texto por Nelson Oliveira
fotos de Rafael Passos
No fim de semana dos dias 9 e 10 de novembro, Salvador recebeu a quarta edição do Afropunk no Brasil. As duas noites do maior festival de cultura preta do mundo teriam o neo soul como carro-chefe, já que as duas headliners são ícones do gênero e fariam suas primeiras apresentações na capital baiana, maior cidade negra fora da África. Os shows da estadunidense Erykah Badu e da britânica Lianne La Havas tinham todos os elementos para serem históricos, porém foram afetados por problemas técnicos e acabaram ofuscados pelos cariocas do Planet Hemp e os locais Timbalada e Léo Santana.
Desde que o Afropunk aportou no Brasil, em 2021, o Scream & Yell esteve em todas as suas edições. Na crítica de 2023, ponderamos sobre como o festival precisava investir em atrações estrangeiras consolidadas para marcar intensamente seu nome no panorama nacional – até então, Masego (Jamaica/Estados Unidos) e Victoria Monét (EUA) eram os nomes mais relevantes trazidos do exterior. Havia a sensação de que um evento tão importante e representativo para a cultura negra mundial poderia fechar com artistas de estatura ainda maior. E, com Erykah Badu e Lianne La Havas, essa lacuna foi preenchida de forma certeira.
Badu e La Havas eram a cereja no bolo para um festival que se repaginou e se expandiu. Em 2024, deixou de lado a alcunha “Afropunk Bahia” e assumiu o Brasil em sua nomenclatura, além de ter levado o Afropunk Experience, com atrações que não se apresentaram em Salvador neste ano, para outras cidades do país – a iniciativa passou por Belém, em 21 de setembro, e ainda desembarcará em São Paulo, no dia 14 de dezembro. As apostas da curadoria se traduziram em recorde de público na capital baiana: segundo a assessoria do evento, 52 mil pessoas estiveram presentes no Parque de Exposições, somando as duas noites de shows.
Curadoria e produção realmente se esforçaram. Entretanto, tiveram seu trabalho prejudicado inicialmente pelas questões logísticas que fizeram com que Erykah Badu se atrasasse para sua apresentação, no sábado, levando ao adiantamento do show de Léo Santana e a uma correria na montagem do palco para o pagodeiro. No fim das contas, a troca da ordem das atrações alterou o clima no Parque de Exposições e interferiu na fruição da obra da norte-americana, que fazia o último dos três shows de sua quinta passagem pelo Brasil.
No dia seguinte, o papel de vilão foi interpretado pelas recorrentes falhas de som e nas projeções, que afetaram as apresentações de Mateus Fazeno Rock, Ebony e Lianne La Havas. O show da britânica chegou a ser interrompido por cerca de 25 minutos. No fim das contas, foram questões que, infelizmente, deixaram um gostinho de anticlímax, sobretudo por terem influenciado diretamente nos shows das headliners, que eram os mais aguardados do festival. Confira, abaixo, o que de melhor aconteceu nos dois dias do Afropunk, segundo a reportagem do Scream & Yell.
Sábado, dia 1
Line-up: Erykah Badu (EUA), Léo Santana (BA), Planet Hemp (RJ), Jorge Aragão (RJ), Duquesa (BA), Melly (BA), Ilê Aiyê (BA) convida Virginia Rodrigues (BA), Irmãs de Pau (SP) convida EVYLiN (BA) e DJ Leandro Vitrola (BA)
Nos dois dias de festival, DJ sets foram responsáveis por receber o público na abertura dos portões do Parque de Exposições, por volta das 17 horas. Depois que o baiano Leandro Vitrola inaugurou os trabalhos, no palco Agô, o Ilê Aiyê subiu no Gira para comemorar os seus 50 anos de existência em grande estilo, acompanhado de Virgínia Rodrigues e de sua extensão vocal digna de cantora lírica – o que deu uma nova roupagem à habitual evocação de ancestralidade afrobrasileira produzida pelos músicos do Curuzu.
