texto por Diego Queijo
Sábado, 13 de julho de 2024. Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, sofre um atentado em Butler, na Pensilvânia. A notícia corre pelos noticiários. Enquanto isso, os Rolling Stones percorrem as ruas de Los Angeles rumo ao estádio onde irão entreter uma multidão, expostos diante de 60 mil pessoas. Aos 62 anos de carreira, a dupla Jagger/Richards, cujos olhos estiveram presentes de alguma maneira em inúmeros eventos marcantes do século 20, mantém a tradição de estarem em campo diante de circunstâncias que continuam a entrar para os livros de história.
O primeiro de dois shows da turnê do badalado álbum “Hackney Diamonds” (2023) em Los Angeles foi realizado dias antes, na quarta-feira (10), marcando a reta final da turnê de 20 datas que percorreu os Estados Unidos de costa a costa, começando em Houston, dia 28 de abril, e com data de encerramento para 21 de julho em Rigdale, Missouri. O local escolhido para os shows na Califórnia foi o estádio SoFi, localizado no subúrbio, em Inglewood, inaugurado em 2020 e que deve receber jogos da Copa do Mundo de 2026.
A “Hackney Diamonds Tour” durou quatro meses. Os shows, mesmo os que ocorrem em sequência com duas datas na mesma cidade, são espaçados o suficiente para que estes senhores na casa dos 80 anos possam se recuperar após espetáculos com mais de duas horas de duração. Na cartilha, o de sempre: corridas de Mick Jagger pelo palco, solos longos de Ronnie Wood e os riffs matadores de Keith Richards. A diferença é a nova backing vocal, Chanel Haynes, infinitamente superior à Sasha Allen, que os acompanhou na última tour pela América do Sul em 2016, e o baterista que substituiu a lenda Charlie Watts, Steve Jordan, que parece ter dado um novo fôlego geral ao andamento dos shows – ainda mais evidente nas performances de “Paint it Black”.
Se nos relatos da “American Tour 1972”, que divulgava o álbum “Exile On Main Street”, o público tinha nomes como Bob Dylan, Woody Allen, Andy Warhol, Truman Capote e as socialites da época, em 2024 os shows dos Stones ainda cativam boa parte dos famosos de plantão, como Leonardo DiCaprio, Demi Moore, St. Vincent e Beck, vistos no show de sábado (13). Além disso, hoje em dia, Lucas Jagger, nosso Stone brasileiro, registra diversas cenas corriqueiras e cotidianas ao longo da turnê no Instagram.
Porém, os dois shows na capital da costa oeste dos Estados Unidos têm um sabor diferente. Afinal, se a Argentina é a autointitulada “pátria Stone”, Los Angeles é a verdadeira “cidade Stones”, escolhida pelos próprios. A Califórnia é o estado dos EUA em que eles mais tocaram ao longo da carreira. Na quarta-feira (10), inclusive, Jagger mostrou no telão uma foto do primeiro show dos Stones nos EUA. E ele foi realizado no sul da Califórnia, no Swing Auditorium – hoje demolido – em San Bernardino em 1964. Já o último lançamento com Charlie Watts em vida, o single “Living in a Ghost Town” (2020), segundo Jagger foi sobre Los Angeles em lockdown na pandemia.
Mas a banda também usou a cidade para várias gravações. Como o estúdio Elektra, onde foram gravados trechos do álbum “Let it Bleed” (1969), o RCA Studios, de “Aftermath” (1966), o Sunset Sound, com partes de “Beggars Banquet” (1968) e “Let It Bleed”, e os toques finais em “Exile on Main Street” (1972), o Ocean Way para o “Bridges to Babylon” (1997), e o mais recente, “Hackney Diamonds” também gravado em sua maioria na cidade. O primeiro single do último álbum, “Angry”, apresenta a atriz Sydney Sweeney cruzando a Sunset Strip. Área famosa por vários hotéis, incluindo o lendário Hyatt, apelidado de “Riot House” e agora chamado Andaz, onde Richards tornou o quarto 1015 infame por vários atos de devassidão, incluindo jogar uma TV pela janela.
