texto de Davi Caro
Em algum lugar, Ed O’Brien e Phil Selway choram. Colin Greenwood mantém a cabeça erguida, no entanto: afinal, o baixista recentemente veio a frente mencionar que havia voltado a ensaiar com seus antigos companheiros de Radiohead, embora não haja qualquer tipo de plano para a retomada das atividades do quinteto. A incerteza da declaração do músico, por mais positiva que possa ser, apenas adiciona peso à recente atividade de seu irmão, Jonny, ao lado do frontman Thom Yorke e do baterista Tom Skinner, sob a alcunha de The Smile. O trio, que já acumula dois álbuns lançados ao longo dos últimos dois anos (“A Light for Attracting Attention”, de 2022, e “Wall of Eyes”, de 2024), encontra agora uma outra maneira de surpreender sua relutante, embora maravilhada, base de fãs: na esteira de apresentações matadoras que esbanjam técnica musical, o grupo agora traz seu segundo lançamento do ano. Com um repertório registrado nas mesmas sessões de gravação que originaram seu último lançamento, e precedido por dois singles, “Cutouts” é o “Amnesiac” para o “Kid A” que “Wall Of Eyes” pode vir a se tornar – em uma analogia que vai além das circunstâncias que trouxeram o material à luz.
A boa notícia, que pode ser antecipada pelos dois singles já lançados, é que Yorke e Greenwood parecem finalmente ter começado a deixar as influências de seu principal grupo virem à tona pela primeira vez de modo mais confortável aqui. Já a má notícia é que, dada a qualidade das canções trazidas (assim como a abundância de bom material claramente acumulado pelos três) pode fazer com que o retorno do Radiohead se torne uma realidade ainda mais distante do que alguns preferem pensar. Não espanta que a primeira faixa de trabalho, “Don’t Get Me Started”, seja a mais longa do álbum: valorizando a experiência da audição em fones de ouvido, o eco aplicado aos vocais de Yorke ajuda a criar uma atmosfera ao mesmo tempo etérea e intimista, com uma letra que poderia ser lida como uma mensagem para o Thom do passado, ou para sua dedicada legião de fãs: “Não me puxe para trás”. A percussão com ares eletrônicos pode até lembrar, de longe, o tipo de sonoridade explorado pelo vocalista em “The Eraser” (2006); o piano elétrico tocado por Greenwood, porém, é co-protagonista na canção.
Já “Foreign Spies” é singular mesmo dentro de um disco tão variado. O posicionamento da canção como faixa de abertura é de espantar, com uma melodia guiada quase que exclusivamente pelo violão. As texturas adicionadas pelos sintetizadores são um indicativo da ambiência microcósmica explorada no disco, ainda que traga Thom soando mais positivo (“É um mundo lindo”, ele entoa) e menos instigado. Já o “lado B”, “Zero Sum” (colocada como terceira faixa no álbum) é quase um fotonegativo de seu par: a música mais curta do trabalho (a única com menos de três minutos de duração) também é agitada e dançante, com os arpejos guitarrísticos de Jonny tomando os ouvidos de assalto junto com uma elástica e detalhada linha de contrabaixo. As polirritmias que Skinner explorava à exaustão enquanto membro do Sons of Kemet conduzem a melodia nesta que é, a princípio, uma das mais cativantes canções no novo repertório.
A cadenciada “Instant Psalm” se impõe entre as duas faixas no tracklist, e ajuda a criar uma ponte entre o reflexivo e o inquieto. Fazendo uso de orquestrações que remontam à clássica “Pyramid Song” (em mais um paralelo com o disco de 2001), trata-se da canção mais diretamente ambiciosa do disco, com efeitos que simulam flautas e linhas de bateria menos assertivas, que dão lugar a vocais que exploram tons mais graves. A conexão mais explícita, aqui, é com a sétima música do disco, “Tiptoe”: de longe, o êxito mais “cinematográfico” do The Smile, com um início repleto de ruídos ambientes e conversas entre pessoas nunca identificadas causando desorientação, apenas para um belíssimo arranjo de piano e cordas dominar a mixagem sem, no entanto, perder em termos de nuances.