A apresentação do primeiro bloco afro do Brasil começou já com a convidada no palco, cantando “Ilê é Ímpar”, gravada anteriormente por ela no álbum “Nós” (2000). Depois, o grupo da Liberdade coloriu o Afropunk de preto, amarelo, vermelho e branco ao transitar por seus vários sucessos, como “Ilê Aiyê (Que Bloco É Esse)”, “O Mais Belo dos Belos” e “Ilê Pérola Négra”. Para encerrar o show, Virgínia Rodrigues voltou ao Gira para, ao lado dos vocalistas Graça Onasilê e Juarez Mesquita, cantar “Negrume da Noite”.
Na sequência, foi a vez de Melly, uma das boas novidades da música baiana, voltar ao Afropunk como uma das atrações mais esperadas da noite – na edição de 2021, com pouquíssimo tempo de carreira, ela participou com “Azul”, seu primeiro sucesso, na apresentação do duo Deekapz (SP). Seu show teria como base o elogiado álbum “Amaríssima”, primeiro de sua carreira, lançado há alguns meses.
Transitando entre o R&B e por sonoridades populares na Bahia, como o pagodão e o ijexá, Melly empolgou seus fãs com uma boa sequência inicial, composta por “Falar de Amor” e “Derreter & Suar”, e percorreu caminhos mais sossegados logo após. O show voltou a esquentar do meio para o final, quando a cantora de Feira de Santana apostou na excelente “Cacau” – parceria com outros compositores, como Yan Cloud e Zamba. Foi rápido o trânsito entre o amor que amargou e os que nasceram depois, após flertes na madrugada, e a feirense encadeou “Bandida”, “Barril” e “Azul” para fechar uma apresentação que reafirmou a sua capacidade de instigar o público ao tratar os percalços das relações amorosas de forma leve e sagaz.
A atração seguinte foi o carioca Jorge Aragão. O seu show não começou com os melhores presságios, já que sua banda puxou releituras sambistas de “Do Seu Lado”, do Jota Quest, e do “Tema da Vitória”, composto para os triunfos de pilotos brasileiros na Fórmula 1 – e eternamente associado a Ayrton Senna. Depois, o ícone do samba acertou em cheio ao entrar no palco com “Identidade”, canção que versa sobre o orgulho da negritude.
Entretanto, a bem da verdade, a apresentação só pegou fogo mesmo em dois momentos: na sequência com “Coisinha do Pai” e “Vou Festejar”, quase no fim, e quando Marcelo D2 apareceu de surpresa em “Lucidez”, composta para o Fundo de Quintal. E o fez bem no refrão, dialogando com a canção, quando Jorge Aragão cantava “Quando a solidão apertar / Olhe pro lado / Olhe pro lado / Que eu estarei por lá”.
Usando uma camisa do álbum “Chromakopia”, mais novo lançamento de Tyler, The Creator, D2 voltaria ao palco (não o Gira, mas o Agô) em seguida, para conduzir o Planet Hemp juntamente a BNegão, numa das melhores apresentações de todo o Afropunk – honrando o histórico construído pelo grupo, que sempre protagonizou shows de muita energia ao longo de suas três décadas de existência. A banda, formada atualmente também por Formigão (baixo), NoBru Pederneiras (guitarra) e Pedrinho (bateria) ainda ganhou a presença de Daniel Ganjaman (guitarra), seu colaborador de longa data.
O Planet Hemp já havia comprovado após a reunião que segue afiadíssimo, e o fez através de seus lançamentos mais recentes – os álbuns “Jardineiros” (2022), “Jardineiros: A Colheita” (2023) e o novíssimo “Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça”, gravado ao vivo, numa noite especialíssima em São Paulo. Apesar de não ter levado as dezenas de participações do disco e DVD ao Afropunk, o grupo carioca já chegou chutando a porta com o grande carisma de seus vocalistas, que já pediram uma roda com poucos segundos sobre o palco. O público atendeu e criou uma nuvem de poeira (e fumaça), rapidamente percebida por BNegão, que – astutamente – usou isso a favor da banda até o fim do show. Mais de uma vez, Bernardo e D2 afirmaram que Salvador é “a terra das rodas”, conclamando os fãs a caírem no pogo.
