entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Ao longo de três semanas, durante o mês de julho, a cantora e multi-instrumentista portuguesa Rita Braga se apresentou em salas independentes de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, num conjunto de cinco shows integrados na sua Turnê Brasil 2024, da qual me dá conta numa conversa no Jardim da Estrela, em Lisboa. Esta foi a terceira visita de Rita ao Brasil e a digressão marcou o seu regresso ao país ao fim de 11 anos (em 2013 a artista portuguesa passou uma temporada em São Paulo e compôs as cinco faixas que integraram o seu primeiro EP autoral, “Gringo In São Paulo”, que foi gravado e produzido na Casa do Mancha) para apresentar o seu mais recente trabalho, “Illegal Planet” (2023) e revisitar outras músicas do seu repertório.
A turnê foi bem sucedida e possibilitou um encontro renovado com o público brasileiro, permitiu retomar contatos anteriores e estabelecer novas parcerias que poderão revelar-se importantes numa futura deslocação ao país. A atuação na Audio Rebel, no Rio de Janeiro (que foi precedida de um show acústico em Monteiro Lobato, no interior de São Paulo, e seria sucedida por um concerto no Teatro do Quarto Mundo, em São Paulo, um show na Casa Autêntica, em Belo Horizonte e um derradeiro show acústico na Casa Japuanga, em São Paulo) assinalou o reencontro com Marcelo Callado, do qual Rita Braga já tinha feito a abertura do show da banda Do Amor em 2012, no mesmo espaço. Com propriedade, a artista portuguesa recorda o contato com o músico e o gosto pelo seu trabalho: “Eu não tinha com quem dividir o show no Rio de Janeiro e a Bárbara Eugênia e o Juliano Gauche recomendaram-me o Marcelo Callado. Eu fiz o contato e ele foi muito atencioso e aceitou o convite.
Um pouco depois, ao ler a biografia dele no Bandcamp verifiquei, entre muitas outras coisas, que ele era o baterista do grupo Do Amor. Em 2012, quando atuei na Audio Rebel, eu estava com uma banda de São Paulo, o Marcelo Callado tinha acabado de ser pai e não falámos muito. Então, conversando, chegámos à conclusão que tocámos na mesma noite. Desta vez nós fizemos dois shows em formato solo e ele apresentou-se num registo de voz e violão. Gostei imenso das letras e da maneira dele tocar, porque tem um universo próprio. Foi ótimo”.
Sobre a forma como o público brasileiro reagiu às canções da viagem sonora do álbum “Illegal Planet” e aos espetáculos em geral, Rita Braga mostra-se satisfeita com o acolhimento. “O público reagiu bastante bem às minhas músicas. Eu tenho um lado muito performático no palco e além de mostrar o novo trabalho toco igualmente faixas de todos os álbuns. O ‘Illegal Planet’ foi quase todo escrito em inglês e isso está mais relacionado com o contexto europeu, porque é a língua comum para os países onde mais viajo. A assistência não se importou. Mas, senti que vir de Portugal e cantar em inglês era um anacronismo (risos). Por isso, saí um pouco desse registo e cantei algumas canções da Carmen Miranda, como é o caso de ‘Baião Ca-Room Pa Pa’, e toquei algumas canções em português. Estou a pensar que o próximo álbum seja somente cantado em português e sinto que vale a pena levar ao Brasil um disco assim”, conta.
Outro tópico que lhe coloco e se justifica pelo tempo que permaneceu no Brasil e, principalmente, em face do contato com os artistas e o meio cultural brasileiro, refere-se ao espaço que a música portuguesa poderá obter no Brasil e ao interesse dos agentes culturais brasileiros nessa aproximação. Rita Braga reconhece que o Brasil não é um país fácil de entrar “devido aos elevados custos da viagem”, mas lembra que “tem de haver um esforço dos vários agentes” e mantém uma perspectiva otimista relativamente a essa aproximação. “Acho que existe espaço para os artistas portugueses se encaixarem no Brasil, mas há que haver empenho e explorar os contatos. Senti recetividade e penso que com o passar do tempo vão sendo criadas mais pontes. Eu toquei em salas independentes, mas tive o apoio da GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas) e do Shuttle (um programa que tem como principais objetivos promover internacionalmente a cultura da cidade e o trabalho de artistas, autores e agentes culturais sediados no Porto), que foi bastante importante. No futuro pretendo contatar produtores brasileiros que me ajudem a entrar no circuito de festivais. Mas, é algo que vai sendo trilhado. Espero também que haja mais comunicação entre produtores de Portugal e do Brasil para concretizar mais parcerias”, explica.
