entrevista de João Paulo Barreto
Em 48ª edição, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo traz uma seleção que ultrapassa as mais de 400 obras oriundas de diversas partes do mundo. Trata de um evento tão familiar e íntimo ao público cinéfilo (que a chama carinhosamente de Mostra SP ou apenas Mostra) que sua identificação de lugar e completude se dá com apenas uma palavra. Chegando a quase meio século de existência, é com ansiedade tamanha que esse mesmo público espera pela divulgação do catálogo de filmes e atividades que serão exibidas durante as quase duas semanas que duram o festival.
Na homenagem desse ano, o cineasta indiano Satyajit Ray terá apresentada uma retrospectiva de sua filmografia com sete longas dirigidos entre 1955 e 1966. E acompanhando os filmes do diretor, a Mostra trará uma leva de produções oriundas da Índia, com mais de 30 filmes. “Quando trazemos um foco especial, fazemos um panorama contemporâneo do país. E esse ano, além de uma retrospectiva do Satyajit Ray, vamos fazer um panorama do cinema contemporâneo da Índia”, explica, em entrevista ao Scream & Yell, a diretora-geral da Mostra, Renata de Almeida.
Entre os pontos que Renata de Almeida valoriza neste ano, ela destaca bastante a 1ª Mostrinha, com uma seleção de filmes infantis: “Temos 22 títulos (na Mostrinha). É algo que resolvemos arriscar por acreditarmos que temos que trabalhar com a formação de público. Eu acho que não dá para esperar que crianças cresçam só assistindo a filmes americanos de super-heróis e que cheguem na adolescência, na idade adulta, e assistam a filmes mais diversos, até mesmo a filmes do cinema brasileiro”, pontua a diretora-geral. Leia a conversa abaixo!
48ª Mostra de Cinema de São Paulo: 21 recomendações e apostas, de Leandro Luz
Mais de 400 filmes serão exibidos na Mostra 2024. Não posso iniciar essa entrevista com outra pergunta que não seja uma que aborde esse número e todo o esforço de organizar um evento desse tamanho.
Sim (risos), a Mostra está grande. Esse número de 400 filmes supera o do ano passado, quando tivemos 360 obras exibidas. Tivemos um acréscimo. Mas isso, também, foi por causa da Mostrinha, que resolvemos começar esse ano. No primeiro ano, quando começamos, a ideia era ver se ia dar certo. E foi algo que fizemos no risco. Achamos que ia ter um apoio especial para a Mostrinha, mas não conseguimos. Mas, mesmo assim, temos 22 títulos. É algo que resolvemos arriscar por acreditarmos que temos que trabalhar com a formação de público. Eu acho que não dá para esperar que crianças cresçam só assistindo a filmes americanos de super-heróis e que cheguem na adolescência, na idade adulta, e assistam a filmes mais diversos, até mesmo a filmes do cinema brasileiro. E isso da Mostrinha, a gente conversa também com um foco que estamos fazendo no Foro da Mostra, que é sobre formação de público e sobre o papel do audiovisual na educação, também. Esse foi um desafio desse ano. Começar algo novo, no risco, mas porque é como a Mostra começou, também. Porque acreditamos que a Mostrinha seja uma coisa importante. Estamos investindo para que ela cresça. Vamos ver se dá certo, se continua no ano que vem. Esperamos que sim, tanto que fizemos essa primeira Mostrinha já seguindo os preceitos da Mostra, que são filmes de diversos lugares, mas com uma presença forte do cinema brasileiro, também. E isso justifica um pouco esse número de 400, que eu também fiquei tentando entender e me culpando porque eu achava que o orçamento ia estourar. Porque 400 filmes é muita coisa. Você, como cinéfilo, sabe. A gente está ali num certo momento, com a programação já suficiente, números fechados, mas aí chega um filme que a gente adora, como é que você vai falar que não tem mais lugar? A gente arruma mais uma sala. Acho que a gente tem que ser mais racional para manter o mesmo número de filmes, mas tem um lado nosso cinéfilo que fala mais alto.
E dentre os destaques, você poderia falar um pouco da seleção e das homenagens?
São duas homenagens. A primeira é ao aniversário da série Castelo Ra-Tim-Bum. E a outra é uma homenagem ao Ziraldo, com a exibição dos dois filmes baseados no Menino Maluquinho. Além disso, tem muitos filmes que foram exibidos no Festival de Veneza. Tem “O Brutalista”, que ganhou o prêmio de Melhor Diretor (Brady Corbet). Tem, também, o “Happy Holidays”, filme do diretor palestino Scandar Copti, que ganhou prêmio na mostra paralela. Tem o “Vermiglio”, filme que foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri em Veneza, e tem, também, o “April”, que recebeu o Prêmio Especial do Júri. Tem também o foco do cinema da Índia este ano. Quando trazemos um foco especial, fazemos um panorama contemporâneo do país. E esse ano tem, também, uma retrospectiva dos filmes do Satyajit Ray. Então, procuramos fazer um panorama do cinema contemporâneo no país. Trouxemos 30 filmes de lá.