Com muito vigor, o Planet Hemp apostou num repertório regado a hardcore e empilhou pedradas antigas (“Ex-quadrilha da Fumaça”, “Fazendo a Cabeça”, “Dig Dig Dig”, “Legalize Já”, “Zerovinteum”, “Queimando Tudo”, “Stab”, “Contexto”, “Samba Makossa”, “Mantenha o Respeito” e “A Culpa É de Quem?”) e outras recentes, como “Distopia”, “Jardineiro” e “Ninguém Segura a Gente”, sem deixar ninguém parado, já que as rodas se formavam com muita naturalidade e frequência – provavelmente eles estão certos sobre Salvador ser a capital das rodinhas. Além de muito pogo e política através de música, D2 e BNegão também discursaram contra a violência policial, usando como exemplo o assassinato de Gabriel Renan Soares, sobrinho de Eduardo Taddeo, ex-Facção Central, numa loja Oxxo.
Ao fim do showzaço, D2 deixou o palco elogiando muito a apresentação de Erykah Badu em São Paulo e conclamando a plateia a ficar para assistir a norte-americana. Mas mal sabia ele que Miss Badu estava atrasada – aliás, ninguém fazia ideia disso. Sem qualquer comunicação por parte do festival, um clima de apreensão começou a se formar na medida em que o intervalo foi se alongando, mesmo com o palco Gira pronto para receber a lenda do neo soul. E só cresceu quando roadies passaram a, apressadamente, se movimentar no Agô, enquanto os seus canais de áudio eram ligados. Os telões, então, exibiram o nome de Léo Santana. Era um erro ou a confirmação de que a ordem dos shows havia sido trocada?
Cerca de 50 minutos se passaram sem qualquer comunicado. Quando todo mundo já havia percebido que, sim, Léo Santana se apresentaria antes de Erykah Badu, uma voz sem rosto – algo que não ocorre no festival – anunciou que o baiano seria a próxima atração. Observando tudo com seu copão na mão, a reportagem esperava que o pagodeiro fizesse o que costuma fazer: desfilar carisma, danças sensuais, um monte de hits, fazer o público descer até o chão e o couro comer. Porém, o Gigante foi além.
Léo Santana poderia tranquilamente ter ficado em sua zona de conforto. Seria facilmente aprovado e deixaria o palco ovacionado se tivesse feito um ensaio de verão ou uma edição do Baile da Santinha no Afropunk e se limitasse a cantar os sucessos “Contatinho”, “Zona de Perigo”, Santinha”, “Perna Bamba”, “Posturado e Calmo” e “Madeira de Lei”, dos seus tempos de frontman do Parangolé, por exemplo. Contudo, levando a sério o pano de fundo político do festival, o cantor pensou num repertório que destacou suas raízes e exaltou o orgulho preto, além de outros temas sociais, o que ficou evidente ao iniciar o show com “Negro Lindo” e passar por “Mamoeiro”, canções de quando estava no “Parango”, e ao propor uma releitura em pagodão baiano de “Zé do Caroço,” de Leci Brandão. Mais um ponto para o GG, que respeitou o público e o ethos do evento, produzindo uma das melhores apresentações da edição.
Porém, apesar dos acertos de Léo Santana, muita gente estava no Parque de Exposições especialmente para assistir Erykah Badu. E também é verdade que a troca da ordem das atrações alterou a ambiência do festival: o groove contemplativo da norte-americana ficava deslocado ao se ver espremido entre a quebradeira trazida pelo baiano – diferente da produzida pelo Planet Hemp – e os trabalhos que Duquesa e Irmãs de Pau apresentariam na sequência, que têm um diálogo com a proposta dançante do pagodão.
Erykah Badu teria que vencer o anticlímax. Porém, acabou contribuindo para que ele só aumentasse, num show que começou duas horas depois do previsto, por volta de 0h30. Seus músicos chegaram ao palco sem anúncio e produziram um longo instrumental de cerca de 15 minutos, até que a cantora entrasse em cena, com um figurino extravagante, com uma túnica, um chapéu e várias camadas de tecido. Uma entidade, como esperado. E uma figura com jeitão ritualístico que chegou entoando um hino: “On & On”, do aclamado “Baduizm” (1997).
