dos conterrâneos Maurício Tizumba, Sérgio Pererê e da mestra griô Rainha Isabel Casimira. Como se deu essa conexão latino-mineira e quais as contribuições esse time selecionado trouxe para o resultado final?
Eu e a Julianna Sá, diretora artística do “Prece”, conversamos muito sobre o desejo de trazer para o “Prece” participações que refletissem um pouco do que já fiz, e um pouco do que desejo fazer na música. Uma espécie de caminho percorrido e horizonte a percorrer. Havia já desde sempre, nas conversas, o desejo de trazer figuras muito fundamentais da música de Belo Horizonte, como o Tizumba e o Sérgio Pererê, e de demarcar também minha raiz mineira, através do diálogo com esses artistas que são referência não só pra mim, mas pra toda uma cena belo horizontina. Há ainda a Rainha Belinha, também de BH, que tem um papel fundamental na cidade, seja através da fé religiosa, seja através da difusão da cultura do congado e outros elementos de matriz africana que estão presentes na experiência de cidade de quem vive em BH. Por outro lado, me interesso muito pela música latina para além do Brasil, sou apaixonada pela música do Edgardo Cardozo, do Juan Quintero, da Susana Baca, além de claro, a Silvana Estrada e a Lvrod. Ter a presença das duas no Prece, para além da afinidade artística que enxergo nos nossos trabalhos, consolida também esse diálogo que tanto me interessa.

Além do álbum, o projeto inclui um documentário, produção que conta com roteiro seu e de Julianna Sá mais a direção de Vitor Souza Lima. Qual foi a motivação para expandir o conceito de “Prece” para o formato audiovisual?
Quando me vi diante do edital da Natura Musical, e comecei, junto da Julianna Sá, a pensar um projeto pra enviar, logo nos veio essa ideia. Explico: o edital nos instigava a aproximar a música das tecnologias. Mas, pensamos, não seria a música a própria tecnologia? E no Brasil, a canção que desenvolvemos por aqui, não é um entrelaçamento de tantas e tantas e tantas tecnologias e conhecimentos dos mais diversos? Desde a tecnologia da palavra – e as tantas maneiras que a palavra se desenvolveu e desenvolve dentro da canção, em décimas, em narrativas, em poesia concreta, em textos que vão se encaixando perfeitamente em melodias – até a tecnologia do tambor, dos toques e toda sua cosmologia: linguagem rítmica e melódica, frequências diversas, oralidade…; ou o próprio violão brasileiro, o desenvolvimento de toques na mão direita do violonista do Brasil, ou os encadeamentos harmônicos regionais, o violão que é esse instrumento tão fundamental pra tanta canção que a gente escuta… até os beats mais atuais – de onde eles vieram, como essa tecnologia foi sendo desenvolvida aqui? E, além disso, eu já tinha também um desejo antigo de gravar um disco com arranjos pra orquestra. E esses instrumentos todos, os violinos com suas cravelhas e cavaletes, as madeiras (oboés, fagotes, clarinetes) com suas palhetas, as marimbas, enfim, são tantas tecnologias incríveis! E pra além de tudo isso, em um determinado momento da vida, eu que nunca tive nenhuma religião, comecei a sentir falta de ter algo pra acreditar. E fui aprendendo e entendendo que a canção é minha maneira de rezar; então comecei a compor canções com esse título: Oração 1, oração 2, oração 3… e a oração, não seria também uma grande tecnologia? Então esse virou um desdobramento do “Prece” que acho que ajuda a ampliar o universo do qual ele surge. Um espaço onde converso com artistas da canção que dialogam com meu trabalho, e que admiro muito. É também uma forma de abarcar todo meu trabalho na canção, meu maior interesse musical.

Capa de “Prece”, de Luiza Brina, foto de Daniela Paoliello

Sabemos que o projeto nasceu de um momento pessoal difícil, com as crises de pânico. Como a música contribuiu para sua cura e o que espera que o público leve dessa experiência ao ouvir “Prece”?
Sim, essas canções surgiram das crises de pânico que tive, e foi através delas – e também de muita análise! – que consegui recuperar a crença na própria vida. Sinto que o público se identifica com esse lugar da canção-oração, de ver na música uma forma de encontro com a vida. Torço pra que as pessoas possam se relacionar das maneiras mais diversas possíveis, seja pelo som, pelas letras, pela temática, pelo meu jeito de fazer canção. Que cada um possa encontrar ali, e mesmo em diferentes momentos, novas escutas, provocações artísticas, conforto, incômodo, beleza…

Para a nova turnê você tem oscilado nos formatos das apresentações, indo desde a algo mais intimista / minimalista e a apresentações com banda completa. Inclusive, tive a oportunidade de ver sua apresentação na Virada Cultural de BH. Na ocasião, a apresentação foi conduzida por você (na voz e no violão) e por Yuri Velasco na bateria. Como tem sido essa nova leva de shows e quais são os desafios de oscilar entre formatos?
Eu tenho circulado em três formatos diferentes: voz e violão, solo; voz, violão e percussão em duo; voz, violão, percussão, eletrônicos, fagote e oboé, em quinteto. Eu vou oscilando entre os formatos de acordo com cada situação, com o que cada show demanda, e também com as possibilidades de cada ocasião. Acho que o maior desafio, mas também prazer, é poder reinventar essas canções, refazer seus arranjos, encontrar novas formas de apresentar elas. No violão, soam de um jeito. No disco, com a orquestra de outro. Nos shows, sinto que posso mostrar ainda outras formas de escutá-las, e acho que talvez esse seja o prazer do palco.

Como um novo disco no mercado quais são os planos futuros?
Acho que o principal desejo de um artista depois de lançar um disco é fazer o show circular. Falei mais acima dos moldes que o mercado brasileiro às vezes impõe aos músicos e do meu caminho artístico que parece se distanciar disso. A consequência é que a circulação da minha música acaba se tornando mais desafiadora. Mas é também maravilhoso ver os caminhos que a música vai desenhando pra além do planejado. O disco, por exemplo, tem repercutido muito na Colômbia, no Chile, no México. Então isso é algo que, embora sempre tivesse sido um desejo, aconteceu fora do que estávamos imaginando. Então hoje tenho um desejo muito grande de levar o show a esses países. Também quero seguir voltando à Europa, como há alguns anos faço, e seguir cultivando essa conexão que venho firmando. E claro, tocar em todos os cantos do Brasil! São tantos caminhos e possibilidades… Em paralelo, quero lançar novas orações, que propiciem novos encontros, novas escutas, e que possam seguir reafirmando o Prece nesse lugar central da minha carreira.

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. Escreve também no www.phono.com.br

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