Entrevista: “Não se assustem com o nosso português”, pedem os lisboetas da Ganso, que está com disco novo e quer vir ao Brasil

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

“A nossa música é ‘spooky’, porque gostamos de sonoridades misteriosas, liricamente ricas e sem amarras”, diz-me o baixista Gonçalo Bicudo, acompanhado pelo guitarrista Miguel Barreira e pelo baterista Diogo ‘Horse’ Rodrigues, quando solicito uma apresentação prévia do som dos Ganso, durante uma animada conversa numa esplanada de um restaurante japonês perto da Estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Do grupo fazem igualmente parte João Sala (vocalista, letrista e tecladista) e Luís Ricciardi (tecladista) que não puderam estar presentes na entrevista.

Os Ganso formaram-se em 2015 com base na amizade que mantiveram na infância. A maioria dos seus integrantes frequentou o Liceu Francês de Lisboa e convivia em locais como o Bairro Alto, onde trocavam impressões sobre a música que pretendiam fazer e os instrumentos que tocavam. Foi uma formação em evolução e o nome da banda surgiu de uma forma aleatória. “Não há nenhuma ligação espiritual com o animal em si, apenas gostamos da sonoridade da palavra”, explica Miguel Barreira.

A estreia do quinteto lisboeta veio com o EP “Costela Ofendida” (2015) e dois anos depois lançaram o álbum “Pá Pá Pá”, um trabalho relativamente solto que abriu caminho para “Não Tarda” (2019), um disco mais maduro e compassado com um feeling de banda em plena carburação em estúdio, a que se seguiram os singles “Gino (O Menino Bolha)” e “Sorte a Minha”, de 2022, que marcaram o regresso do grupo à atividade depois do período da pandemia.

Com a edição do terceiro álbum, “Vice Versa” (2024), gravado em Paris no passado mês de junho, nos estúdios La Frette, com a produção de Domingos Coimbra (Capitão Fausto) e do engenheiro de som Anthony Cazade (Arctic Monkeys e Nick Cave), os Ganso criaram um conjunto de canções dinâmicas e encorpadas, dando um sentido mais amplo ao seu indie rock, à lírica e aos jogos de palavras incisivos do vocalista João Sala. Há uma evidente marca do pop dos anos 80, arranjos prog-rock, e uma convergência de sintetizadores analógicos e guitarras distorcidas no trabalho que lhe dão um especial encanto.

Essa adição é acompanhada por um novo pico de maturação e reflexão sobre a atualidade, sem perder de vista aspetos como a fruição, o romantismo ou o afeto. Para além dos singles de avanço “Papel de Jornal” e “Fetiche Fonético”, que resultaram em clipes, destacam-se ainda a vigorosa faixa-título (segundo Diogo, “é a música mais completa porque, tanto fala do conceito unificador do álbum desenvolvido pelo João Sala, que assenta nas parecenças que afastam as pessoas e nas diferenças que as aproximam, como do amor”), a irônica “Sinais a Mais” e a arrojada “Nos Anos 20” que exprime a ambiguidade entre o presente e o passado.

Atualmente, os Ganso estão em pleno processo de apresentação do álbum “Vice Versa”, num tour de várias cidades portuguesas que culminará com um show no B. Leza (Lisboa) a 19 de Dezembro. A ênfase nas novas canções e o fato de sentirem que se estão a aprimorar, à medida que a turnê avança, dominam o pensamento do grupo, mas existem outros objetivos que a banda pretende alcançar. “Estamos a tentar traduzir da melhor forma a complexidade dos arranjos e a ambição que tivemos em acrescentar mais camadas no disco e procurar que isso esteja presente no espetáculo e as pessoas possam sentir essas coisas”, conclui Miguel Barreira.