Conquista certa? Não exatamente. Tecnicamente, o show de Badu foi corretíssimo: uma banda afiada, com graves e grooves chegando com firmeza na plateia, e uma performance teatral da norte-americana, que brincava com seu sintetizador e feixes de luz da iluminação muito bem pensada para o espetáculo. No repertório, canções basilares de seu trabalho. Além da já citada “On & On”, a cantora também passou por “Sometimes”, “Appletree”, “Time’s a Wastin”, “Next Lifetime”, “Window Seat” e “Didn’t Cha Know” e “3:AM”, parceria com a rapper Rapsody, sua compatriota, que fez uma participação surpresa na apresentação. “Bag Lady”e “Tyrone”, contudo, ficaram de fora do setlist.
A ausência de duas das canções mais queridas pelos fãs não foi o único dos poréns do show. Conhecida por enfeitiçar plateias e, de fato, muito elogiada pela apresentação em São Paulo (e também no festival Rock The Mountain, em Itaipava, interior do Rio de Janeiro, no dia anterior), Badu teve dificuldades de furar a bolha e até mesmo de se conectar com seus admiradores. A reportagem flagrou até um burburinho de um grupo de amigas que havia saído de outro estado para vê-la e tinha se decepcionado pela cantora estar “enrolando muito” – a posteriori, no perfil de Instagram do festival, a trupe dos insatisfeitos também se manifestou. Talvez o fato de a texana repetir a palavra “Bahia” trocentas vezes e enfileirar discursos em tom de autoajuda, que não soavam tão originais, despertasse essa inquietação.
Quando foi embora sem se despedir, Badu deixou sua banda tocar mais uma faixa instrumental e um rastro de sentimentos misturados. Em alguns, o deslumbramento por ter presenciado uma artista grandiosa, referência de um gênero musical e de sua geração. Mas, em muitos, a insatisfação pelo atraso, a sensação de anticlímax e, naqueles que só queriam balançar a raba, um pingo de alívio. Certamente o ambiente de festival foi um dos fatores que colaboraram para que a texana não tenha brilhado tanto quanto poderia: restou a impressão de que o show teria funcionado melhor com alguns milhares de pessoas a menos ou milhares de fãs fervorosos a mais. Talvez num local fechado. E, necessariamente, com duas horas de antecedência.
Depois da headliner atrasada, Duquesa e Irmãs de Pau (estas, tendo a rapper EVYLiN como convidada), fizeram shows em que a representatividade falou bem alto. Para o horror daqueles que são contrários às lutas ditas identitárias (sic), além de corpos negros, o Afropunk também deu holofote a artistas que se empoderam porque femininas, gordas e travestis – e tudo isso sob o guarda-chuva do rap e do funk, que frequentemente ainda resvalam no machismo. Enquanto a baiana animou e agradou com alguns sucessos, como “99 Problemas” e “Disk P@#$%&!”, além de ter convidado o grupo de dança Afrobapho para o palco, o duo paulistano “serviu cunt” com canções como “Megatron” e “Food Food”, arrancando aplausos com leques. O relógio já se aproximava das 4h da manhã quando as apresentações acabaram e o paredão de som automotivo deu as despedidas para os mais resistentes.
Domingo, dia 2
Line-up: Lianne La Havas (ING) convida Liniker (SP), Timbalada (BA), Fat Family (SP) canta Tim Maia, Ebony (RJ), Silvanno Salles (BA), Larissa Luz (BA) convida Edcity (BA), Mateus Fazeno Rock (CE) e DJ Anaïs B (FRA)
O atraso de Miss Badu pareceu ter gerado impacto até mesmo no domingo. Perto das 18h, quando a DJ francesa Anaïs B passava o bastão para o cearense Mateus Fazeno Rock, o Parque de Exposições estava quase deserto. Mas Mateus, uma das boas novidades da música nordestina, não estava sozinho: alguns grupos de fãs chegaram cedo especialmente para vê-lo, incluindo uma expressiva caravana de Fortaleza, que colou na grade do palco Agô.