Mas estamos em 2024 e o showbiz na era do cancelamento não permite mais essas extravagâncias inconsequentes. O público também mudou. Se na América do Sul ainda muitos jovens formam o público dos Stones – principalmente na Argentina –, nos EUA são basicamente idosos como eles, mas sem a mesma mobilidade física.
Em cena, a “Hackney Diamonds Tour” começou no dia 10 como todos os outros shows desta turnê, com uma versão violentíssima de “Start Me Up”, ainda que o som precisasse ser regulado ao longo da canção. Na sequência, “You Got Me Rocking” e “It’s Only Rock and Roll”. As guitarras estão altas e afiadas na mixagem com Keith destilando todos seus licks envenenados roubados de Chuck Berry. Keith, aliás, parece mais concentrado nessa turnê do que em todas as outras. Provavelmente, culpa da idade. Sua postura, no entanto, permanece forte.
Chega a vez de “Angry” abrindo habilmente a lista do “Hackney Diamonds” conduzida pela batida firme de Steve Jordan. Todas as pessoas ao redor parecem conhecê-la. E vibram com o telão mostrando cenas do clipe gravado na cidade. “Beast of Burden” aparece de surpresa no set como “a música mais votada pelo público” – ainda que Jagger tenha esquecido de anunciar. A canção trouxe um belo dueto no final entre Mick e o backing-vocal dos Stones há 40 anos, Bernard Fowler, com olhares e esbarrões íntimos.
Não há palavras para “Wild Horses”. É sempre um prazer ouvi-la ao vivo. Em “Mess it Up”, último single do novo álbum, a banda parece entusiasmada ainda que Jagger poupe um pouco a voz. E vamos em seguida para as melhores partes do espetáculo: “Tumbling Dice” e “You Can’t Always Get What You Want” na sequência.
Depois de muitos anos cantando duas músicas nos sets dos Stones, Keith Richards passou a cantar três a partir do meio da turnê de “Hackney Diamonds”. Uma ótima decisão. O set foi poderosíssimo com “Tell Me Straight” (que ganhou a musculatura dos metais deixando-a muito melhor do que na gravação original), “Little T&A” (sumo do rock and roll) e “Before They Make me Run” (pedrada). Sua habilidade na guitarra estava à mostra para todos admirarem, e sua voz estava cristalina. O fascínio do público sobre Keith é total.
A reta final do show dos Stones é monstruosa. Mesmo com muitos tendo assistido aos Stones mais de uma vez, é impossível não perceber os olhos arregalados das pessoas ao redor enquanto hinos da história da música contemporânea são executados de forma devastadora.
Vem “Sympathy For The Devil”. Vem “Honky Tonk Women”. Vem “Midnight Rambler” em versão luxuosa. Jagger não poupou a gaita de boca enquanto Ronnie e Keith faziam a cama com guitarras em diálogos complementares, a ponto de Jagger ficar de joelhos no final. Obviamente, Mick é o ponto focal, mas todos parecem dar o melhor de si à medida que o cronômetro se aproxima da marca de duas horas. Vem a sequência de “Gimme Shelter”, “Paint It Black” e “Jumping Jack Flash”.
Chanel Haynes traz uma amplitude à performance, confirmada em “Gimme Shelter” e “Sweet Sounds of Heaven”, dando um baile inclusive na performance de Lady Gaga no álbum. “Sweet Sounds”, aliás, já parece atemporal ao vivo como uma das grandes canções recentes dos Stones. Por fim, claro, “Satisfaction”. Os destaques de Ronnie foram os solos de “You Can’t Always Get What You Want”, “Beast of Burden” e “Midnight Rambler”.