Um dos principais destaques é o filme “O Auto de Vitória” (1966), dirigido por Geraldo Sarno e que era considerado perdido, até que foi localizado a partir de uma busca do jornalista Piero Sbragia. Sendo baiano, fico orgulhoso de ver um realizador tão importante presente na Mostra.
Geraldo Sarno tem que ser mais valorizado. Ele merece que o Brasil o valorize mais, que ele seja mais conhecido. O Piero está escrevendo a biografia dele e me falou sobre o curta “O Auto de Vitória”. Pensamos em fazer algo até maior, com a série “Sertão de Dentro”, dirigida pelo Geraldo Sarno, e que ainda está inédita. Mas decidimos fazer, primeiro, a exibição com o curta que estava desaparecido. É um filme muito importante que queremos trazer à discussão. Você vê ali a religião junto com os militares, que levam o fêmur do Anchieta. Tem toda essa carga religiosa. Uma procissão atrás e os militares. É algo que a gente ainda vive muito forte no Brasil. Tanto a presença religiosa cada vez mais misturada com a política, até determinando a política e as decisões do país. E os militares, também. Como essa presença carregada ali. É uma discussão muito importante que o filme traz e que, depois, o Geraldo Sarno reflete em sua obra, no seu cinema. No ano que vem, com a biografia do diretor já lançada pelo Piero, queremos fazer uma homenagem bem maior. Isso é algo que ninguém sabe e estou te contando por você ser também baiano e admirador do Geraldo Sarno (risos). Acho que você merece saber que é um projeto em duas partes. Então, na conversa com o Piero, decidimos fazer a sessão de “O Auto de Vitória” na Cinemateca Brasileira porque a obra estava lá. A mesa do debate da sessão na Mostra vai ter a participação da filha de Geraldo Sarno, Paula, do cantor Tom Zé, da diretora Ana Carolina e do diretor da Ancine, Paulo Alcoforado, além do próprio Piero. Vai ser bem importante para o Piero, pois vai ajudá-lo na escrita do livro.
Outro destaque importante da Mostra é o filme “Ainda Estou Aqui”, adaptação do livro do Marcelo Rubens Paiva que Walter Salles dirigiu. Tive a oportunidade de assisti-lo em Salvador e queria lhe perguntar sobre a função do festival em destacar a obra em tempos nos quais insanos pedem intervenção militar.
O filme é lindíssimo e muito maduro. Não foi um trabalho fácil de fazer. São muitos personagens! Os filmes do Walter, como “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2003), são ótimos, mas eles são filmes com menos personagem. “Ainda Estou Aqui” é um filme muito complexo. Tem a passagem do tempo com muitos personagens que, inclusive, envelhecem. Tem a trama histórica. Aquela situação extremamente dramática, sendo que se evita cair no drama durante o filme. É um filme importante, também. É outro filme que fala com a história do Brasil, com o governo militar. Inclusive, o Walter começou a fazer antes de Bolsonaro e tudo, e, depois, durante o processo, começava a aparecer gente pedindo intervenção militar e tudo isso. Além de ser um filme ótimo, tem toda essa questão que é muito importante. O cinema serve muito pra isso. O cinema é para a gente rever a história. O cinema tem o tempo da reflexão. É algo que está faltando muito. O cinema pode ser algo poderoso. É muito importante esses filmes que retomam a história, retomam temas sobre os quais precisamos ainda conversar.
A Mostra também traz o IV Encontro de Ideias Audiovisuais, com foco em promover a reunião de realizadores e potenciais investidores. O evento foi lapidado ao longo das edições anteriores da Mostra. Como chegou ao formato atual?