No show do cearense, o vilão da noite logo deu as caras: o som apresentou vários problemas. Teve microfone baixo no início e uma canção (“Pode Ser Easy”, uma das melhores do elogiado álbum “Jesus Ñ Voltará”, de 2023) até precisou ser repetida pelo artista oriundo do bairro da Sapiranga. Porém, o artista – tímido em seu falar, mas imponente numa túnica preta, com detalhes em verde, amarelo e vermelho – driblaria essas pedras no sapato.
Versátil ao transitar por rap, rock (de favela), reggae e funk, por exemplo, a música do cearense cresce ao vivo e oferece novos contornos a seu – já interessante – trabalho de estúdio, inclusive pela performance do trio de bailarinos/atores que o acompanha. No Afropunk, Mateus Fazendo Rock fez uma boa escolha de repertório, mesclando faixas do álbum de debute, “Rolê Nas Ruínas” (2020), e do mais recente, já citado. Depois de engatar canções como “Melô de Aparecida”, “Nome de Anjo”, “Madrugada”, “Só Suor e Lágrima”, “Jesus Ñ Voltará”, “Da Noite” e “Vontade Nego”, o show terminou com pogo em “Legal Legal”, numa rodinha que levantou a poeira que maravilhou BNegão no primeiro dia de festival.
Se Mateus Fazeno Rock encarou problemas no som no palco Agô, Ebony e a DJ Larinhx, que acompanhou a rapper, enfrentariam o mesmo no Gira: a projeção que abriu o show foi repetida duas vezes e o áudio das picapes chegou a ser cortado em meados da apresentação. Ainda assim, a dupla superou os percalços e animou bastante o Parque de Exposições.
Conhecida por ter um repertório sacana, debochado e bem humorado, além da notória sagacidade nos versos e da a astúcia para encontrar construções pouco óbvias ao tratar de sexo, Ebony começou o show com um clima bem diferente – e pesado. Num discurso sobre vários assuntos, ela contou que, recentemente, procurou a sua família biológica (é adotada por brancos) e, nessa busca, descobriu que foi fruto de abuso sexual. Também disse que foi abusada por um tio que queria criá-la para ser sua esposa e, em seguida, comentou sua treta com Slipmami e pediu um momento de silêncio pela rapper soteropolitana Delarua, que foi assassinada numa batalha de MCs em 2020. Por fim, relembrou de sua tia Marta, a quem dedicou o show: “Ela disse que eu não ia passar dos 15, mas tô com 24 e aqui no Afropunk”, disparou.
Um dos acertos do Afropunk é dar bastante espaço ao rap feminino, que marcou presença em todas as edições – antes com Tássia Reis (2021), Nic Dias (2022) e Ajuliacosta e Tasha e Tracie (2023). Ebony é uma das boas representantes da cena do trap e consegue atingir um público diferente por conta de suas letras, que flertam com a sexualidade comum ao funk, exaltam as suas próprias vontades e buscam referências nerds e do universo otaku. Com energia, a carioca fez um show bastante animado, se destacando com os versos de “Megalomaníaca”, “Pensamentos Intrusivos”, “Hentai” e “100 Mili”, além de “SXO”, parceria com Larinhx e Carlos do Complexo.
Por volta das 20 horas, foi a vez do show de Larissa Luz, que foi apresentadora da primeira (e reduzida, por conta da pandemia) edição do Afropunk em Salvador. A soteropolitana começou a sua performance sob alguns pingos de chuva – a atração que tem se repetido desde que o festival passou a ocorrer no Parque de Exposições, de 2022 em diante. Seu início de apresentação teve um quê de manifesto, a partir de versões de “Liberdade”, clássico de Edson Gomes, e de “Zé do Caroço”, de Leci Brandão, além do chamado pela representatividade em “Bonecas Pretas”, de sua autoria, e de uma projeção com discurso de Margareth Menezes, atual Ministra da Cultura, sobre raça e resistência.