A competência instrumental, fator tão comentado quando da estreia do trio ao vivo, não se perde neste terceiro registro. “Colours Fly” promete ser a nova estrela dos shows do grupo, com destaque para a melodia do baixo tocado por Yorke e funcionando como elemento de maior conexão com “Wall of Eyes”. A riquíssima destreza do baterista cria a pulsação certa para que os ímpetos virtuosísticos de Greenwood sejam o elo que torna esta a mais surpreendente canção no tracklist, apesar de as influências de jazz deixarem a posição coadjuvante para valer na faixa seguinte, “Eyes & Mouth”, a mais mutante das novas composições, seja em suas frases (que trazem linhas como “Sempre mudando de definição” ou “Um outro jeito de ser”), seja nas delirantes harmonias de teclas e no uso mais encorpado dos tons na bateria de Skinner. É aqui que Yorke soa mais revitalizado, e mais confiante em suas próprias capacidades.
Confiança, diga-se de passagem, é esbanjada na trinca final de canções: “The Slip” mescla percussão analógica e digital com tamanha precisão que é difícil discernir uma da outra. O mesmo se pode dizer do baixo sintetizado, por si só um elemento explorado lindamente (assim como as harmonias de Thom, que canta consigo mesmo usando diferentes registros vocais) ao lado de guitarras rítmicas que apontam para o Talking Heads de “Speaking in Tongues” (1983). É uma pena que “No Words”, mais tradicional em sua estrutura rítmica, não seja tão marcante em uma primeira audição. Longe de ser um demérito da faixa (principalmente em meio a um repertório como este), a canção acaba servindo de trampolim para a estupenda “Bodies Laughing”, com linhas melódicas que remetem à genialidade de “Knives Out” – longe de soar como pastiche ou cópia – e o melhor exemplo do excelente trabalho de mixagem conduzido no álbum. Mais do que a melhor música do disco, esta talvez já seja uma das melhores composições a figurarem no songbook de uma banda ainda relativamente nova, mesmo que soe tão familiar quanto se pode ser.
O resultado final não surpreende, no melhor dos sentidos imagináveis: alternando (poucos) momentos menos marcantes com (muitas) passagens que fazem por merecer o status de clássico instantâneo, “Cutouts” mostra, pela primeira vez, o The Smile se sentindo plenamente confortável com sua existência frente ao legado da lendária banda que sucedeu, temporária ou definitivamente. Demonstrando refinamento, o trio Yorke-Greenwood-Skinner deixa a musicalidade fluir sem amarras, demonstrando assim a maturidade que somente aqueles dispostos a aceitar o próprio passado, mesmo que bebendo de outras fontes, são capazes de mostrar. Transitório ou não, os esforços do trio já são mais do que recompensadores. Onde quer que estejam, Ed O’Brien e Phil Selway podem seguir vertendo lágrimas, mas com certeza eles mesmos não estarão imunes a alta dose de orgulho que um disco como “Cutouts” é capaz de aflorar.
Ouça o disco na integra abaixo!
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.
Me senti extremamente ignorante depois de ler esse texto, pois achei chato de doer e ruim de amargar esse disco. fui conferir imediatamente depois da leitura e desisti. se a mais cativante é zero sum, então meu mundo está perdido.
Te entendo! Reconheço que a sonoridade desse pode parecer menos “receptiva” (ou mais “nichada”) do que os outros dois, então não se sinta mal, hahaha! No fim das contas, é algo bem subjetivo mesmo 🙂 Abraço!
O disco só cresce com o tempo. Aos poucos, vamos assimilando a estranheza da sonoridade das canções que passam a se tornar bem mais palatáveis. É um rock jazzy de primeira, um caminho bastante profícuo para um gênio como Thom Yorke.
Exatamente! Thom Yorke nunca cansa de surpreender 🙂 Abraço!