De Lisboa para o Brasil, os Ganso conversaram com o Scream & Yell. Confira:

O novo álbum, “Vice Versa” (2024) foi gravado durante o verão, em Paris, nos estúdios La Frette, e contou com a produção de Domingos Coimbra (Capitão Fausto) e do engenheiro de som Anthony Cazade (Arctic Monkeys e Nick Cave). Como correu o processo e em que medida trabalhar com o Domingos e o Anthony enriqueceu o vosso trabalho?
A experiência em Paris foi fantástica. Tratou-se de uma semana mágica nas nossas vidas. Para já, fomos muito bem preparados porque sabíamos que tínhamos poucos dias, até porque o orçamento não dava para tudo. O objetivo era ter as músicas quase prontas e ir lá gravá-las. No processo de produção o Domingos Coimbra foi fundamental porque é sempre importante ter alguém, que não tu próprio, a dizer-te: “Vamos tentar fazer isto de uma forma diferente”. Ele agitou um pouco determinadas coisas que achávamos que estavam boas e, de fato, alguns aspectos que experimentamos ficaram melhores. O Anthony Cazade teve um papel mais de consultor sônico, de certa forma. Nós mostramos ao Anthony o disco todo, antes de o começarmos a tocar, e ele ficou logo com uma ideia de como nos queria gravar. Foi discutida a forma como queriamos o som da bateria numa música, pedimos-lhe para fazer e ele dava ideias também. Sentimos que foi aí que tudo se tornou mais especial. Quando estávamos a gravar a canção “Curioso e Aborrecido”, que foi intencionalmente composta para ter um beat de drum machine, e tendo em conta as limitações técnicas, o Anthony sugeriu fazermos isso a tocar ao mesmo tempo. Ele fez-nos olhar para a música de outra maneira e contribuiu para o processo tal como o Domingos. Na realidade, não podíamos deixá-lo de fora. O Anthony deu mais ideias do que nós imaginávamos. Nós estamos em todas as fases do processo e é sempre desafiante estar a olhar do exterior e o Domingos estava automaticamente fora ajudando-nos em grande parte dos arranjos. Foi a primeira vez que gravamos um álbum sem ser com o nosso material ou de amigos. Como nos encontravamos numa situação que não era familiar tivemos de abrir os braços para outras pessoas e para esse espaço que não conhecíamos tão bem. Isso tornou a experiência do disco completamente diferente e enriquecedora. Só de termos saído de lá já estamos com imensas ideias de como queremos fazer o próximo disco. Mesmo que sejamos nós a gravá-lo ou com outra pessoa noutro local. O trabalho foi gravado em junho de 2024, lançamos uma música dois meses depois e o disco em outubro. Nunca tínhamos registrado e acabado um álbum em três meses. Foi quase como se tivéssemos recebido uma injeção de dopamina durante a noite e o dia (risos).

Musicalmente, o disco tem um andamento mais ‘upbeat’ e juntam-se à vossa sonoridade indie rock o pop dos anos 80, arranjos prog-rock e uma dinâmica superior no contexto do vosso trabalho. Esta orientação sonora foi uma forma de se afastarem do ritmo mais lento do álbum “Não Tarda” (2019) ou uma súmula das vossas preferências atuais?
Achamos que foi uma súmula das nossas preferências atuais. Na época do disco “Não Tarda” andavamos a escutar coisas mais calmas. Estavamos um pouco viciados no city pop japonês e nos sons atmosféricos e agora as nossas influências coletivas convergiram para timbres ritmados. Falamos de uma onda roqueira e 80’s ou o que seja e acabou por surgir uma amálgama dessas referências todas. Para este álbum houve muitas influências que nós fomos buscar, sejam os Talking Heads ou procurar um determinado som de bateria. Também referenciamos bandas de eletropop francês como Justice ou Yellow Magic Orchestra (uma espécie de Kraftwerk do Japão). Eles usam imensos sintetizadores, que sempre adoramos. Nós escutamos esses músicos, tentamos replicá-los, interpretá-los à nossa maneira e trouxemos isso para o contexto das canções que escrevemos. Acabou por ficar uma coisa diferente dentro do nosso estilo. No entanto, concordamos consigo, porque tentamos fazer algo distinto do disco “Não Tarda”. Esse trabalho era tão calmo e os singles que lançamos depois, “Gino (O Menino Bolha)” e “Sorte a Minha”, ambos em 2022, foram músicas que compusemos nos retiros em que criamos estas. Depois da pandemia, estivemos muito tempo sem editar nada e quisemos dar uma injeção para poder fazer concertos e voltar à vida ativa e pegamos nas melhores canções que escrevemos nos retiros e lançamos esses dois singles e tentamos fazer uma digressão, que correu muito bem para nós. Depois, juntamos as restantes músicas que tínhamos e acabamos por escrever mais três ou quatro e fizemos este disco. O nosso último lançamento já vinha um pouco na onda de querermos partir do “Não Tarda” para uma sonoridade mais ‘upbeat’.