Tínhamos antes várias atividades, mas elas eram esporádicas e um pouco dispersas durante a programação da Mostra. Começamos com o fórum, que trazia mesas de discussão e aconteciam com as pessoas que fazem a curadoria da própria mostra. A organização das mesas é da (jornalista) Ana Paula Sousa, que é uma das pessoas que mais entendem sobre política de cinema e sobre regulação. Depois, trouxemos ao fórum um foco visando discutir, também, o audiovisual no aspecto artístico, pois sempre tinha uma mesa discutindo essa parte, juntamente às mesas voltadas para a política do audiovisual e para os aspectos mercadológicos. Temos, também, o projeto “Da Palavra à Imagem”, que são mesas sobre a relação da literatura com o audiovisual e que traz ‘pitching’ com editoras que falam sobre seus livros para uma plateia de produtores, diretores, pessoas das plataforma de streaming, por exemplo. Lá, as editoras falam até de livros que ainda não foram lançados. Isso tem crescido. Lembro que houve um ano em que a gente resolveu não usar a Lei Rouanet porque estava muito difícil, com umas contrapartidas que eu fiquei com muito medo de não conseguir cumprir. E rolou uma coisa muito bacana que foi o pessoal da indústria brasileira, do audiovisual, apoiando a mostra com um grupo de patronos. E a entrada na Mostra da (produtora-executiva) Cris Guzzi, que vem desse histórico de mercado, a colocou apta a cuidar das mesas que abordavam esse setor. Então, para o Fórum, a Mostra SP propõe as mesas, e para as mesas do Mercado, é o próprio mercado que as propõe. São mesas que os players (potenciais investidores) acham que precisam ser discutidas. E tem crescido esse encontro de ideias que tem a coordenação da Cris. Colocamos tudo junto acontecendo na Cinemateca, onde tentamos concentrar as atividades nesses três dias. O Encontro de Ideias tem crescido de uma maneira orgânica. Acho que a Mostra tem esse DNA internacional. No primeiro ano, vieram os portugueses. Esse ano, vamos trazer uma delegação muito grande da Índia e da Colômbia, também. Representantes do fundo de Luxemburgo, de Roterdã, do Uruguai, todos vão estar presentes. O fundo de Luxemburgo é um dos mais ricos da Europa, e nós teremos a presença do produtor Meinolf Zurhorst para falar sobre esse fundo. Então, de uma maneira orgânica, esse mercado está crescendo. Está levando o Encontro de Ideias para a direção do Internacional. E, também, para o Brasil. Porque essas pessoas todas estarão presentes e querem encontrar os brasileiros. Então se abre toda uma gama de possibilidades de ter uma coprodução com a Índia, que temos poucas. Com a Colômbia, também, um país que está super forte no cinema.
48 anos do evento e a Mostra terá uma série dirigida pela Marina Person e pelo Gustavo Rosa na qual a trajetória do festival é contada. Você poderia falar um pouco sobre a ideia da série “Viva o Cinema! Uma História da Mostra de São Paulo”?
A HBO encomendou essa série com a Marina e com o Gustavo. Quando a Marina veio conversar comigo e me convidar para participar, eu falei que não queria saber (risos). Lembro que reagi até mal quando ela veio me convidar. Expliquei dizendo que era necessário que a série tivesse o olhar dela. Se eu participasse de alguma maneira, teria o meu olhar. E a Mostra é o que fica para o público. Por isso, tinha que ter o olhar dela. Eu disse que poderia dar depoimento, mas não quis ler o roteiro quando ela me ofereceu. Não quis nem assistir quando chegou (risos). Tive que pedir para uma amiga para assistir antes e me falar se estava boa, ou eu não ia assistir. Mas é algo bacana, porque a Marina fez sobre a relação pessoal dela com a Mostra. Primeiro sobre uma pessoa que ia para a Mostra como espectadora. Depois, como uma pessoa que cobria o evento a trabalho, uma vez que ela fez a cobertura da Mostra pela MTV durante muito tempo. E ela, inclusive, chegou a apresentar a Mostra. Depois, ela veio como cineasta convidada apresentar o seu próprio filme. Isso é bonito. É um pouco o segredo da Mostra. Fiquei pensando sobre isso. Sobre a cada ano a Mostra mudar a sua cara. A cada ano ter um pôster diferente, uma vinheta diferente. As pessoas, mesmo que assistam a apenas um ou dois filmes, quando elas veem a imagem, elas lembram o que aconteceu com elas naquele ano. Elas têm uma relação pessoal com a mostra que eu acho algo muito bacana. Afetivo, até. Tem uma relação que passa pelo afeto porque a gente trata a Mostra dessa maneira do afeto também. Na ocasião, a HBO foi comprada. E eles pararam várias produções. E eu achei que eles iam parar a série da Mostra. O que seria normal. Pra minha surpresa, eles continuaram. O grupo que comprou continuou com a série da Mostra, que estava no começo do processo. Eu cheguei a dizer a eles que pensava que iriam desistir. Para mim, foi uma surpresa essa continuidade. Achei bonito o resultado porque a Marina faz um paralelo que é um pouco o que nós, com a Mostra, tentamos fazer. Com o que está acontecendo no Brasil e no mundo também. Contextualizar na série o que estava acontecendo na época no mundo e o que fizemos na Mostra. Traz o começo, quando a mostra foi proibida pela censura na tela. É um evento que tem 48 anos. Ela seguiu na história de muitos momentos do país. Teve uma matéria do Globo, lá no começo, que falou que a Mostra era o único lugar onde se podia votar. Porque a gente sempre deu muita importância para o voto do público. Tem todas essas coisas históricas que a Marina e o Gustavo pegaram e que eu achei bonito. A relação da Mostra com a história do Brasil, e a relação pessoal deles dois com a Mostra. Isso resume um pouco o que somos como evento.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. A foto que abre o texto é de Leo Lara.
Obrigado pela alta dose de informação, num texto de quem gosta do que faz. Apaixonado!
A mostra é sim importantissima e continua viva. Agradecamos também ao empteendedorismo do iniciador Leon Cakoff, falecido.