Entrevista: 15 anos após seu segundo disco, João Coração retorna com “Soberana”, um disco todo sobre uma mulher

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

A década de 2000 ficou marcada por uma renovação da música alternativa em Portugal, através do dinamismo dos selos FlorCaveira e Amor Fúria, e deu a conhecer artistas como Samuel Úria, B Fachada, Tiago Guillul, Jorge Cruz e Manuel Fúria, entre outros, que afirmaram a importância de cantar em português e apontaram novos caminhos musicais e líricos para o pop e o rock lusitano. No epicentro desse movimento estava, também, João Coração (alter ego de Daniel de Castro Ruivo), que foi o autor de dois discos cultuados: o luminoso e eficaz “Muda Que Muda” (2009) e o noturno e circunspecto “Nº 1 Sessão de Cezimbra” (2008), ambos editados pela FlorCaveira.

Corta para 2024: nos primeiros momentos da nossa conversa, na sala do seu apartamento no bairro do Lumiar, em Lisboa, abordamos o percurso diversificado que o levou a estudar arquitetura e cinema e a montar nove empresas em áreas relacionadas com a criatividade. O primeiro instrumento que tocou foi a bateria, mas pretendendo ter mais capacidade de expressão, aprendeu a tocar outros instrumentos, como autodidata. Para além de gostar muito de artes visuais, João assina os seus próprios clipes e fez também a capa do novo disco, “Soberana” (2024), que marca um regresso aos lançamentos discográficos ao fim de 15 anos. “Se eu tivesse de escolher uma só arte seria a música”, confessa, enquanto me mostra, com evidente prazer, as potencialidades rítmicas e melódicas de um omnichord, que se encontra num quarto onde conserva outros instrumentos musicais.

“Soberana” (editado pelo selo Cuca Monga) é um trabalho maioritariamente romântico com canções pop, um travo veraneante pontual e algum cariz exploratório. Nele, João Coração continua a revelar um intimismo peculiar na forma como reflete, até onde é possível, a crença e esperança num grande amor e os receios associados a uma relação, colocando o cerne numa mulher soberana e idealizada. Há também uma forma requintada e cintilante na abordagem ao pop e um lado poético bastante vincado. Sobre essa componente particular das suas letras, o artista afirma uma ideia de profundidade e o gosto pelas diferentes interpretações: “Eu tenho, naturalmente, uma maneira poética de olhar para as coisas. É uma forma de expressão muito rica. Porque o que sentimos é, por vezes, tão complexo. E a utilização literal do verbo fica aquém do que está a acontecer dentro de nós. A poesia tem uma liberdade muito grande e permite-nos aproximar de aspectos mais profundos. Como toda a expressão artística, toda a gente vai ler da sua maneira e isso também é interessante para mim”.

O novo álbum contempla dois duetos com vozes femininas: “Amour Multilingue” (com Márcia) e “Tu Defendes Eu Defendo” (com Marta Falcão). Ambas as faixas representam o lado mais colorido do trabalho, mas enquanto na primeira há um maior refreamento, a segunda revela uma maior soltura. João Coração afirma que as duas canções lhe surgiram mentalmente como duetos e acentua que “tanto uma como outra são diálogos”. Sobre o que as distingue, o músico sublinha que representam estados diferentes no âmbito do relacionamento entre duas pessoas: “A ‘Amour Multilingue’ é mais focada nos movimentos iniciais de aproximação e é anterior a ‘Tu Defendes Eu Defendo’ que representa a primeira reação às defesas que as pessoas trazem naturalmente para uma relação”. A derradeira e enigmática “Nunca Mais”, de inclinação orquestral, na qual se repete a estrofe “A nossa vida nunca mais vai ser igual”, pressupõe que a história ainda esteja em aberto, mas abarca outra perspectiva. “Há pessoas que passam a vida toda a tentar voltar a um lugar onde estiveram. No entanto, a vida avança e estamos sempre num lugar diferente. A frase é um pouco a La Palisse, mas o significado é que depois do que aconteceu tu e eu nunca mais seremos as mesmas pessoas, seja qual for o futuro”, explica.

