entrevista de João Paulo Barreto
Na edição 2024 da Mostra Cine BH, a cineasta Anna Muylaert é a homenageada, e contará com uma retrospectiva de sua carreira. No rastro das comemorações dos vinte anos do já clássico “Durval Discos” (2002), seu primeiro longa, a diretora conversou com o Scream & Yell sobre a sensação de chegar aos sessenta anos de idade e, com uma filmografia que inclui trabalhos como “É Proibido Fumar” (2009); “Que Horas Ela Volta?” (2015); “Mãe Só Há Uma” (2016); “Alvorada” (2021) e o lançamento “O Clube das Mulheres de Negócios” (2024), receber uma homenagem por sua trajetória.
Tendo iniciado sua carreira tanto na direção de curtas-metragens quanto na escrita de textos críticos de cinema na década de 1980, além de roteirizar programas infantis, Muylaert ajudou a moldar atrações de TV que serviram de porta de entrada para muitas crianças e pré-adolescentes em uma identificação plena com os personagens naquele distante período antes dos smartphones dominar a atenção dos jovens. “O Mundo da Lua” e “Castelo Rá-Tim-Bum”, da TV Cultura, trazem a marca da cineasta e tiveram presença marcante na vida de muito quarentão hoje em dia. Este escriba é um deles, inclusive.
Sua filmografia traz obras que refletem o tempo político que vivemos, como, por exemplo, “Que Horas Elas Volta?”, filme que se debruça sobre as mudanças sociais e educacionais que o país teve durante os governos entre 2003 e 2016. Após este, a diretora codirigiu “Alvorada”, filme que apresenta uma análise dos últimos dias desse mesmo governo.
Em 2024, ela lança “O Clube das Mulheres de Negócios”, e conversou com o Scream & Yell sobre o filme e sobre essa trajetória. Confira!
Imagino que a ideia de receber uma homenagem pela carreira dentro do cinema cause um sentimento de rememorar esforços, uma trajetória. Qual foi o sentimento que chegou a você ao saber que seria homenageada pelo CineBH neste ano?
Para ser sincera, eu fiquei mais introspectiva. Porque você vai fazendo as coisas e dificilmente você olha para o todo. Você simplesmente vai indo. E eu não sei se é porque eu sou mulher, mas você não acha que merece homenagem. Mas então alguém vem e te fala: “Sim, queremos te homenagear.” Você aceita, mas tem uma modéstia, uma falsa modéstia, que você fica levemente assustada.
Ao pensar na retrospectiva de seus filmes que o festival vai trazer, a sensação de um dever cumprido bate, também, claro.
Sim, sem dúvida. Eu fiz 60 anos esse ano. Sessenta anos é um marco parecido com 18. Você muda um pouco de status perante você mesma. E, sem dúvida, eu acho que participei de muitos momentos importantes e positivos ao longo desses quarenta anos de carreira. E, sim, tenho a sensação de dever cumprido.
E você ilustra muito bem em sua filmografia esses momentos. Lembro-me da sensação em 2015 à época do lançamento de “Que Horas Ela Volta?” e toda a reflexão do filme ao registrar aquele período político do Brasil.
Ah, sem dúvida. Inclusive porque foi um momento de alegria. De regozijo. De uma melhora no quesito social, em uma abertura. E o meu filme seguinte é o “Alvorada”, que é um corte. Então, 2015 ainda foi um momento pré-golpe. Ainda havia uma comemoração institucional. E eu acho que o filme teve uma importância muito grande de historiografia daquele momento através daquela geração dos jovens que estavam indo para a universidade pela primeira vez na família. Então, 2015 foi ainda um ano de comemoração. A partir de 2016, forças contrárias entraram em ação e começou um novo período bastante conturbado. E que hoje, esses incêndios, meu Deus. Estou bastante perturbada com isso.
Sim. E “O Clube das Mulheres de Negócios” cria uma análise bem pertinente desse período.
