Três filmes do 26º Festival do Rio: “Malu”, “Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinícius”, “Apocalipse nos Trópicos”

textos de Leandro Luz

“Malu”, de Pedro Freire (2024)
Muito tem se falado do elenco de “Malu” (2024), que de fato apresenta um trabalho primoroso tendo como epicentro a atriz Yara de Novaes, cuja performance cresce em diálogo com as presenças de Juliana Carneiro da Cunha, Carol Duarte e Átila Bee. Malu, a protagonista, é uma atriz idealista de espírito livre, moradora de uma casa situada na região periférica do Rio de Janeiro na qual sonha transformar em um centro cultural, com direito à construção de um teatro de bolso e de um “cineminha” para a molecada. A personagem, inspirada na mãe do próprio diretor (Malu Rocha), viveu seus dias de glória durante a ditadura militar, ocasião em que pôde performar o desbunde característico de sua geração para confrontar a caretice vigente. Conta inúmeras vezes, a quem tiver disposição para ouvir, os seus planos arquitetônicos para a casa e as inveteradas histórias que compartilhou com Plínio Marcos e outros dramaturgos importantes da época. O rancor que sobra para o ex-marido é constantemente transformado em amor e carência no diálogo com a filha, interpretada por Carol Duarte, que se destaca nas cenas que exigem maior força dramática. A parte mais cômica, ainda que em sua dimensão trágica, fica por conta de Juliana Carneiro da Cunha que vive Lili, mãe de Malu, muito religiosa, avessa ao baseado que a filha fuma diariamente e cega diante do seu preconceito para com Tibira, personagem de Átila Bee, que mora nos fundos da casa. O olhar de Pedro Freire, auxiliado pelo trabalho de fotografia brilhante desempenhado por Mauro Pinheiro Jr. (certamente um dos maiores diretores de fotografia de sua geração), conduz a simples trama e as complexas modulações com um frescor surpreendente. O que o diretor e o fotógrafo tiram dos poucos ambientes que filmam é uma proeza. Atravessamos os anos junto com as personagens, apoiados pela câmera vibrante de Mauro e pelo magnetismo de Yara de Novaes. Este é o primeiro longa-metragem de Pedro Freire, que sai do Festival do Rio premiado com o Troféu Redentor de Melhor Longa-Metragem de Ficção da Première Brasil – prêmio que o júri optou por dividir com “Baby” (2024), de Marcelo Caetano.


“Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinícius”, de Emílio Domingos (2024)
Documentário realizado com muito esmero e boas ideias por Emílio Domingos, cineasta que está em um namoro bem sucedido com a música brasileira já há um bom tempo – desde o início de sua carreira, aliás, com “Pretinho Babylon” e “L.A.P.A.”, ambos dirigidos com Cavi Borges em 2007. Em “Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinícius”, o arquivo respira e as músicas soam bem demais na sala escura. O diretor, em parceria com seu montador, Diego Quinderé de Carvalho, opta por organizar o material em torno das canções do disco, uma ode à música brasileira e ao melhor jeito de escutá-las: em alto e bom som. É ótimo que cada uma das oito faixas do álbum tenha o seu momento, funcionando como ponte para elementos que ajudam a contar a história das biografias de seus dois criadores e dos artistas, produtores e técnicos que giraram em torno das gravações. As informações acerca da participação do Quarteto em Cy e do “côro desafinado” são bem valiosas, e as tergiversações protagonizadas por Maria Bethânia garantem um respiro necessário para que possamos ligeiramente fugir do objeto central de discussão do filme. Há uma contextualização bastante objetiva de como a música brasileira era percebida entre 1962 e 1966, período no qual o conceito de “afro-samba” foi fabulado por Baden Powell e Vinícius de Moraes e todas as músicas do disco – e ainda algumas que ficaram de fora – foram compostas. Na medida em que um projeto como esse consegue se sustentar financeiramente (a Warner é coprodutora do filme), há de se compreender as concessões, conscientes ou não, que precisaram ser feitas: as entrevistas comportadinhas e a interrupção um tanto incômoda do fluxo de algumas elucubrações são os exemplos mais gritantes. As presenças de medalhões como Nelson Motta, Marcos Valle e Roberto Menescal também puxam o filme para baixo – sobretudo por serem figurinhas carimbadas em documentários musicais feitos no Brasil -, resguardando o máximo respeito aos três. Não obstante, temos Kiko Dinucci e Russo Passapusso (este último, por sinal, aparentando curtir uma excelente “brisa”) para sacudir a poeira das velhas histórias e pensar no que pode um disco de 1966 apontar para o futuro.


“Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa (2024)
Após ter feito sucesso (na medida em que um documentário brasileiro consegue fazer sucesso) com o sensível e íntimo “Elena” (2012) e ter desenvolvido o seu olhar como cineasta com o pouco visto “Olmo e a Gaivota” (2015, codirigido com Lea Glob), Petra Costa se lançou aos grandes temas da política brasileira. A partir de “Democracia em Vertigem” (2019), seu hit cujo selo Netflix ajudou a impulsionar, as características da diretora no trato com a linguagem cinematográfica – narração em voz over bastante particular, reflexões alongadas acerca de determinados temas, cuidado com o ritmo e a função narrativa da montagem – passaram a servir ao debate público e à construção de narrativas que tentam dialogar de maneira aberta com as feridas de um país dividido. A novidade em “Apocalipse nos Trópicos” (2024), seu mais recente trabalho, é observar os fenômenos políticos sob o ponto de vista da influência da religião, sobretudo nos últimos vinte anos. O filme investiga a atuação de líderes religiosos por trás de lideranças políticas, elegendo como protagonista ninguém mais, ninguém menos do que Silas Malafaia, o pastor neopentecostal, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que vem sequestrando as mentes da população desde que “invadiu”, há praticamente três décadas, a rede de televisão aberta do país. Carismático, posando de bom moço com sua família de comercial de margarina, Malafaia vomita absurdo atrás de absurdo, seja na conversa que estabelece com a equipe do documentário, seja nas imagens de arquivo as quais os montadores elegem como relevantes para contextualizar historicamente a situação. Aliás, a montagem, apesar de bem conduzida, às vezes cria algumas equivalências bastante equivocadas, como se tivesse que prestar contas pelo fato de Malafaia ter apoiado Lula em 2002 e 2006. Por mais que eu genuinamente goste da Petra Costa, formalmente o seu trabalho, tão institucional, se diverte muito e se revolta pouco com o mundo que observa.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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