No momento em que falamos, Rita Braga prepara-se para atuar no Festival Sonoscopia, no Porto, ligado ao pop experimental, seguindo-se uma mini residência perto de Lille (França) no Urban Boat (um lugar itinerante, por se tratar de um barco que viaja entre o norte da França, Holanda e Bélgica) com o duo francês NÛR, objetivando a criação de duas canções em conjunto. A presença de Rita na França faz parte do mesmo projeto da Fundação GDA de divulgação do álbum “Illegal Planet” que fez na turnê brasileira e a artista também me relata que tem a agenda de outubro bastante preenchida com mais shows nacionais e internacionais. Por fim, confessa-me que equaciona brevemente fazer um novo disco. “Estou a pensar no próximo álbum e já estou a realizar pesquisas para saber como será e, provavelmente, gravá-lo-ei em 2025”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Rita Braga conversou com o Scream & Yell. Confira:
Como surgiu a possibilidade de fazer este tour e o que representou para si regressar ao Brasil ao fim de 11 anos e revisitar São Paulo onde gravou o seu primeiro EP autoral, “Gringo in São Paulo” (2013)?
A oportunidade surgiu porque achei que era altura de voltar e já tinha passado bastante tempo. O Brasil também viveu fases péssimas e acho que não devem existir muitos fãs do Bolsonaro no Scream & Yell (risos). A pandemia foi igualmente arrasadora e prejudicou imenso o circuito de música ao vivo. Senti que era o momento certo para retomar os contatos e falei com um amigo do período de 2013, o Paulo Beto. Ele é conhecido na música eletrônica e integra a banda paulista Anvil FX que atuou recentemente no Festival Serralves em Festa (Porto), onde também participei. Eu falei com ele e com outras pessoas que conheci em 2013 para montar essa pequena tour. Foi ótimo regressar. No início estranhei porque viajo muito, mas sempre dentro da Europa, e quando se sai da Europa encontramos uma realidade diferente. A sensação que tive no Brasil (e já tinha acontecido da última vez) é que se trata de um ambiente muito mais pesado do que em Portugal. E as pessoas que vivem lá reconhecem que o panorama piorou e que há mais violência e sente-se alguma tensão nas ruas. Demorou alguns dias a assimilar isso mas, de repente, entrei na frequência e as coisas começaram a fluir melhor. Houve alguns desafios também, porque hoje em dia quem não tem o CPF (número fiscal brasileiro) não consegue comprar passagens de ônibus e não tem chip no celular. A tecnologia complicou relativamente a 2013 quando era mais “old school” e não haviam smartphones (risos). Por isso, nos primeiros dias demorei um pouco até me sentir à vontade. São Paulo estava diferente, mas ainda assim foi uma sensação familiar. Passou tanto tempo desde que eu estive no Brasil pela última vez e o país mudou tanto como eu que foi quase como uma primeira visita (risos). Mas, São Paulo é uma cidade enorme e varia muito consoante o bairro. O centro é bastante agitado, mas há bairros tranquilos com moradias. No fundo, são várias cidades numa só.
Gostaria que me falasse do formato com que se apresentou no Brasil, mas também da importância e do impacto dos shows acústicos que optou por fazer no início e no encerramento do seu tour?
No começo, a minha ideia era divulgar o meu novo disco, “Illegal Planet”, e é óbvio que toco sempre músicas desse álbum mas, consoante o lugar onde atuei, também fiz um repertório diferente. No primeiro e no último show achei que eram bons contextos para tocar no formato ukelele e voz. Foi em Monteiro Lobato, no interior de São Paulo, e na Casa Japuanga (São Paulo), que é um espaço onde vivem pessoas, mas também têm concertos. Fiz um repertório muito ligado a versões em vários idiomas e apresentei as minhas canções, mas achei que resultava melhor tirar a parte eletrônica, porque eram atuações mais intimistas. Eu gosto de fazer os dois formatos. Tanto pode dar para um clube de rock como estar sentada a tocar e a contar histórias entre as canções. Em cada show eu inventava o repertório na hora e, por vezes, puxava mais para a Carmen Miranda e fiz algumas versões dela que já não tocava há muito tempo. Na Casa Japuanga toquei uma música de cada país e na Autêntica (Belo Horizonte) apresentei o novo disco. Por isso, cada noite foi diferente.