O filme começou a ser pensado em 2015, mas ele tomou a forma que tem a partir da pandemia, durante aquele governo que não era nada sutil. Quando a gente assistia a cenas que me deixavam bem perplexa. Eu acho que esse filme usa a mesma linguagem do tempo deles. Ele é um filme que joga a torta na cara. Só que eu acho que, na realidade, foram esses anos que trouxeram essa reflexão. Existem cenas que, para mim, são muito impressionantes, como a de um presidente subir no palco e cantar uma música na qual ele fala que é imbrochável, referindo-se ao seu órgão sexual. São coisas que são muito chocantes, mas que, talvez, a gente não tenha se apercebido tanto desse desenho todo. Eu acho que o filme fala um pouco dessa loucura que vivemos. Mas que é uma loucura que vem vindo, né? Desde o Machado de Assis que temos esses personagens. O Brasil tem essas forças. Às vezes tem uma na frente, como na época do ‘Que Horas Ela Volta?”, quando havia uma força progressista que estava na frente. Depois, outra veio. A história vai assim. Então, eu acho que “O Clube das Mulheres de Negócios” é muito desse momento alucinado que a gente viveu. Hoje, sim, o Lula voltou a ser o presidente. É um momento menos delirante. Mas as consequências estão aí. A nossa sociedade tem esse tecido louco. Esse fogo todo não influenciou “O Clube das Mulheres de Negócios” porque já foi filmado. Aquela imagem da onça e do sangue. É isso. Eu tenho uma briga aqui. Uma briga contínua há 500 anos. De variados tamanhos, de variadas manifestações, mas o Brasil tem essa guerra, assim, embutida, de um jeito ou de outro.
Falando de “O Clube das Mulheres de Negócios”, ao assistir ao filme fiquei pensando sobre a ideia da inversão das situações de gênero que o filme traz, bem como sobre esse símbolo dos tempos surreais que vivemos em relação ao últimos anos na política brasileira, os aspectos da sociedade capitalista e em como isso reflete no seu longa na presença metafórica e real daquela onça.
Acho que tem duas formas de se abordar. A percepção da inversão, e a ideia é, justamente, muito chocante ver uma mulher nesse lugar. A mulher oprimindo sexualmente e o homem oprimido. Causa mal-estar, causa incômodo. E a ideia é essa mesmo. Porque nós normalizamos muitas coisas que não são normais. Só que na sociedade são tidas como normais os corpos invertidos. Então, acho que se você entende como uma inversão, causa um mal-estar, e, talvez, quiçá, uma reflexão sobre o absurdo da situação. E uma outra forma de interpretar é: “ah, se as mulheres tomassem o poder, elas fariam a mesma coisa que os homens fazem”. Acho que são essas duas vias. Mas, para qualquer uma das vias que eu acho que a pessoa pegue, no fim, quem ganha é a onça. Eu acho que essa é a verdadeira discussão do filme. Será que o filme está tanto com a bola toda assim quanto ele acha? Seja homem, seja mulher, todas as divisões que a gente vive? Um lado ganha agora, depois o outro lado ganha uma hora. Mas tem um terceiro lado. A terceira margem do rio.
E sua opção em escancarar o filme para a comédia em alguns momentos, mas, também, trazer a questão do abuso.
Eu acho que é um filme que se contêm no ali no fio da navalha. Por exemplo, a Grace (Gianoukas), que faz a abusadora, ela não está fazendo comédia. Apesar de que ela é uma comediante. Mas, eu acho que aquela cena em que ela traz o whisky, logo antes de atacar, é uma cena muito densa, por exemplo. A Katiuscia (Canoro) não tem jeito. Ela transborda e é sempre engraçada. Mas, também, a personagem dela é a mais delirante. Mas eu acho que filme está no fio da navalha. Ele pode ir de um lado para o outro. Eu o acho incômodo.
Na homenagem do CineBH, uma retrospectiva de seus trabalhos será feita. Você costuma rever seus filmes?
Em geral, não revejo meus filmes. Porque quando você chega ao final de um filme, você já o assistiu tantas vezes, na montagem, na mixagem, na edição de som, na cor. Quando chega ao fim, você já sabe aquilo tudo de cor e há uma saturação. Aí você ainda vai nas pré-estreias, assiste com o público, claro, algumas vezes, os primeiros festivais. Aí, depois, não. Já fica saturado. Mas, por exemplo, o “Durval Discos” foi exibido na Mostra de SP há dois anos, no aniversário de 20 anos do filme. E eu revi. Isso após vinte anos sem ter assistido. Diria que foi a primeira vez que eu assisti ao filme como público. Eu não lembrava mais de tudo. E fiquei muito encantada. Amei o filme. Lembro que pensei: “Nossa! Que coisa legal!” Cada cena, coisas que eu não lembrava. Eu fiquei apaixonada. Fiquei muito feliz com o relançamento. Mas, por exemplo, “Que Horas Ela Volta?” é um filme que toda hora está na televisão. Muitas vezes você passa e assiste a uma cena. Mas eu não o assisto inteiro. Eu sei de cor. Tem um rolo de 35mm aqui na minha cabeça. Então, não. Eu não revejo meus filmes, não. É aflitivo. Mas depois de vinte anos é legal rever.