Relativamente ao show de apresentação de “Soberana” (na lisboeta Musicbox a 8 de novembro) e à sua expectativa sobre o acolhimento do público, João Coração sente como se estivesse a “conquistar tudo a partir do zero”, mas está preparado e promete um espetáculo especial. “Será uma celebração e uma festa. Para além da minha banda vou tentar convidar artistas que eu gosto. É um pouco como era antes, em que juntava as pessoas no palco e agrada-me fazer isso. Não me satisfaz a ideia de um concerto que tenta reproduzir o disco. Nunca procurei isso nem me atrai vê-lo ao vivo. Interessa-me assistir a uma performance que acontece naquele momento e noutra ocasião será diferente. O que eu quero trazer para o palco é único. A verdade não é algo que vais replicar é apenas a verdade que se manifesta nesse dia. Eu consigo transportar isso para os meus shows e é o que eu procuro na arte”, conclui.

De Lisboa para o Brasil, João Coração conversou com o Scream & Yell. Confira:

Entre a edição de “Muda Que Muda” (2009) e “Soberana” (2024) passaram-se 15 anos. Como surgiram as novas canções e por que demorou tanto tempo para lançar um novo disco?
As canções surgiram quando a vida me colocou naquele lugar em que elas apareceram. Não decido quando é que elas vêm e nestes 15 anos estive afastado, porque estava muito dedicado a não depender da música e empenhei-me a construir as minhas empresas. Fiz um par de canções dispersas, mas a catadupa de faixas que apareceram de repente, quando eu estava sentado, e em que fiz 30 músicas em 20 dias, isso é algo que a vida me trouxe a esse ponto. Fiz as canções todas ao mesmo tempo no ano passado, porque elas vieram na mesma altura. As músicas apareceram sem aviso e não bateram à porta. Por isso, elas surgiram de forma instintiva. Mas, todas as faixas deste disco são sobre a mesma mulher. De certa forma, o que acontece é que eu não escrevi estas canções, elas nasceram no momento. É como se a canção já existisse. Quando ela me veio não a conhecia e estou a descobri-la nesse instante, só que em vez de estar a fazer ‘play’ num leitor qualquer sou eu que estou a cantá-la. É muito estranho, mas foi exatamente assim que aconteceu.

As canções do seu novo álbum são sobre uma mulher “Soberana” e é recorrente a abordagem ao universo feminino no seu trabalho. Um desses exemplos é a canção “Conheci Uma Menina”, do disco “Nº1 Sessão de Cezimbra” (2008), em que você revela uma aparente rendição. Qual é a sua perceção atual sobre as mulheres e o amor?
Há um lado meu muito romântico, não no sentido da paixão, mas no sentido do movimento romântico. O que eu quero dizer é uma forte crença numa ligação superior e infinita no tempo e maior do que conseguimos explicar. No movimento romântico é como uma reação à finitude da vida. Há uma necessidade nossa de trazer um sentido para a vida, com ligações muito profundas. Os românticos faziam isso relativamente ao tempo e à morte. Eu tenho um pouco essa faceta. Tem graça você citar a canção “Conheci Uma Menina” porque este romantismo nem sempre é sobre a relação entre duas pessoas. Na faixa, a menina representa a morte. Há realmente uma analogia sobre uma garota que conhecia de cor as minhas canções, mas representa uma reflexão minha sobre uma pessoa muito próxima que faleceu e sem pensar saiu-me aquela música. Foi uma reação direta e imediata no dia em que isso aconteceu. Mas, este disco, “Soberana” (2024) é todo sobre uma mulher. Representa a imagem de uma mulher idílica, ideal e soberana. A minha visão sobre as mulheres não mudou muito nestes 15 anos e sobre o amor acredito que também não houve grandes mudanças. A forma como eu vejo uma mulher ou uma criatura neste mundo é como um universo infinito. Qualquer pessoa com que me cruzo é um universo gigante, e eu também, e esse encontro não é sempre constante. É algo que vai ter fases diferentes e momentos de harmonia ou de falta dela, bem como etapas de maior proximidade e de maior distância. A dicotomia entre o amor e a paixão nunca será definida com muita exactidão, mas eu diria que o amor é um estado de respeito ao outro universo como ele é, independentemente da proximidade, ao ponto em que estaremos sempre disponíveis, aconteça o que acontecer. Isto não se traduz só no amor romântico entre um casal, mas também no amor entre pais e filhos, entre amigos ou irmãos. Podem acontecer falhas, no entanto o vínculo é inabalável e incondicional e estaremos sempre lá.