Em São Paulo, no show do Teatro do Quarto Mundo, você teve a companhia do Vitor Wutzki e em Belo Horizonte, na Casa Autêntica, você estreou-se dividindo o palco com a mítica banda punk mineira Divergência Socialista e ainda vivenciou o Festival Durante. Como foram essas experiências?
No Teatro do Quarto Mundo, durante o show, eu e o Vitor Wutzki tocámos uma música dele (“Hotel Coração Partido“), em que toda a letra é composta por traduções de títulos de músicas do Elvis Presley. A atuação correu muito bem. Eu fiz um ensaio assim que cheguei a São Paulo e experimentámos várias coisas, mas andei a viajar e só voltei no dia do show, por isso resolvi cantar a letra do Vitor que entretanto já tinha aprendido. Eu gosto imenso do trabalho dele e já o seguia pelo Instagram. Temos uma grande amiga em comum de São Paulo que mora no Porto, a Dibuk (alter-ego de Lea Taragona). Ela tinha uma banda com o Vitor: Bin Beri Ban. É um tipo de canção experimental na qual pegam em poemas e desconstroem. Adorei tocar com o Vitor Wutzki e aprecio bastante o trabalho dele. Houve também uma figurinista em São Paulo, a Apolônia Alexandrina, que tem o brechó Da Da Da Ideias e integra a banda Anvil FX, que me arranjou um fato incrível para o show no Quarto Mundo que usei nos restantes concertos da turnê. Relativamente à minha estreia em Belo Horizonte, tenho que agradecer a você por me ter passado o contato da Autêntica. No início foi desafiante porque marquei o concerto, mas não foi fácil encontrar alguém para dividir a noite. Isso também me obrigou a conhecer a música de Belo Horizonte (risos), falei com várias cantoras e uma delas foi a Sara Não Tem Nome. Eu já seguia o trabalho dela e ela o meu, mas não foi possível que a Sara participasse. Gostei igualmente da Julia Branco, que encontrei lá, e depois falei com o Paulo Beto que tem mais influência punk e é amigo da cantora do Divergência Socialista, a Silma (também conhecida por Bijoux O’Hara). A banda é do início dos anos 1980 e ainda está ativa. O principal compositor é o Marcelo Dolabela que morreu há pouco tempo e eles seguem mudando os integrantes. É um grupo que faz crítica social e a vocalista é figurinista e transforma-se no palco e tiveram um convidado (Alê Fonseca) que tocou theremin pela primeira vez com eles. Para além disso, o Francesco Napoli convidou-me para o programa de rádio Tropofonia e então, de um momento para o outro, fiquei a conhecer imensa gente de Belo Horizonte e podem haver oportunidades de tocar noutros sítios no futuro. O Francesco, que também faz parte do Divergência Socialista, é um elemento muito ativo em BH e foi ele que inventou o Festival Durante. O evento chama-se assim porque está a acontecer em simultâneo com os shows e são atos performáticos em que as pessoas se inscrevem e depois há uma seleção. Por isso, enquanto ocorriam os shows estava uma pessoa no balcão que desenhava e outra no exterior que fazia uma escultura, entre outras atividades. É uma cidade mais pequena, mas tem uma cena artística muito interessante em que se misturam várias coisas. Enquanto São Paulo é enorme e tem diversas turmas que não se conhecem, em Belo Horizonte acaba por confluir tudo e englobam-se várias gerações.
Como foi feita a divulgação da turnê e que outros contatos você teve com a mídia brasileira durante a sua estadia?
