Cinema: Com “O Dublê”, Ryan Gosling comprova mais uma vez sua versatilidade e conforto como ator cômico

texto de João Paulo Barreto

Quando, para seu mais recente longa, “Era uma Vez em Hollywood” (2019), Quentin Tarantino escreveu a cena na qual o dublê Cliff Booth (Brad Pitt) encara uma briga supostamente amistosa com um soberbo Bruce Lee (Mike Moh) ao questionar suas habilidades, o diretor e roteirista inseriu uma fala do astro oriental em dúvida acerca do fato de Cliff ser mesmo um dublê. “Sabe, você é meio bonito para ser um dublê”, afirma Bruce, no set de “Besouro Verde”. “Pois é. Vivem me dizendo isso”, replica Cliff com ironia.

Ao ver o bonitão do Ryan Gosling representando o dublê Colt Seavers no filme homônimo do diretor de “Atômica” (2017), “Deadpool 2” (2018) e “Trem Bala” (2022), David Leitch, a lembrança desse hilário momento tarantiniano é inevitável. Mas não somente por perceber os dois atores privilegiados nos padrões de beleza hollywoodianos atuando como dublês e não como astros naquele ambiente de metalinguagem fílmica, mas por notar as dificuldades para se manter em tal ramo da indústria cinematográfica e que, tanto o diretor de “Pulp Fiction” (1994) quanto Leitch homenageiam de modo louvável em suas respectivas obras.

Baseado na série criada por Glen A. Larson, e que foi ao ar há quarenta anos entre 1981 e 1986, “O Dublê” (“The Fall Guy”, 2024) capta a essência deste universo com graça, mostrando a rotina de tais profissionais em suas atividades mais insanas. São em momentos nos quais a figura de Seavers, apaixonado pela diretora vivida por Emily Blunt e precisando resolver seus problemas afetivos, é forçado por ela a repetir inúmeras vezes a mesma tomada na qual seu corpo é posto em chamas e atirado com violência contra uma parede. E isso tudo representando um absurdo diálogo de reconciliação entre ambos.

Outro momento que se destaca é o criativo plano sequência na abertura do filme, no qual diversos elementos do universo dos dublês são evidenciados para o espectador. Ali, um quase fatal acidente acontece e acaba por deixar Seavers com uma grave lesão na coluna. E nesse enquadramento da ingrata e dolorosa profissão, ainda sobra tempo para o filme trazer a relação do coordenador Dan Tucker (vivido por um hilário Winston Duke) com o amigo Colt e ambos a relembrar em divertidos momentos diálogos de diversos filmes com marcantes trabalhos de dublês.

Dono de um domínio de suas sequências de ação, o diretor (e ex-dublê!) David Leitch, já tendo a experiência prévia da junção entre a comédia escrachada e o ritmo frenético de aventura com o desbocado herói da Marvel, utiliza, aqui, um formato semelhante. Trata-se da construção de piadas e diálogos rápidos que, quando casados às sequências aceleradas, funcionam bem na busca por uma comédia que beira o nonsense dentro daquele universo que o longa aborda. Somando isso às piadas envolvendo toda a dureza do trabalho de dublê, e a fórmula precisa é posta em prática. Em um dos momentos mais criativos e engraçados visualmente, um embate entre dois personagens envolve uma troca de tiros com balas de festim. E a reação/encenação de um deles ao “receber” vários “tiros” no peito descreve naquele universo real precisamente o simulado que o filme pretende apresentar para nós, os verdadeiros espectadores.

Claro que muito desse ritmo é auxiliado pelo fato da montadora Elísabet Ronaldsdóttir, a mesma do trabalho anterior, “Trem Bala”, ter pesado menos a mão nos cortes relâmpagos em sua montagem de vídeo clipe que definiu a comédia de 2022 de modo a prejudicá-la . Aqui, as cenas se fazem mais fluídas em sua ação justamente pela necessidade de trazer ao espectador detalhes sobre a arte da profissão de dublê.

Assim, com um fiapo de história (expressão usada aqui no melhor sentido, frisa-se), na qual a paixão de nosso herói pela diretora de seus trabalhos leva à frente o romance do longa e uma surpresa envolvendo o real astro do filme dentro do filme (vivido por Aaron Taylor-Johnson com a canastrice na medida) se torna o plot twist da saga do pobre coitado e saco de pancadas vivido por Ryan Gosling, “O Dublê” se define (e muito bem, por sinal) como uma genuína homenagem a tais profissionais, bem como à labuta do fazer cinema em seus vários aspectos técnicos.

Nessa percepção do filme, é com regozijo que o público atento percebe o longa brincar com diversos artifícios da direção, como quando, durante uma conversa entre os dois protagonistas, a diretora vivida por Blunt sugere uma split screen (tela dividida) e o efeito surge no próprio filme, ou quando os itens de segurança para manter os dublês à salvo são citados como essenciais e logo em seguida os mesmos surgem resolvendo as situações ditas reais que a trama de “O Dublê” apresenta.

Ok, vamos admitir que não é novidade utilizar esses artifícios metalinguísticos, mas é sempre revigorante ver essas brincadeiras do cinema com o próprio fazer cinematográfico. E se houver o timing cômico exato de Ryan Gosling, cada vez mais à vontade nesse caminho de fazer piada consigo mesmo, melhor.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. 

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