No álbum anterior, “Muda Que Muda” (2009) você colheu influências nos Talking Heads, Serge Gainsbourg e em música de westerns. Desta vez, houve outras referências que o marcaram musicalmente e que quis transportar para o novo trabalho?
Normalmente, gosto de pensar uma canção. Para mim, ela existe sem o arranjo e é uma letra com uma melodia, por isso é algo que tem de funcionar a cappella. A pessoa canta e aquilo é a canção. A obra é isso e depois o arranjo que ela leva pode ser um ou outro em momentos diferentes. Quando um arranjo de uma canção me vem à cabeça é natural que seja influenciado pela música que escuto. Na minha sala tenho 200 vinis, mas noutra divisão da casa tenho 2000 álbuns e tudo o que ouço influencia-me sempre. Eu não escolho uma estética mas, simplesmente, quando faço o arranjo de uma canção ele surge num determinado registro e se eu gravasse noutro momento seria outro. As músicas aparecem-me e depois materializo-as. Eu tento sempre representar a obra como se fosse um ser vivo. Por isso, não a condiciono, porque tem a sua vida e por onde ela for eu vou atrás. É muito divertido. Como se de repente tivesse a surfar num golfinho que não é a minha prancha. O golfinho está a ir para um lado e eu estou a curtir, mas aquilo tem uma vida própria. Eu escutei muito durante o último ano e meio o álbum “Bismillah” (2019), dos Peter Cat Recording Co. Agrada-me bastante o disco “Passages” (1990), de Ravi Shankar e Philip Glass, esse trabalho é um clássico de toda a minha vida, sempre o ouvi, e é um álbum que devia ser obrigatório nas escolas primárias, porque é um tratado de harmonia, melodia e ritmo. Mas, da mesma forma, mostra como é bom ter regras e quebrá-las. Também escutei imenso o “Masterpiece” (2016), dos Big Thief e o “Ali and Toumani” (2010), de Ali Farka Touré & Toumani Diabaté. A Unknown Mortal Orchestra é uma banda que ando a seguir ultimamente e o disco “II” (2013) é um dos trabalhos deles, entre outros, que estou igualmente a ouvir.

O single “Miúda” tem uma toada arrastada e evoca uma aparente incerteza existencial e amorosa. Em que se inspirou para compor a música?
Todo este disco é sobre o mesmo conceito: uma aproximação muito forte, mas tão difícil quanto inevitável entre duas pessoas. É também uma coisa perfeita e um romantismo quase pós-renascentista, do tipo Romeu e Julieta, em que ninguém morre, até agora, e há tanto a atrair como a afastar esses dois seres. Não é a atração da paixão, mas sim algo mesmo profundo. Trata-se de uma viagem com imensas aproximações e afastamentos e “Miúda” é um momento desses, uma fase de incerteza em que eu estou quase em discurso direto e digo: “Ainda bem que fui embora mas se calhar devia ficar e vou”. Isto é o que eu estava a pensar e a canção sai literalmente a partir do que me está a passar pela cabeça, sem ornamentos, com a minha poesia e a minha forma de escrever. Mas é exatamente isso, um momento em que a força que faz aquele amor ser tão forte e ao mesmo tempo traz tantas dificuldades, está em conflito aberto nesses dois lados.

