Três filmes do 26º Festival do Rio: “Carta a un Viejo Master”, “Greve!”, “Loucos por Cinema! / Spectateurs!”

textos de Leandro Luz

“Carta a un Viejo Master”, de Paz Encina (2024)
A cineasta paraguaia Paz Encina dedica pouco mais de uma hora a Eduardo Coutinho e sua obra-prima, “Edifício Master” (2002). A narração em voz over diante de planos fixos e estáticos anuncia as inseguranças da artista, que compartilha as suas angústias de maneira surpreendente. Apesar de ter Jordana Berg ao seu lado na montagem (colaboradora de longa data de Coutinho), Encina consegue imprimir um olhar próprio, distanciando-se das costumeiras prisões e trejeitos de seu master. Os planos que apontam para o mar na sequência final são de uma beleza estonteante e o duplo-fantasma-Coutinho que ela cria é de arrepiar. “Edifício Master” é um dos grandes filmes de Coutinho, que se passa inteiramente dentro de um prédio residencial de classe média a poucos metros da praia de Copacabana. No documentário, rodado em uma semana, o diretor conversou com 27 moradores sem um grande tema disparador, apenas interessado em suas histórias de vida e no que tinham desejo de compartilhar. Em 2009, a cineasta Beth Formaggini, que acompanhou as filmagens do Master, lançou um documentário em média-metragem intitulado “Apartamento 608”, muito curioso por voltar a câmera para Coutinho e sua equipe durante a feitura do filme. Paz Encina parte de uma ideia semelhante de contracampo, mas utiliza as suas próprias ferramentas para fazer de “Carta a un Viejo Master” um belo documentário que fala por si só, para além do interesse inerente pelo passado. Este foi um projeto gestado durante o Lab Cinema Expandido, um projeto de residência artística realizado no Rio de Janeiro e coordenado por Marina Meliande e Felipe M. Bragança. Fica evidente, assistindo ao filme de Paz Encina, o quanto ele dialoga com o universo do cinema expandido e do cinema experimental, para usar um termo mais genérico, nos planos fixos e estáticos, na escolha por utilizar códigos que remetem a trabalhos voltados para galerias e espaços alternativos de fruição. Seja para quem assistiu à obra no contexto de videoinstalação, seja para quem teve a alegria de testemunhá-la dentro de uma sala escura, o impacto é por demais comovente.


“Greve!”, de João Batista de Andrade (1979)
Felizmente, assisti a “Greve!” bem no dia do primeiro turno das eleições municipais. O média-metragem dirigido por João Batista de Andrade se volta para as greves dos metalúrgicos do ABC de 1979. Dá uma excelente sessão dupla (ou tripla) com “Peões”, dirigido por Eduardo Coutinho em 2004, e “ABC da Greve”, rodado por Leon Hirszman em 1979 e finalizado após a sua morte em 1990, com o acompanhamento do diretor de fotografia do filme, Adrian Cooper. No filme de João Batista de Andrade, mais conhecido pelas obras de ficção que realizou na década de 1980, “O Homem Que Virou Suco” (1980) e “A Próxima Vítima” (1983), acompanhamos a greve no calor do momento, bem próximos dos piquetes e dos protestos dos trabalhadores. Os símbolos da indústria automotiva são suplantados por faixas e placas que anunciam “greve até a vitória”. Lula aparece algumas vezes, mas não ganha protagonismo, diferente do que acontece no filme de Hirszman. Em “Greve!”, a sua presença (e sobretudo a sua voz, jovem e firme) se presta a evidenciar a união dos trabalhadores, e as pessoas que ganham maior destaque no documentário só reforçam essa visão: o depoimento da esposa de um dos grevistas (pungente, de uma eloquência brutal) é memorável, assim como o de um trabalhador anônimo que insiste em falar (e muito bem) para a câmera, que tenta se desvencilhar de sua figura, mas não consegue. Poderia jurar que, pela intensidade dos registros, o filme tinha sido rodado com uma câmera de 16mm, mas na consulta que fiz à base de dados da Cinemateca Brasileira me surpreendi: as filmagens foram em 35mm mesmo. Aliás, o filme foi exibido, na mesma sessão (compreendida na mostra Cinemateca é Brasileira – Resistências Cinematográficas), junto do curta-metragem “Manhã Cinzenta”, uma pérola de 1969 dirigida por Olney São Paulo. Ditadura e ficção científica. Tortura e contracultura. Gosto da liberdade sonora que ele tem, e a fotografia é do José Carlos Avellar (mais lembrado pela sua atuação como crítico), que faz um trabalho inacreditável. Para finalizar, voltando ao “Greve!”, como é bom ver o Lula no meio do povo!


“Loucos por Cinema! / Spectateurs!”, de Arnaud Desplechin (2024)
Arnaud Desplechin faz um filme tão apaixonado quanto antiquado. Parece algo de 30 anos atrás, no mínimo. Tem seus momentos de encenação autobiográfica, com atores muito bem dirigidos e fotografados, mas a moldura documental é frágil e só faz brigar com a ficção. “O que significa ir ao cinema?”, pergunta a sinopse de “Loucos por Cinema!”, como se ignorasse o tanto que o hábito do espectador mudou nas últimas décadas. Não há nada no filme que se relacione com as angústias de um mundo hiper conectado, no qual ninguém parece ter mais paciência para nada, sem sequer conseguir passar 90 minutos sentada em uma sala escura sem que precise checar as notificações no celular. Ao invés de se aproximar do “espectador contemporâneo” (seja lá o que isso signifique), o diretor se volta para uma bolha da velha cinefilia, repetindo imagens lindas (porém ultra gastas). Lembra “Os Fabelmans“, de Spielberg, que fazia um movimento semelhante, porém muito mais interessado na ficção e cuidadoso para não soar tão conservador. No filme de Desplechin, seu protagonista/alter ego se chama Paul Dédalus (uma referência a Stephen Dedalus, alter ego literário de James Joyce em “Retrato do Artista Quando Jovem”?), e somos conduzidos a espiar as suas aventuras cinéfilas e amorosas como se estivéssemos assistindo a um filme fraco do Woody Allen misturado com um documentário protocolar sobre a história do cinema. Talvez se ficasse no âmbito da ficção o filme funcionasse melhor, mas agenciar elementos próprios do documentário sem qualquer pensamento crítico a respeito do estado do cinema é um baita equívoco.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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