Ao fim da primeira noite, a saída do estádio é uma maratona com transporte público não funcionando na região (São Paulo?). E para fugir do caro merchandising oficial dos velhinhos gananciosos era possível encontrar boas camisetas vendidas por ambulantes mexicanos por U$10.
Em uma escala infinitamente menor, mas não menos espetacular, os shows em pequenos clubes são uma assinatura dos Stones em Los Angeles – e o mais épico talvez tenha sido o show no Echoplex em 2013, em meio à “50 & Counting tour”. A apresentação (que veio a público apenas por alguma boa alma no YouTube) contou com a execução de “Love in Vain”, de Robert Johnson, rara nos setlists pós-anos 1970 e com a participação “apenas” de Mick Taylor, guitarrista que gravou os álbuns mais clássicos dos Stones, inclusive o ao vivo “Get Yer Ya-Ya’s Out!” (1970), em que o mesmíssimo Taylor quase faz a guitarra falar com o slide em “Love in Vain”.
Dois anos depois, a banda ainda tocaria em público pela primeira e última vez o álbum “Sticky Fingers” na íntegra no Fonda Theatre – espetáculo gravado e disponível em todas as plataformas – com público estelar como Jack Nicholson, Bruce Willis, Alex Turner, Harry Styles e pelo menos um fã brasileiro, o porto-alegrense Cristiano Hadtke.
Corta para 2024. Um dia depois do primeiro show de Los Angeles no dia 10, um pequeno clube de jazz chamado The Write-off Room, próximo à “Ventura Highway” eternizada por Peter Frampton, anunciava um pequeno espetáculo de alguns dos músicos de apoio que acompanham os Stones. O lugar anunciava um show com o backing-vocal Bernard Fowler e o saxofonista Tim Ries acompanhados por músicos locais. O preço considerado módico de U$20 e o direito a dois drinks da casa (horríveis!). Havia cerca de 100 pessoas, entre elas o baixista dos Stones desde a turnê “Voodoo Lounge” (1994), Darryl Jones, que não estava anunciado. Darryl ficou quieto no fundo da casa enquanto o show iniciava.
No documentário “20 Feet to Stardom” (2013), uma questão abordada é a dos músicos que abrem mão de suas carreiras para se tornarem membros acompanhantes de grandes bandas de sucesso. No caso específico do filme, o da ex-backing-vocal dos Stones, Lisa Fischer, é emblemático. E aqui aparece a rara oportunidade de ver Bernard Fowler como todo seu conhecimento de palco e capacidade genuína de intérprete posta à prova. E ele não falha. É um cantor sublime. Eu já havia o visto ao vivo em Buenos Aires em 2013 em um show solo acompanhado por músicos argentinos como Zorrito Von Quintiero e que contou com a participação de Charly Garcia, mas essa é outra história. Porém, 11 anos depois parece ter rendido novas nuances vocais com a idade. Para melhor. Tim Ries, com belos improvisos no saxofone, também demonstrou ser um excelente músico.
O repertório passa por versões jazzy de “Honky Tonk Women”, “Tumbling Dice”, “Miss You”, “Wild Horses”, “A Change Is Gonna Come”, de Sam Cooke, e o clássico bluesy “Little Red Rooster”, de Howlin’ Wolf. Todos parecem se divertir no palco e no público. Na metade do show, entra silenciosamente o atual baterista dos Stones, Steve Jordan. Ele e Darryl Jones sobem ao palco no final para uma versão jazzy e cheia de improvisos de “Satisfaction”. Darryl, aliás, é um desses casos de músicos que trocaram uma carreira solo promissora (ele foi baixista de Miles Davis, apenas) por estar no conforto de acompanhar uma banda das mais bem sucedidas ($$) e longevas do showbiz. Já Steve Jordan, extremamente bem-humorado, demonstrou o porquê de ser um dos caras mais bacanas da área (sendo requisitado por Eric Clapton, John Mayer, Chuck Berry, Cat Stevens, Bob Dylan, Sonny Rollins, B.B. King, Stevie Nicks, Sheryl Crow, Neil Young e uma lista imensa), ao conversar com o público e tirar fotos no final. PS. Nem ele nem Darryl confirmaram virem ao Brasil com a “Hackney Diamonds Tour”.