Você faz parte de uma geração de músicos que emergiu na década de 2000 e marcou a música alternativa portuguesa como são os casos de Samuel Úria, B Fachada, Tiago Guillul, Jorge Cruz ou Manuel Fúria. Como vê a evolução dos seus pares e a contribuição que eles deram à nova música portuguesa?
É algo sobre o qual posso falar com toda a honestidade. Pode parecer um pouco enviesado, porque são pessoas queridas, próximas e meus amigos. Eu lembro-me perfeitamente que antes de começarmos a fazer música toda a música pop e rock em Portugal era cantada em inglês. Só metade do hip-hop é que era cantado em português, mas trata-se de um estilo de música muito específica e uma tribo única. Se houve uma mudança clara nos últimos 15 anos foi na quantidade de músicos que apareceram a cantar em português. Deu-se uma inversão, porque se antes cantar em português era estranho, hoje em dia é um bocado diferente na cena portuguesa cantar em inglês, mas existem pessoas que o fazem e têm excelentes canções. Isso é pacífico. No entanto, atualmente, é um anti-padrão. Essa foi a grande mudança. Se há algum legado que este movimento deixou foi isso. Os artistas de que me falou são pessoas com quem tenho uma ligação próxima. Recordo também o Luís Severo. Ele é um músico que eu adoro e dei-lhe a mão para que entrasse no meio. Todos estes artistas começaram na mesma altura e mantêm-se como é o caso da Filipe Sambado, que já estava a fazer canções, ou do Benjamim que cantava em inglês ainda. De certa forma, estávamos sempre juntos, vivíamos em festa e tocávamos nos concertos uns dos outros. Eu gosto da obra de todos eles e isso faz parte do meu universo musical. Claro que há uns que escuto mais do que outros, mas eles integram o meu cancioneiro e além de serem meus amigos respeito-os bastante como artistas.

Qual é a mensagem que gostaria de deixar aos leitores brasileiros do Scream & Yell que nunca escutaram a sua música?
A canção brasileira é algo que eu sempre ouvi. Eu nasci e cresci em garoto com os meus pais nos domingos em casa e nas viagens de carro a ouvir muita música. Lembro-me que escutei Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Maria Bethânea, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e Djavan. Por isso, cresci a ouvir toda essa música mais Vinicius De Moraes e Cartola, bem como o cancioneiro mais tradicional da origem do samba e da bossa nova até à tropicália. Isso acompanhou-me a vida toda. Relativamente à cena nova do Brasil também há coisas que adoro. Este ano escutei bastante os Bala Desejo e delirei no show deles. Também gosto imenso do Tim Bernardes e d´O Terno e conheço bem a pandilha do Moreno Veloso e do Alexandre Kassin. Há muita música brasileira a tocar no meu carro e na minha casa. É pena não haver mais intercâmbio entre Portugal e Brasil. Nós consumimos imensa música brasileira e os brasileiros não escutam tanta música portuguesa. Temos bastante em comum, tal como a nossa língua, e uma herança histórica. Tenho imensa pena de que a troca seja só de lá para cá e não seja nas duas direções. O que eu diria era que ouvissem, para além da minha música, tudo o que tem acontecido na música portuguesa e que é tão bom. Escutem o Luís Severo, Capitão Fausto, B Fachada e muitas outras coisas que ocorrem entre nós. Os músicos brasileiros que conheço ficam maravilhados e estupefactos por não terem descoberto a música portuguesa antes. Muitos deles ficam fãs de vários nomes de que lhe falei. Eu tive colaborações com artistas brasileiros e fiz duas canções com o Albert Nane, uma delas era a música “Joana” (um lado B do álbum “Muda Que Muda”) e um amigo meu, Guarany, fez uma letra de outra canção minha. Sinto que a questão do encontro entre a música portuguesa e brasileira tem a ver com uma dinâmica que não se estabeleceu. A música brasileira foi consumida em Portugal desde muito cedo e continuou. É mais fácil um mercado maior entrar num segmento mais pequeno do que o contrário. Acho que é só isso, mas também é verdade que os portugueses entendem melhor o português do Brasil do que os brasileiros compreendem o português de Portugal. Nós fechamos as vogais e os brasileiros abrem as vogais. Há também um mito urbano de que não é fácil aos músicos portugueses entrarem no mercado brasileiro. Embora não queira politizar minimamente a conversa, recordo que existem vários apoios e movimentos governamentais e estaduais de intercâmbio cultural que por mais que sejam estabelecidos revelam uma falta de punho do lado português. As parcerias estabelecem-se, mas continuam a ser só num sentido, ou seja, do Brasil para Portugal.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui



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