Especial: “Axé Café”, por Luiz Gabriel Lopes (aka “LUIZGA”)

texto por Luiz Gabriel Lopes (aka “LUIZGA”)
fotos do show de Heber Barros

Vivi, essa semana, em Londres, a experiência de fazer o show de abertura de Saulo Fernandes, ícone da música baiana, revelado como cantor da Banda Eva logo após a saída da (incontornável e cabulosa) Ivete Sangalo – imagine a responsa. Isso numa casa de shows cabulosona e tradicional de Londres: o lendário “The Jazz Cafe“, onde já tocaram figuras tipo Amy Winehouse e Mulatu Astatke. Enredo fértil.

E quis escrever, com as impressões ainda quentes, uma tentativa de “leitura crítica” (totalmente parcial e emocionada, claro) sobre esse acontecimento, a partir do meu lugar de artista brasileiro independente trabalhando no exterior, e colocando em questão a singularidade da força da música brasileira na gringa – uma parada extremamente singular e única, cuja força, vou percebendo mais e mais com os anos, é bastante diferenciada.

De cara, tive a bonita – e sortuda – constatação de que, sim, a plateia demonstrou comigo um (surpreendente?) acolhimento, sensível, até carinhoso, diria. Simpatizou. Se envolveram pra cantarolar junto comigo alguns refrões das canções que eu ia mostrando, no meu pequeno set de warm up – músicas totalmente desconhecidas, claro, pra grande maioria que estava ali. De fato, essa onda de fazer “show de abertura”, em geral, ou pode ser uma grande roubada, ou acaba sendo uma conquista heróica, às vezes dura: porque a plateia em geral está exclusivamente interessada no artista principal – por razões óbvias.

Também por isso, obviamente optei por não fazer um set totalmente de canções próprias (como de costume), mas contribuir também com algo familiar para aquela celebração – e sim, o público vibrou forte nas poucas covers que xuxei pelo repertório adentro. Uma de Caetano, “Desde que o Samba é Samba”, e a classiquêra golden hits do Olodum (da caneta sagrada de Adailton Poesia e Valter Farias) “Deusa do Amor”. A escolha das duas foi caixa, geral cantou. Então meio que tentei dar o melhor do meu #carisma, estabelecer o titio comunicação com a galera, e acho que fiz um trabalho razoável, digno. Tudo, até aí, portanto e de qualquer jeito, já tinha me deixado muito, muito grato e emocionado com a dimensão do #moments.

Mas minha vontade de escrever esse texto foi mais pra comentar sobre o show de Saulo, e a dimensão de sua força de conexão com o público. Pois o fato é que ele é um representante muito particular da chamada música baiana, extremamente querido por figuras de seu entorno e também por um público amplo e bastante popular. É, também, alguém que emana um sentimento grande de simpatia, de tal maneira amplificado pelo alcance da grande indústria do axé music, que faz dele, ainda hoje, um de seus grandes nomes reconhecíveis.

Fazendo de seu show uma espécie de gira / ritual / festa / talk show , com uma dinâmica incrível e um envolvimento sem igual por parte da platéia – “eles são os artistas, não eu” , me disse ele, nalgum momento, no camarim – Saulo navegou com fluência e naturalidade pelo cancioneiro de dezenas de autores, dando voz a muitos dos “santos” da Bahia – de Dorival Caymmi a Dodô & Osmar, de Caetano e Gil ao Olodum e à Banda Eva, de Carlinhos Brown a Gerônimo – num espetáculo em que o público canta junto praticamente 100% do tempo, e acaba por se tornar, de fato, tão protagonista quanto quem está no palco.

Há uma atmosfera pulsante de alegria, ao celebrar essa raiz comum, que transborda pertencimento & ancestralidade. Canções que falam quase sempre de Salvador, da Bahia, do baiano, do carnaval, da malemolência, da beleza, da negritude, do candomblé, da africanidade, da comida, da paisagem, dos blocos, de todos os “santos” da Bahia. E não deixa de ser, sim, curioso, notar que parece não haver questão com o fato de que ele, um porta-voz concreto e atuante na vocalização dessa identidade, seja um homem branco, de cabelos e olhos claros. Aquela complexidade sociológica da Bahia. Brasilzão estralado na tela. Mistérios do axé. Pra esticar ainda mais a corda, eu chutaria que possivelmente foi uma das noites em que o Jazz Cafe mais teve gente preta e imigrante no público – brasileiros principalmente, claro. Mas isso é apenas uma suposição da minha memória sensorial, sem bases estatísticas.

