texto de Davi Caro
Publicado em 1899, o conto “Hearts of Darkness”, escrito pelo britânico Joseph Conrad, narra a história de um marinheiro conforme este navega em direção aos extremos mais inóspitos da África, com o objetivo de encontrar um comerciante de marfim chamado Kurtz, que teria se misturado aos nativos e cortado suas relações com seu país de origem. Em seu contexto original, a história de Conrad serviu, inclusive, como uma crítica ao processo de colonização brutal pelo qual a África passou sob a autoridade da Grã-Bretanha; muitos anos mais tarde – como os iniciados já devem saber – a mesma narrativa serviu como inspiração direta para que Francis Ford Coppola concebesse seu épico “Apocalypse Now”, de 1979, com o Willard de Martin Sheen entrando em uma missão quase suicida em busca de um coronel desertor também chamado Kurtz, vivido por Marlon Brando, nas profundezas do Camboja. Usando a Guerra do Vietnã como pano de fundo, Coppola fez de seu filme uma reflexão cada vez mais pungente sobre a bestialidade do conflito armado e da irracionalidade por trás de batalhas nas quais não há vencedores, e fica cada vez mais difícil diferenciar o certo do errado.
Alex Garland, é importante mencionar, não é Francis Ford Coppola; tampouco é cabível dizer que seu “Guerra Civil” (“Civil War”, 2024) é sequer comparável ao longa de 1979. Mas, mesmo assim, aqueles mais atentos podem perceber o quão próximo, em espírito, a nova produção da A24 (tenta) chega(r). O cenário, para começar, não poderia ser mais diferente: em uma distópica realidade na qual um conflito armado (cujas causas não são esclarecidas, em algo que parece proposital) irrompeu entre um governo autoritário presidido por um representante sem nome e em seu terceiro mandato (Nick Offerman) e diversas facções armadas, uma dupla de jornalistas – o repórter Joel (Wagner Moura) e a fotógrafa de guerra Lee (Kirsten Dunst) – decidem rumar até Washington com o objetivo de entrevistar o presidente que, eles acreditam, tem seus dias contados. Diferentes circunstâncias fazem com que outros dois personagens se unam a eles em sua jornada: o veterano Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a fotógrafa novata Jessie (Cailee Spaeny), que vê na personagem de Dunst uma espécie de heroína. Conforme o quarteto cruza os EUA rumo à capital, acabam sendo testemunhas da espiral descendente na qual o país acabou se transformando, forçados a se deparar com a insanidade da violência de uma guerra que, além de sem explicação, se mostra cada vez mais sem sentido.
Por mais direto que um resumo da narrativa de “Guerra Civil” possa ser, o fato é que pode ser muito difícil traduzir em palavras o quanto o longa de Garland tenta compactar, ainda mais evitando os eventuais spoilers. É, no entanto, importante salientar que, a nível sensorial, é uma experiência desorientadora – ao ponto de assistir à produção no cinema, com um bom sistema de som, ser quase imprescindível para entender seu real impacto: transições entre ensurdecedores barulhos de tiro e inserções musicais ajudam a criar um ambiente mais imersivo, costurando um roteiro que, muitos podem dizer, pode indicar para onde a sociedade ocidental atualmente caminha. O mesmo deve ser dito da incrível cinematografia, à cargo de Rob Hardy, que faz uso de planos abertos para, diversas vezes, contrastar belezas monumentais com batalhas eviscerantes. É quase impossível dissociar alguns dos detalhes da trama de acontecimentos reais e contemporâneos, onde o declínio do império estadunidense se mostra mais e mais próximo do abismo de uma incoerência cada dia mais difícil de ignorar.