Em seu começo de carreira, além da experiência como diretora de curtas metragens, você também atual na análise crítica cinematográfica. Tendo migrado para a direção, qual a sua opinião sobre a função da crítica de cinema?
Olha, eu estudei na ECA. A ECA é um lugar que valoriza muito a crítica. Pelo menos, na minha época. Quando estudei lá, os professores eram, por exemplo, o Jean-Claude Bernadet, o Ismail Xavier. Havia um centro acadêmico nesse sentido de estudar críticos como o Paulo Emílio Salles Gomes. Valorizo muito o pensamento crítico, inclusive para a direção de cinema. Porque você é o seu primeiro crítico. Você tem que ter esse lado da cabeça que bota no papel e o lado da cabeça que avalia. Então, sinto que a minha formação da USP veio muito em direção à crítica de cinema. E eu a acho extremamente importante. Independente do que existe hoje em dia em relação à pulverização da crítica com vídeos no Instagram, com uma frase no Letterboxd, e até os críticos mais tradicionais, mas eu acho que o filme é um objeto que gera luz. E existe a outra parte que ouve e que reflete sobre isso. Eu acho que a crítica faz parte do filme. Porque, muitas vezes, é o crítico que vai apontar o que aquele filme é. Eu, como leitora, por exemplo, gosto de ler algumas pessoas e entender. Porque você acaba meio que sabendo um parâmetro de cada crítico. O que ele gosta, o alcance de pensamento dele. Então, quando você lê algumas pessoas, você mais ou menos entende. Mas, independente de quem escreva, mesmo uma frase do Letterboxd, eu acho que o filme se completa na experiência de quem o classifica. Acho que tem muitos filmes que vão ser melhor absorvidos a partir da crítica. E quando eu digo crítica, não falo de bom ou ruim, mas, sim, na compreensão do que aquele filme é, no diálogo que ele tem com o seu tempo, ou na obra daquela pessoa. Eu acho a crítica, nas mais diversas formas que existem hoje em dia… antigamente, se lançava um filme como o “Durval Discos” e eu tinha a crítica do Estadão, a crítica da Folha, a crítica do Globo, a crítica do Jornal Brasil. Eram poucas críticas. Já no “É Proibido Fumar”, que foi sete anos depois, já tinham umas 35 críticas. Chega no “Que Horas Ela Volta?”, tinham mil críticas. Então, de toda forma, eu tenho interesse, seja cinco, ou seja mil críticas. Elas me ajudam a ver. E muitas vezes falam coisas que são verdadeiras e que o autor, no caso, eu, não viu. Para mim, o filme se completa. Um filme que não fosse visto, não teria crítica. A crítica completa o filme.
Lembro de ler há mais de vinte anos sobre “Durval Discos” e compará-lo com “Alta Fidelidade”, do Stephen Freas, e como seu filme trazia essa identidade brasileira. Foi legal ver esse filme naquele momento de retomada dialogando com um aspecto tão legal da cultura pop.
Acho que o início da retomada foi um período de muita alegria em ver várias identidades aparecendo, de “Madame Satã”, de “Amarelo Manga”, com aquele Recife vivo que o Cláudio (Assis) traz. “Durval Discos”, de certa forma, com uma São Paulo, ali em Pinheiros. Hoje, não sei, pois já faz vinte anos desse momento. E eu lembro desse momento como muito enriquecedor para mim como público, mesmo. E também, claro, como diretora. Eu acho que foi o “Durval” e muitos outros filmes ali trazendo uma nova narrativa para o Brasil. Muito rica. E eu tenho muito orgulho de participar desse momento.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. A foto que abre o texto é de Leo Lara.