O primeiro single, “Papel de Jornal”, tem uma toada acelerada e, liricamente, segundo as vossas palavras, “é um ego trip à moda do hip hop”. Gostaria de saber o que inspirou esta letra tão afirmativa e agreste ao mesmo tempo?
O João Sala (vocalista, letrista e tecladista da banda) na adolescência dele e mesmo hoje em dia sempre foi muito influenciado pelo rap e pelo hip-hop, sobretudo português. Por isso, ele tem imensa vontade de introduzir esse tipo de maneirismos e linguagem no indie rock. É uma forma que não é própria ao nosso gênero musical, mas que dá um certo frescor ao nosso estilo de canções. Quando vimos essa letra pensamos: “Lindo!”. Porque é uma coisa diferente e dissemos-lhe: “Nunca escreveste nada assim”. E o João explicou-nos que no hip-hop há imensas letras semelhantes, ou seja, não há grande história e o tema é: “Eu sou o maior e tu és uma merda”. A faixa “Papel de Jornal” acaba por seguir essa ideia de ser uma pessoa contra o mundo e em que esse indivíduo “escreve letras muito bem e as do outro são péssimas”. Ele não está a falar de ninguém em particular, mas está a tomar de empréstimo essa estética e a escrever por cima de uma malha instrumental que é mais krautrock e assim cria-se uma fusão interessante.

Em “Fetiche Fonético” vocês assinam a vossa primeira canção multilingue, numa parceria com o duo italiano Le Feste Antonacci. Como surgiu este encontro e o que pretendiam concretizar com a canção?
Essa música surgiu num momento em que o João Sala já tinha escrito várias canções. Nessa altura, encontramos o que julgavamos ser o fio condutor do disco, ou seja, aquilo que o João defende sobre as parecenças que nos afastam e as diferenças que nos aproximam e, com base nessa ideia que ele desenvolveu, ele falou sobre o sotaque do norte de Portugal. O João tem a sensação que o nosso sotaque é o mais escutado e disseminado, mas ele tem mais interesse noutros, independentemente de serem melhores ou piores. O encontro com os Le Feste Antonacci foi algo que o Diogo “Horse” Rodrigues insistiu, para termos colaborações no álbum. Essa participação acabou por acontecer tão organicamente e foi a única que acabou por fazer sentido. Nós conhecemos o baixista dos Le Feste Antonacci na Lisa (um bar lisboeta em Santos), porque eles tocaram com um músico francês (Antonin) nesse espaço. O João Sala fez dj set, o pessoal estava todo lá e conhecemos o Giacomo Lecchi D’Alessandro e acabou por aí. Quando esta conversa das participações surgiu houve uma insistência e pedimos ao João para mandar uma mensagem para os Le Feste Antonacci a convidá-los. Nós gostamos imenso deles e o grupo é incrível. Recebemos a resposta com a confirmação e eles disseram que adoraram a canção. Aquilo que escutamos no disco é exatamente o que eles nos mandaram da primeira vez. Ficou ótimo e acho que todos nós queremos ter mais parcerias. Recordamo-nos bem do álbum “Cuca Vida” (2020), do selo Cuca Monga, onde participamos, que foi muito rico e na base de uns com os outros e todos por um. A música ganhou uma nova vida. Ela estava toda feita quando a mandámos para eles, com um segundo verso do João Sala, mas foi enriquecedor de uma forma que não conseguiríamos, porque trazer pessoas de fora é sempre especial.

