Ao vivo: New Model Army promove duas noites antológicas em São Paulo

texto por Leonardo Vinhas
fotos por Fernando Yokota

“Você tem medo do futuro? Bem, isso não me surpreende”, cantava o New Model Army em 1993. A faixa era “Bad Old World”, canção de encerramento do álbum “The Love of Hopeless Causes”. Mais de 30 anos depois, o medo do futuro (e do presente) é ainda mais palpável.. mas essa é apenas uma entre as muitas canções que o New Model Army tem e que soam tão ou mais atuais do que na época em que foram compostas. Algumas delas são alegorias perfeitas para o nosso tempo, outras parecem ter antecipado com precisão as situações que tornaram a vida em sociedade ainda mais inóspita. Premonição? Nada disso: é simplesmente a música folk exercendo seu poder de ler seu tempo e entender os caminhos que serão tomados a partir daí, como costuma ser no caso das melhores formas de arte.

O New Model Army, na verdade, jamais se prestaria a profecias. A profissão de fé de Justin Sullivan e seu bando está muito mais focada na capacidade do homem de governar a si mesmo sem incorrer nas tentações do autoritarismo e da soberba. É um credo que vem sendo professado há 44 anos, em discos e turnês. A última delas, feita a reboque do recém-lançado álbum “Unbroken” (2024), passou pela América Latina em junho desse ano, com quatro datas no Brasil: duas em São Paulo, uma em Curitiba e outra no Rio de Janeiro.

O Scream & Yell esteve em ambas as apresentações paulistanas. A primeira aconteceu em 6 de junho, uma quinta-feira, no Fabrique Club. Foi vendida como um “show acústico”, mas não se tratava exatamente disso. Era, na verdade, uma apresentação com metade da banda: Justin Sullivan na voz e violão e Dean White nos teclados, programações e guitarra – o baixista Ceri Monger e o baterista Michael Dean ficaram tomando cerveja num boteco um pouco mais à frente.. O formato reduzido podia sugerir uma noite mais tranquila em termos de sonoridade, talvez até meio tediosa, mas o resultado final passou bem longe disso..

Aos 68 anos, Sullivan comandou uma apresentação vigorosa, deixando sua voz (intacta e com mais modulações que nos registros de estúdio) e seu violão conduzirem as canções, que ganhavam o reforço das texturas trazidas pelas intervenções de White. Esse formato valorizava as letras e ressaltava os riffs e melodias de maneira que, em muitos casos, deixava claro o quanto o New Model Army é, em essência, uma banda folk – apesar da forte presença de elementos pós-punk nos arranjos..

Nessa pegada de quinta-feira, faixas já bem resolvidas, como “Before I Get Old”, “Notice Me”, “Stranger” e “Autumn”, ganharam releituras frescas e empolgantes, enquanto composições com arranjos mal sucedidos em discos, como “La Push”, “LS43” e “Dawn”, tiveram um brilho inédito.

Poucos cavalos de batalha foram recrutados para o repertório dessa primeira noite. Antes de um deles, “Fate”, Sullivan anunciou: “Temos 250 canções. Vamos tocar mais ou menos umas 20 hoje. No sábado, vamos tocar umas outras 20. Isso quer dizer que tem 210 canções que não vamos tocar”. De fato, fora “Fate”, apenas “Where I Am” e “The Ballad of Bodmin Pill” foram tocadas, com o grosso do setlist privilegiando as canções deste século, e não as do século passado. Como Carlos Remonti, baixista da finada banda La Carne, disse ao Scream & Yell, “eles são um caso raro de bandas que não vivem do passado. Vivem NO presente e DO presente”.

Fato. Ainda assim, é claro que o New Model Army não estaria na estrada há 40 anos se não entendesse que há uma expectativa por certas canções, e o show do dia 8, sábado, no Carioca Club trouxe “51st State”, “Here Comes The War”, “Vagabonds”, “Green and Grey”, “225” e outras, em meio a várias faixas de “Unbroken” e de discos mais recentes.

Tal como no exemplo citado no início desse texto, essas são composições que se mostram ainda mais contundentes no momento presente. “225”, em especial, causa arrepios e um aperto no peito, com sua letra tratando de alienação digital, insegurança laboral, vigilância corporativa, militarismo, degradação ambiental causada por mineradoras e despersonalização motivada por pressões sociais. Que uma canção composta em 1989 (do álbum “Thunder and Consolation”, possivelmente o mais querido pelos fãs de longa data) tenha todos esses temas e traduza com tanta precisão um cenário que se tornou global é impressionante. Que ela seja conduzida como um épico veloz e crescente só reforça sua intensidade lírica. E que a banda tenha conseguido transformá-la, criando uma nova parte A e conferindo frescor a um hit de três décadas… bem, isso só confirma a disposição do grupo de não ser refém do próprio passado.