A turnê foi divulgada em vários sites (La Cumbuca e Cenário Minas, entre outros), bem como no Eldorado FM (Estadão), em São Paulo, e no jornal O Globo, Rio de Janeiro, apareceu na agenda dos shows da semana. Foi, também, feito um press release com um roteiro dos vários sites que divulgaram o tour e houve os programas de rádio Supertônica do Arrigo Barnabé (na Rádio Cultura FM, de São Paulo) e o Tropofonia (na Rádio UFMG Educativa, de Belo Horizonte). Tive a grande sorte de participar no programa de rádio do Arrigo Barnabé, porque eu adoro o trabalho dele. Eu conhecia o disco “Clara Crocodilo” (1980) que é uma grande referência da música experimental. Há muitos anos que eu ouvia falar do Arrigo e do disco “Clara Crocodilo” e temos um amigo em comum, o Vitor Rua, aqui de Lisboa, e como eu estava em São Paulo o Vitor disse-me para escrever ao Arrigo Barnabé. Eu consegui o contato dele, mandei-lhe um email e fui convidada para o programa Supertônica. Eu escutei mais coisas do trabalho do Arrigo, como é o caso do pop absurdo que ele fazia nos anos 80 e também adorei. O programa de rádio dele é super-engraçado. Na primeira parte foi mais sério, falando do meu trabalho e como eu me situava e depois ele tem o “momento crocodilo” com perguntas absurdas (risos) no qual ele perguntou qual era o meu animal preferido, entre outras coisas. Foi incrível ter a oportunidade de conhecer o Arrigo Barnabé. A participação no Tropofonia também foi divertida. É um programa meio Dadá em que se criam situações imaginárias, meio absurdas. Houve um momento em que fomos para debaixo da mesa e eu estava com o microfone e tinha de tirar uma carta para responder a uma pergunta (risos). Tanto o Supertônica do Arrigo Barnabé quanto o Tropofonia foram programas bastante diferentes (risos). Por isso, a nível de internet e de rádio houve alguma divulgação sobre a minha presença no Brasil.
Durante este tempo em que tomou contato com diversos artistas e com a cena musical brasileira quais foram as referências que mais a impressionaram?
Eu tenho um programa de rádio mensal (Super Braguita FM, na rádio Yé Yé, no Porto) e antes de ir ao Brasil fiz uma edição só com música brasileira atual. É um programa bastante livre porque passo muitas coisas do século passado, mas procurei tocar discos que saíram este ano ou em 2023 e a música mais antiga era da Ava Rocha de 2016. Foi bom redescobrir artistas que eu conheci em São Paulo, quando tinha 28 anos, na última vez que fui lá, e escutar igualmente aquilo que estão a fazer agora e perceber como evoluiu o trabalho deles. É o caso do Gustavo Galo, que é da Trupe Chá de Boldo e lançou agora dois disco solo, do Tatá Aeroplano e da Malu Maria. Relativamente às gerações mais antigas eu adoro o trabalho do Jorge Mautner e o Marcelo Callado estava a preparar um concerto de homenagem a ele ligado ao disco homônimo de 1974, em que o Mautner também participou, mas infelizmente não pude assistir. Em São Paulo existem diversas turmas. O Paulo Beto faz uma coisa mais influenciada pela new wave e o Trupe Chá de Boldo e o Tatá Aeroplano têm as suas próprias propostas. Na Casa Japuanga, o José Vieira e o Pedro Falcão que participaram no meu EP, “Gringo In São Paulo” (2013), tocaram um repertório brasileiro dos anos 30. É bom conviver com essa diversidade, porque eu gosto de interagir com músicos de várias cenas.
Que balanço faz desta turnê brasileira? Ficou com vontade de voltar a atuar no país e de estabelecer novas parcerias?
O balanço foi muito positivo. No início estranhei, mas depois era capaz de ficar no Brasil mais um mês se fosse preciso. Futuramente, irei falar com um produtor de Belo Horizonte que está ligado a alguns festivais e conheci o Márcio Paixão Junior que costumava produzir festivais em Goiás. Ele já não está na produção, mas disse que me ajudava a fazer essas pontes. Nunca fui ao Nordeste nem ao Sul do Brasil e gostaria de lá ir também. Em Belo Horizonte fui a um estúdio incrível, o New Doors Vintage Keys (NDVK). A especialidade desse estúdio são os teclados, mas tem uma sala de sintetizadores e réplicas de instrumentos musicais de várias épocas. Também tinha um piano do tempo do Mozart e reproduções de instrumentos do barroco e do renascimento. O NDVK é o estúdio do Alê Fonseca, que tocou com o Divergência Socialista e fez uma curadoria super-interessante dos instrumentos que possui. Ele disse-me que temos de falar em produzir algo lá, mas são conversas para ter no futuro. O Arrigo Barnabé pôs-me a falar de fado no programa dele. Foi inevitável associar uma cantora portuguesa ao fado assim como é comum associar um músico brasileiro ao samba (risos). Eu contei-lhe a história da lendária fadista Severa da qual não há gravações. Recordo que o Arrigo até ficou a aguardar que eu escrevesse algo em sua homenagem, que seria um fado atonal (risos). O Brasil é um mundo, mas espero voltar e não demorar tanto tempo como desta vez.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.