Ao mesmo tempo, a visão idealizada da função jornalística ao longo da trama é escancarada e, quiçá de propósito, bastante exagerada; é um aspecto que fica mais claro quando se analisa os personagens de maneira individual. A Lee de Kirsten Dunst é agraciada com um pouco mais de desenvolvimento, e sua relação de mentora para com a aprendiz Jessie é um dos pontos altos do enredo, num processo circular que se fecha de modo mais sutil conforme a história chega perto de seu desfecho. Em comparação, percebe-se uma relação de oposição entre os repórteres interpretados por Moura e McKinley Henderson: enquanto o último, um velho representante do The New York Times, se mostra reticente sobre a longa (e possivelmente infrutífera) jornada na qual seus colegas decidem embarcar, o primeiro, correspondente da agência Reuters, se apresenta como uma espécie de aventureiro, colocando sua busca por adrenalina em primeiro lugar ao ponto de, poucas vezes, ser mostrado cumprindo seu trabalho e, realmente, entrevistar pessoas.
O presidente interpretado por Nick Offerman é quase uma não-presença, sua voz reverberando em estações de rádio, apesar de poucos vislumbres ao longo do filme – quase o completo oposto de Jessie, trazida à vida por Cailee Spaeny: além de instrumental para o desenvolvimento da história, sua interpretação traz a medida certa de ingenuidade e curiosidade, com o deslumbramento em seus olhos dando lugar para o pânico e para a conformidade da experiência que só os horrores da tragédia generalizada podem criar. Também digna de menção é a estupenda, ainda que breve, passagem envolvendo um sanguinário e ultra-xenófobo militante sem nome vivido por Jesse Plemons, responsável por um dos momentos mais tensos e macabros da produção.
Muito do jornalismo idealizado retratado em “Guerra Civil” pode soar vago, e muitas vezes superficial: algo melhor descrito, em uma passagem dramática, por Jessie, que descreve um dos momentos mais tensos de sua vida dizendo, em contraste, nunca ter se sentido tão viva. Essa idealização se mostra mais latente em trechos como o que, mostrando incredulidade, os quatro comunicadores se deparam com pessoas que, voluntariamente, vivem à margem do conflito que ocorre a seu redor, ignorando o que acontece em favor de viver uma realidade idílica. “Nós viajamos no tempo?”, comenta Joel, bestificado com a ignorância na qual determinadas pessoas decidem viver. Seria apenas uma triste coincidência se não fosse tão real – o problema é o roteiro sentir a necessidade de ressaltar o que já ficaria melhor, e ressoaria mais fundo, estando subentendido, em uma das (poucas) falhas do filme. “Subentendido”, aliás, também serve para falar do clímax, que espelha o explosivo início do longa ao mesmo tempo que pode parecer, para muitos, bastante brusco.
Voltando ao paralelo com “Apocalypse Now” e a obra que o inspirou, o impacto sentido por Willard ao se deparar com a insanidade de seu destino final é mais reverberante tanto por causa daquilo que se vê quanto por detalhes que permanecem implícitos; essa junção, equilibrando os dois aspectos, é o que faz de seu desfecho tão poderoso – suas consequências soando ainda mais oníricas em sua surrealidade. O filme de Alex Garland carrega, em seu âmago, um grande paradoxo. Em sua trama, tão atual quanto poderia ser (e fortalecida por um elenco mais do que competente), traz, ao mesmo tempo, sua maior qualidade e seu ponto mais fraco: o de retratar o declínio de uma supremacia, ainda que de forma idealizada, sob a perspectiva daqueles que costumam ser suas primeiras e mais fatais vítimas. No entanto, sua dura visão do fracasso civilizatório de um futuro não muito distante pode soar menos impactante num momento onde a ressurgência de uma extrema direita cada vez mais reacionária e incoerente, bem como a devoção cega ao conservadorismo por parte de milhões, são elementos tangíveis a cada dia. Parafraseando Caetano Veloso, “Guerra Civil” surpreende a todos (ou, pelo menos, alguns), não por ser distópico, mas por tratar como oculto aquilo que é, e deve, por muito tempo, continuar sendo o óbvio.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.