E fiquei ali, vendo a força de uma literatura que é cantada aos berros por multidões de pessoas. Não é mesmo qualquer coisa: presenciar isso ao vivo, numa das maiores e mais importantes capitais culturais do hemisfério norte, numa casa de jazz das mais importantes de Europa, é algo que talvez nós, brasileiros, a princípio não consigamos dimensionar em sua significação real e profunda, mas que sem dúvida soa encantador (ou mesmo assustador), em sua força de intensidade, para o “europeu médio”. O cara que está ali, de bobeira, que não saca de música brasileira, que foi porque um amigo levou: esse cara possivelmente vai ficar chocado, vai amar ou detestar, pode apostar. Porque é simplesmente “too much“, rasga emoção além dos standarts do hemisfério norte.

Isso porque a força dessa conexão, de sua expressão concreta (musical – social – performática), também nos mostra algumas das sínteses estéticas e políticas que a chamada “brasilidade” criou, em seu singularíssimo trajeto histórico, como uma identidade fundamentalmente híbrida e diversa, somando traços de suas muitas matrizes africanas, indígenas e também européias de maneira muito única, principalmente na música. Isso, também em reflexo e resposta, claro, ao trágico processo da colonização, da escravidão e seus muitos desdobramentos traumáticos na cultura e na linguagem.

Uma vez, ouvi algo curioso de um amigo jornalista, um polonês que mora e trabalha na rádio nacional da Alemanha. Eu tinha, nessa noite, também feito a abertura (alá nois partindo pedra de novo), de um show do Gilsons em Berlim. Foi no momento em que a platéia cantava as melodias da introdução de “Palco” (clássico do Gilberto Gil que estava no bis final do show), ele me olhou e disse “I´ve never seen anything like this in my life”. Talvez, realmente, essa disponibilidade e consciência melódica do público, essa conexão entre palco e platéia, esse groove, essa alegria, coisas comuns que costumam acontecer nos shows de música brasileira, não sejam mesmo algo tão cotidiano de presenciar nestas cidades frias. Esse mesmo amigo, esticando a corda, comentou também que via que muitas questões raciais e culturais talvez encontrassem, nessa cultura da música popular brasileira, uma proposta mais eloquente e eficaz de “harmonização” do que jamais visto em qualquer outro contexto pós-colonial no mundo.

Some-se a isso tudo o fato de que sim, a Bahia , enquanto imagem poética, e ainda mais fora do Brasil, é um estado de espírito. Uma palavra que instaura uma celebração permanente e orgulhosa, sobre essa possibilidade, essa janela pro mundo. E investiga e exercita suas potencialidades, como pulsão de vida. Acessa uma mitologia larga e riquíssima, muito própria e singular em termos musicais. Mesmo sendo o setup de Saulo dos mais simples, a teia dos grooves e melodias e palavras florescia na boca do povo numa facilidade extrema naquela noite. Magia. O poder de um songwriting brabo e amado pelo povo.

Talvez, para alguém mais aborrecido, o trabalho de Saulo poderia ser entendido como um desfile meramente comercial de canções conhecidas e apelativas para um nicho geracional de brasileiros vivendo no exterior com saudade de seu país. Eu, claramente, não consigo não enxergá-lo como uma espécie de alquimia, de feitiçaria sonora: um mergulho profundo num legado, a atualização de um repertório que traduz o sentimento da alma de um povo, sua autoestima e sua memória afetiva, socialmente compartilhada através de melodias e letras de imensa personalidade, que desenham uma mitologia ultra original e profundamente brasileira, no que isso tem de mais rico.

Nalgum momento do show, Saulo disse que, naquela noite, o Jazz Café tinha se transformado no “Axé Café” e sim, devo dizer que bateu. Senti com meu corpo a força dessa onda, desse axé, abençoando o rolê. E reverenciei mais uma vez o grande mistério do Brasil. Que alegria e que privilégio fazer parte disso tudo.

A música popular brasileira tem em seu DNA qualquer coisa mesmo muito única; transborda imensa força espiritual, sendo profundamente festiva e alegre. Isso porque o carnaval é toda uma epistemologia, mas isso é algo que não nos ensinam na escola.

Luiz Gabriel Lopes (instagram.com/luizga.music) é músico e produtor musical e vive em Lisboa.

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