A editora a que estão ligados, Cuca Monga, representa um portfólio de artistas diversos como os Capitão Fausto, Luís Severo, Zarco, João Coração e Salto, entre outros. Como avaliam o trabalho que tem sido desenvolvido desde a fundação (2014) relativamente aos Ganso e a todos os músicos envolvidos?
A Cuca Monga surgiu num momento chave, a segunda vaga da edição independente em Portugal, porque a primeira tinha sido uns anos antes. Ela é a editora de tudo aquilo que os Ganso já lançaram e queremos que assim continue. Entendemo-nos bem e temos uma maneira parecida de ver a vida e a música. No fundo, a Cuca Monga é formada por amigos, colegas nossos e amigos de longa data. Só há coisas boas a dizer e destacamos sobretudo estes últimos anos e, particularmente, a vontade de crescer e representar os artistas de uma forma mais transversal e completa. A Cuca Monga é o sítio onde gostaríamos de estar e encontramo-nos mesmo. Ela tem algo de unificador e federador, porque o que interessa é discutirmos ideias sejam elas políticas, sociais ou de gargalhada. Estamos todos à mesa ou a beber copos e nós identificamo-nos com isso.

Gostariam de deixar uma mensagem aos leitores do Scream & Yell?
Esperamos que os leitores do Scream & Yell consigam ver a vida deles através dos nossos olhos e das nossas palavras. Nunca vivemos no Brasil mas imaginamos que seja diferente de cá. Desejamos que consigam encontrar um ponto comum mais do que nós consigamos inventar se há ou não. Pedimos também que escutem os Ganso de mente aberta. A possibilidade de atuar no Brasil é algo que nos agradaria muito. Não sabemos qual é a nossa audiência lá. Esperemos que exista, porque vemos os comentários dos internautas brasileiros no nosso conteúdo. Era ótimo partirmos num avião e tocarmos no outro lado do oceano. Seria uma forma de tentar expandir a mesma bolha, já que partilhamos a mesma língua. Gostavamos imenso de tocar no Brasil seja em que cidade for. Por isso, se encontrássemos um circuito novo e mais amplo do que Portugal para fazer shows seria uma dádiva enorme. Não se assustem com o nosso português e dêem uma oportunidade à música. Se for preciso leiam as letras dos Ganso no ‘inlay’ do disco. A lista de músicos brasileiros que gostamos de ouvir é interminável. Nós retiramos coisas deles e influenciam-nos imenso, tanto nos arranjos como em melodias ou progressões de acordes. Acreditamos que o Brasil é o país mais rico do ponto de vista musical. Da nova vaga brasileira gostamos muito da Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, particularmente do álbum homônimo de 2021 e do disco “Música do Esquecimento” (2023), mas também da Ana Frango Elétrico que tem um teor de ‘groove’ altíssimo e dá mesmo ambição de tocar aquele nível um dia. Relativamente a coisas mais antigas, que talvez tenham influenciado o nosso novo trabalho, na temática ´spooky´, indicamos Os Mutantes. O álbum “Clube da Esquina” (1972), do Milton Nascimento, também nos estimula porque há uma altura da vida em que aquilo volta a ser relevante. Não estamos a bajular os nossos potenciais ouvintes brasileiros para poder ir lá tocar, porque trata-se de um panorama musical riquíssimo e que nos fascina.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui

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