Mais perto do final do show, Sullivan apresentou “Purity” como “a canção mais verdadeira que já escrevemos”, afirmando que ela é contra “populistas, nacionalistas, líderes religiosos e gente balançando bandeiras”. Minutos antes, havia soado “Here Comes The War”, que desfaz as ilusões de paz e união que vieram após o fim da Guerra Fria, perguntando ao ouvinte se ele achava mesmo que nascemos em tempos de paz, e encerrando com a constatação de que chegara a hora de “apagar as luzes da Era da Razão”.

É um mundo que normaliza a maldade e a ignorância e que não vai sair desse rumo. Antes de “Wonderful Way to Go”, Justin – sempre sorridente e com o tique de falar com o dedo mínimo levantado – disse que a banda não vinha ao Brasil havia seis anos, “e esses foram seis anos muito estranhos e enlouquecidos”. Disse, ainda, que quando a banda retornar novamente, “daqui a quatro ou três anos, as coisas estarão ainda mais difíceis. Então pedimos apenas uma coisa: confiem uns nos outros e façam o que puderem, porque é exatamente isso que os babacas no poder não querem que vocês façam”.

Toda essa conclamação a viver uma vida que não seja só consumismo, ódio e ansiedade veio embalada por um dos shows mais coesos e poderosos que passaram pelo Brasil nesse ano. Trazendo toda sua equipe e aparato de som, o New Model Army assegurou um espetáculo onde todos os instrumentos soavam claros e possantes, numa mixagem perfeita que dispensava volumes estourados ou protagonismo para um instrumento ou outro. Quem já assistiu shows no Carioca Club sabe o quanto é raro encontrar boas condições sonoras por lá. O New Model Army não só mudou esse jogo como entregou uma apresentação irrepreensível, que figura desde já como uma das melhores do ano.

Vale apontar que as quatro primeiras do show de sábado foram tiradas de “Unbroken”, e não surpreende que uma delas, “First Summer After”, tenha sido tão cantada pelo público quanto faixas mais antigas. Em sua maioria, os fãs da banda também não vivem do passado – embora, claro, hits como “Green and Grey”, “Purity” e “51st State” tenham inspirado aquela ridícula corrida de celulares para cima que já se tornou regra em qualquer show.

Uma quinta faixa de “Unbroken” seria executada quando o show se aproximava do fim. A bela “Idumea” veio em uma versão muito superior à do disco, combinando delicadeza melódica e força percussiva. Ela e “Stormclouds” são duas canções executadas no Carioca Club que mostram que folk e pós-punk são sim os dois lados preponderantes do New Model Army, e que eles são uma das pouquíssimas agremiações no rock a conseguir unir as duas estéticas com sucesso.

Sim, sucesso. O New Model Army só teve uma canção no Top 40 da Inglaterra em toda a sua carreira (“Vagabonds”, que abriu o bis com o público cantando em coro as frases de violino da versão de estúdio, e foi seguida por “The Hunt”, já gravada pelo Sepultura em “Chaos A.D.” e de outro dos discos amados pelos fãs, “Ghost of Cain”, que ganhou um Mojo Book assinado por Gastão Moreira), não é citado pela maior parte das “enciclopédias” de rock e folk, e às vezes é até alvo de piadas juvenis por sua aparência “comum” e descuidada. Mas é uma banda que tem 16 álbuns em 44 anos de carreira, sendo que a maior parte desse tempo foi vivido segundo seus próprios termos.

O rock é um gênero musical que vive de vender ilusões, enquanto o folk se baseia em registrar a essência e a resistência de um indivíduo ou de uma coletividade. São duas propostas antagônicas, mas que o New Model Army consegue conciliar, como mostrado nas duas antológicas noites paulistanas. Eles são uma banda que, com o pé no chão, nos lembram que as coisas estão mal e só tendem a piorar, mas que, de forma sincera e contundente, nos inspiram a não ser mais uma gota no mar de dejetos que inunda a sociedade. Que possamos ter isso num século tão desgraçado é algo a ser comemorado, e quem esteve no Fabrique e/ou no Carioca certamente teve muito o que celebrar.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br

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