Cinema: “Coringa: Delírio a Dois” é controverso e, sim, tão divisivo quanto se pode pensar – e isso é muito bom

texto de Davi Caro

Todd Philips não fez questão de esconder de ninguém sua surpresa quando do lançamento de “Coringa”, em 2019, e não apenas graças às (várias) premiações concedidas ao longa. Mais do que a aclamação (algo que levou o filme a ser considerado um dos mais influentes e culturalmente significativos dos últimos dez anos), o que surpreendeu o diretor foi a controvérsia gerada pela trama do desajustado pária social Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) e seu declínio rumo à insanidade tão característica do personagem, desde suas primeiras aparições nos quadrinhos da DC Comics. Em uma entrevista ao The Denver Post na época, Philips rebateu comentários sobre como a produção retratava o personagem como um “santo patrono dos incels” notando que seu trabalho trazia “reflexões sobre a falta de afeto, traumas de infância e a falta de compaixão no mundo […] Eu acredito que as pessoas são capazes de lidar com essa mensagem”.

“Coringa: Delírio a Dois” (“Joker: Folie à Deux”, 2024) é a maior evidência possível da desilusão pela qual o diretor passou. A sequência, que se distancia de seu predecessor incorporando elementos de cinema musical, foi precedida por um nível de antecipação poucas vezes concedido a uma produção baseada em quadrinhos, mesmo que nos dias atuais. A adoção do protagonista como símbolo de revolta contra uma sociedade injusta, e que marginaliza aqueles que não se conformam com seus padrões, foi um efeito contrário ao esperado pelo cineasta. Assim, fazendo uso da mesma equipe, e com um acréscimo tanto de orçamento quanto de elenco – com a co-protagonista vivida por Lady Gaga – Philips voltou à narrativa iniciada em 2019 com o objetivo de desconstruir seu atormentado personagem principal, e, no processo, desmantelar a ótica deslumbrada construída por boa parte de sua reativa (e reacionária) legião de fãs.

Situada em 1983, dois anos após os violentos eventos que envolveram a morte de cinco pessoas (ou seis, como o próprio protagonista faz questão de salientar) pelas mãos de Fleck, o ex-comediante e palhaço de rua aguarda julgamento na Hospital Prisional Arkham, onde sofre calado com a conduta desrespeitosa e por vezes abusiva dos guardas encarregados, chefiados pelo policial Jackie Sullivan (Brendan Gleeson). Sua realidade cinzenta e desesperançosa é balançada pelo aparecimento de Harleen “Lee” Quinzel (Lady Gaga), que mostra admiração e deslumbre por Arthur e por suas sangrentas ações – assim como muitos outros fãs, aludidos em diferentes pontos do filme. Apesar das palavras de cautela de sua outra aliada, a advogada Maryanne (Catherine Keener), Fleck se entrega à paixão pela moça, que enxerga como uma igual, e começa a vislumbrar uma realidade na qual os dois tem um futuro juntos. Os obstáculos começam a se impor na forma do promotor público Harvey Dent (Harry Lawtey), que pressiona pela condenação à morte frente às câmeras que transmitem o julgamento do comediante, assim como através dos vários segredos que Lee parece guardar. Entre a desilusão e a fantasia, Arthur passa a questionar sua própria identidade, e os motivos que o levaram ao ponto onde se encontra, na busca de um sentido para uma causa abraçada por tantas pessoas que, anteriormente, o teriam ignorado e marginalizado sem pensar duas vezes.

Toda a ambição e esforço demonstrados por Philips no papel de produtor não eximem o longa de ressalvas: as transições entre as sequências musicais, apesar de contarem tanto com a expressividade física de Joaquin Phoenix quanto com um bom trabalho de cenografia, acabam fazendo com que o filme perca um pouco a força de sua mensagem – e tiram o foco do espectador. Em se tratando de foco, aliás, o roteiro parece se perder um pouco a partir da metade do filme, conforme o julgamento se desenrola e testemunhas dos eventos do filme anterior são trazidas de volta, o que pode fazer com que o terço final da trama pareça um pouco abrupto e descompensado. O elenco, apesar de sólido (com destaques para Gleeson, em seus exagerados rompantes de fúria que beiram a dubiedade) não faz real uso das muitas virtudes que Gaga já demonstrou ter como atriz: mesmo nas passagens cantadas – com músicas que, apesar de marcantes, podem surpreender os mais incautos – a artista não demonstra tanta química com a fragilidade exposta por Phoenix, que se mantém tão tangível quanto no primeiro filme. Apesar de alguns bons momentos, é difícil não se contagiar com a sensação de que a cantora poderia ter sido mais bem aproveitada, ao invés de relegada à posição de escada emocional para os dilemas da figura central da produção.