Durante seu ótimo show, Larissa Luz passeou pelas groovadas “Afrodate (Dreadlov)” e “Cupido Erê”, e ousou ao apresentar algumas ótimas canções inéditas – “Deixa Embrasar”, Paz Terrível” e “Ritual Baile”. Contando com a participação de Chibatinha, guitarrista do Àttooxxá, em sua banda especialmente para este show, a cantora ainda engatou uma sequência com “Gira” e “Hipnose”, do ótimo álbum “Trovão” (2019), adubada pela suingueira das cordas do convidado, e um trechinho de “Primeiro de Maio (Gostosas Inteligentes)”, de Duquesa.
Porém, o ponto alto do show foi a participação de Edcity, ex-vocalista da Fantasmão, banda seminal do pagode baiano e idolatrada nas favelas de Salvador. Juntos no palco, eles produziram alguns dos melhores momentos do Afropunk. Primeiramente, os clássicos “Viola” e “Descer Quebrando” ganharam uma roupagem nada usual, com riffs pesados de guitarra, que os transformaram em autênticos pagodões roqueiros. Depois, foi a vez do hino “Conceito”, que foi tocado no arranjo criado em meados da década passada pela Braunation, banda que tinha como integrantes Mahal Pita, ex-BaianaSystem, e RDD e Oz, do Àttooxxá. No finalzinho da suingueira, Larissa Luz ainda incluiu versos de “O Que Se Cala”, gravada por Elza Soares, num bonito diálogo entre canções tão diferentes que falam sobre sentir orgulho da própria existência.
Perto das 21h30, chegava o momento mais aguardado do domingo: Lianne La Havas subiria ao Gira com a expectativa de dissipar as frustrações deixadas por Erykah Badu na noite anterior. E a britânica marcou presença rapidinho, com seu carisma e munida apenas de sua guitarra e sua voz. Simpática e com um sorrisão no rosto, agradeceu a presença do público e disse “vocês são barril”. Em seguida, já emendou “Green & Gold”, talvez a melhor canção do álbum “Blood”, de 2015.
Ao contrário de Erykah Badu, que encerrava sua turnê brasileira no Afropunk, Lianne La Havas fez, no festival, a primeira de quatro apresentações no país – a inglesa ainda terá uma data no Rio de Janeiro (21 de novembro) e outras duas em São Paulo (23 e 24). Iniciando como iniciou, ela parecia super disposta a entregar um showzaço. Porém, ainda no início, em “Sour Flower”, o som parou. A cantora nem percebeu e, envolvida no que fazia e em seu retorno, continuou a se apresentar sem que ninguém a ouvisse, debaixo de uma chuvinha que começava a apertar. No fim da canção, percebeu que sua voz e sua guitarra não ecoavam e, meio constrangida, deixou o palco.
Se passaram cerca de 25 minutos até que o problema fosse resolvido – parcialmente, pois o volume não foi o mais adequado para uma performance solo. Lianne La Havas voltou sorridente, tentando reconquistar a plateia e a própria concentração, após uma falha que não lhe dizia respeito, mas comprometeu bastante o seu show. Uma apresentação, aliás, que contou com a rápida presença de Liniker, com quem a britânica dividirá o palco no dia 23, em São Paulo. A brasileira se emocionou bastante e cantou “No Room For Doubt”, de “Is Your Love Big Enough?” (2012), disco de estreia da headliner.
No geral, a apresentação de Lianne La Havas reuniu principalmente composições de “Blood” e do álbum de 2020 que leva seu próprio nome. Dá para dizer que a britânica superou os perrengues técnicos com sua bela voz e sua destreza nas cordas, que prescindem de banda mesmo num festival. A cantora passeou por canções como “Paper Thin”, “Green Papaya”, “Courage”, “Midnight” e…. “Bittersweet”. A última da noite. Como se evocasse o espírito agridoce do que havia ocorrido ao longo de quase 2 horas, somando o show e a pausa forçada pela falha no som.
Caminhando para a reta final do Afropunk, a antepenúltima atração do festival fez um show em que era impossível errar. Numa apresentação especialmente pensada para o evento, o grupo Fat Family – que ficou marcado por quebrar paradigmas corporais na década de 1990 – cantou Tim Maia, um dos maiores hitmakers da história da música brasileira, também gordinho. E o resultado foi o esperado: público animado e satisfeito.