Seguimos então para o dia 13, segundo show dos Stones reais. No sábado, foram sete músicas diferentes do show anterior. Mas a principal diferença era que havia mais gente no estádio, pelo menos no campo. A primeira mudança é “Get Off Of My Cloud” logo depois de “Start Me Up”. A seguir, “Tumbling Dice” que teve a base gravada na França, mas foi finalizada no Sunset Sound em Los Angeles. Vem “Angry” mais uma vez e logo a primeira grande surpresa da noite: “Heartbreaker”, a “escolha dos fãs”. Um belo solo de Ronnie e Mick gesticulando e direcionando a banda como um maestro para sinalizar as evoluções da música.
Talvez o principal destaque desta noite tenha sido “Fool to Cry”, executada pela primeira vez nesta turnê. Incrível. Jagger parece realmente inspirado, passando muita emoção em cada palavra e mantendo a dicção sublime com o falsete. A combinação de dois teclados (sem Mick tocando), guitarra wah-wah de Ronnie e riffs de Keith funcionou bem. É bastante raro ouvi-la e eles foram impecáveis.
Vem mais uma nova de “Hackney Diamonds”, “Whole Wide World”, com alguns erros na execução o que deixa tudo ainda mais interessante por vê-los trabalhando de verdade, sem auxílios (a não ser um teleprompter). O riff, aliás, é poderosíssimo e poderia estar em qualquer álbum recente de alguma banda voltada ao rock do momento tentando parecer cool. Já “Monkey Man”, canção maravilhosa, foi um mergulho profundo no repertório, entretanto, talvez por falta de ensaio, a combinação delicada de piano e guitarra da introdução se perdeu.
O set de Keith trouxe “You Got The Silver” no lugar de “Tell Me Straight” numa versão que começou confusa, mas é sempre um privilégio ver Ronnie Wood trabalhando com o slide. “Honky Tonk Women” foi ótima em todos os aspectos. Em seguida, “Miss You” com Jagger mencionando “argentinian girls” e o baixo de Darryl preenchendo o estádio com o mais puro funky.
“Gimme Shelter” começa com um holofote sobre Keith sentado em frente à bateria de Steve Jordan. Mick observa a evolução crescente – daquela que muitos consideram como a melhor canção dos Stones – até o estouro do dueto entre Mick e Chanel. O fato de parte da gravação de estúdio da música ter sido feita em uma rua pela qual nós e a banda passamos para chegar a este show acrescenta uma boa dose de drama à história. Chanel não está para brincadeira e talvez suas performances tenham mais a ver com sua interpretação de atriz, afinal, encenou Tina Turner anteriormente em um musical no West End de Londres.
Vem “Jumping Jack Flash”, “Sweet Sounds of Heaven” e “Satisfaction”. Diferentemente do que foi ventilado pela mídia, nenhum convidado estelar apareceu no palco, como Lady Gaga ou Stevie Wonder. Mas tudo bem. Não foi necessário. O último show dos Stones em Los Angeles termina. Estamos no dia 13 de julho, data considerada “Dia Mundial do Rock” (que bobagem) e também dia do atentado contra Donald Trump. Sim, os Stones abordaram o caso no show de forma sutil. Em “Sympathy For The Devil”, Jagger omitiu o trecho de “I shouted out, who killed the Kennedy’s”. Mais uma vez os Stones encerram mais um dia neste planeta caminhando com a história e fazendo a própria história do rock and roll. “It’s just a shot away”.
– Diego Queijo é jornalista! Acompanhe: https://www.instagram.com/diegoqueijo/