É importante, porém, dar o devido crédito aos (vários) pontos positivos do filme. Para além de sua ótima performance como ator, Joaquin Phoenix causa uma calculada, e coerente, sensação de estranheza em suas performances vocais, sendo capaz de elucidar as várias oscilações emocionais de seu personagem com precisão. Suas interações com o restante do elenco também não desapontam, e seu Coringa ganha novas camadas de drama existencial. O trabalho de fotografia, embora mais confinado do que o visto antes (considerando as largas tomadas dentro do sistema prisional no qual Arthur está encarcerado) cumpre sua função de traduzir a claustrofobia de um ambiente tão perturbador. As referências à trajetória do personagem nos quadrinhos são sutis o suficiente para não se imporem como peças fundamentais da trama, apesar de serem recompensadoras aos fãs de longa data do palhaço do crime (e a outros antagonistas na extensa galeria de vilões do Batman – com atenção especial dedicada também ao já mencionado Harvey “Duas Caras” Dent do estóico Harry Lawtey).

É no enredo, porém, que mora o grande trunfo (ou a grande fraqueza) de “Delírio a Dois”. O distanciamento da narrativa abordada no primeiro filme em favor de novos elementos tidos por muitos como inconsistentes é peça-chave para entender os objetivos de Todd Philips à frente deste novo filme. Longe de querer se mostrar moralista ou demagogo, o cineasta se utiliza da flutuante característica musical de seu filme para retratar justamente as inconsistências emocionais e conceituais de sua figura principal, e, em seus retratos da resposta da população aos feitos de Arthur, entrega sua própria visão da significância que sua concepção do personagem passou a ter junto ao público. Para além de justificar a violência armada perpetrada por Fleck, ou explicar as inúmeras tentativas de imputar transtornos variados ao personagem ao longo da história, Philips criou um filme bastante reativo, e que dificilmente existiria se não fosse pela aclamação de seu antecessor. A identificação de camadas menos tolerantes (ou mais reacionárias) de seu público com os atos do comediante fracassado – que poderiam ser descritos como “justificáveis” ou “lógicos” por muitos – resultou em uma tentativa honesta, e voraz, de ressignificar a identidade conceitual do universo que o diretor criou na tela.

Concordar com tal tentativa, ou mesmo compreendê-la, é inteiramente subjetivo – o que poderia explicar a recepção dura com a qual “Delírio a Dois” foi agraciado (de acordo com o agregador Rotten Tomatoes tanto público quanto mídia especializada não passam de 35% de aprovação), e as críticas que, com seus devidos motivos, ressaltam a inconsistência da trama em sua estrutura “semi-musical”. A julgar pelo dramático, e coerente, desfecho (que tantos apontam como decepcionante), é improvável que o público veja um novo longa dirigido por Philips ambientado neste universo em algum futuro próximo. Muitas vezes, porém, basta olhar para um ângulo levemente diferente para que se consiga ver os muitos méritos de um trabalho dedicado e determinado, embora controverso, como este. “Coringa: Delírio a Dois” vêm desagradando mais do que agradando à grande maioria – o que não impede o longa de, em alguns anos, talvez ser reavaliado sob uma nova perspectiva, e que suas grandes virtudes se sobressaiam mais do que suas (consideráveis) falhas. Seja como for, não há como negar o abandono com o qual Philips, Phoenix, Gaga e todos os envolvidos se dedicaram a, mais uma vez, criar uma narrativa que dominasse o inconsciente popular. Afinal, para citar uma das várias canções interpoladas no longa, isso sim, é entretenimento.

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– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.



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