As irmãs Katia, Simone e Suzete Cipriano, que hoje lideram os vocais do Fat Family, contaram também com uma longa participação da sobrinha Talita, filha de Deise, integrante da formação original do grupo, falecida em 2019. Na seleção de canções do síndico, elas cantaram, em trio ou em quarteto, “O Descobridor dos Sete Mares”, “Do Leme Ao Pontal”, “Sossego”, “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso”, “Você”, “Um Dia de Domingo”, “Primavera” e até mesmo “Imunização Racional”. Também houve espaço para algumas canções do próprio repertório da família paulista, como “Eu Não Vou” e “Jeitinho Sexy”.
A penúltima atração do Afropunk não quis saber de qualquer eventual cansaço e de já ter começado a tocar na madrugada de segunda. A Timbalada não trabalha com falta de intensidade desde que foi criada por Carlinhos Brown, no início dos anos 1990, nas ruas de barro do bairro do Candeal, em Salvador, e, como é de seu feitio, emendou um verdadeiro pancadão para acordar qualquer um que estivesse desanimado, numa seleção que contou com um pouquinho de cada um dos seus principais álbuns. E olha que a formação atual, com os vocais de Buja Ferreira e Denny Denan, remanescente da primeira delas, nem é considerada a mais marcante do grupo percussivo.
A Timbalada não poupou esforços para enfileirar hits, desde as românticas de seu repertório (“Beija-Flor”, “Mimar Você”, “Namoro A Dois”, “Minha História”, “Se Você Se For” e a releitura de “Perdido de Amor”, de Edson Gomes) às mais agitadas e festivas – “Ai”, “Cachaça”, “Água Mineral”, “A Latinha”, “Ashansu”, “Faraó”, “Canto Pro Mar”, “Camisinha” e “Alegria Original”. A banda também abriu espaço para um pout-pourri de clássicos eternizados por blocos afro, mesclando “Revolta Olodum”, “Brilho de Beleza”, “Faraó (Divindade do Egito)” e “Alfabeto do Negão” – esta última, da Banda Reflexu’s, em homenagem ao Ilê Aiyê. Os timbaleiros se deram ao luxo de nem tocarem clássicos como “Toneladas de Desejo” e “Margarida Perfumada”, abrindo espaço para outras bacanas e menos valorizadas de su trajetória, como “Sambaê” (em deferência a Ninha, ex-integrante) e “Papá Papet”.
Para finalizar o Afropunk, uma novidade: a presença do arrocha, ritmo derivado da seresta e nascido em Candeias, na região metropolitana de Salvador. Para marcar a estreia do gênero no festival, o Parque de Exposições recebeu Silvanno Salles, um de seus expoentes. O Cantor Apaixonado, como é conhecido, fechou a noite embalando casais já formados e os que ainda viriam a se formar, além de grupos animadíssimos nas coreografias típicas da sofrência. Teve “Locutor”, “Amor de Buzu”, “Águas de Chuva” e, claro, “Tô Carente”.
No fim das contas, a edição de 2024 do Afropunk teve boas – algumas ótimas – ideias, mas pecou em sua concretização. A recorrência nos problemas de som não é (ou não deveria ser) aceitável para um evento tão importante e que preza pela excelência. Ao buscar mais estrelas e se aprofundar na fusão de gêneros, sempre com a premissa de não repetir atrações, o festival ratificou que almeja voos maiores sem perder a sua essência e o compromisso com os encontros entre a música popular preta e a celebração do orgulho étnico. Agora, o público torce para que o salto seja acompanhado por mais afino em sua execução.
Top 10 Afropunk Bahia 2024
1 – Timbalada
2 – Planet Hemp
3 – Léo Santana
4 – Lianne La Havas convida Liniker
5 – Larissa Luz convida Edcity
6 – Mateus Fazeno Rock
7 – Ebony
8 – Erykah Badu
9 – Fat Family canta Tim Maia
10 – Melly
– Nelson Oliveira é jornalista e fotógrafo residente em Salvador. É diretor da Calciopédia, foi correspondente de esportes do Terra na Bahia e colaborou com UOL, VICE e Trivela.