texto de Leandro Luz
“Vejam e ouçam!”, aconselhou Negro Leo durante a apresentação da equipe que antecedeu a estreia mundial de “Aquele Que Viu o Abismo” (2024), um dos seis longas-metragens integrantes da Mostra Olhos Livres em Tiradentes, agraciado pelo Júri Jovem com o Troféu Carlos Reichenbach. Em sua justificativa, o júri, formado por estudantes de diversas cidades do Brasil que passaram pelo acompanhamento dos curadores Juliano Gomes e Francis Vogner dos Reis, salientou a capacidade do filme de perturbar a continuidade dos espaços e tempos lineares e exaltou como ele “propulsiona sons e imagens de um mundo ainda não codificado”.
De fato, as palavras de Negro Leo antes da sessão foram as melhores possíveis para que o público presente pudesse entrar por inteiro em um filme que proporciona tantas viagens (em tantos sentidos). “Aquele Que Viu o Abismo” pode ser encarado como um noir futurista-fatalista, um thriller político com personagens misteriosos e caracterizações marcadas pelo estado de performance constante. O protagonista é interpretado pelo próprio Negro Leo e se chama “X”, que se voluntaria para um recrutamento-experimento da Prolife, espécie de mega empresa que realiza testes neuropsicológicos em seus pacientes. O personagem se perde em um emaranhado de tramas regado à paranóia política e se expressa por meio de um alucinado fluxo de consciência.
Gregorio Gananian e Negro Leo encaram a direção com uma verve não menos alucinada, remetendo aos tempos áureos do cinema de invenção de Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”), Tonacci (“Bang Bang”), Rosemberg Filho (“O Jardim das Espumas”) e Rocha (“A Idade da Terra”). Tiradentes vibrou com o filme (ainda que vibre bem ou mal com qualquer coisa – a considerar alguns aplausos injustificáveis em outras sessões). Apesar das referências cinematográficas serem gritantes, a semelhança com essa vertente do nosso cinema, que teve seu auge entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1980, tem o seu limite, uma vez que Gananian e Leo adotam uma abordagem muito própria, que tem a ver sobretudo com as suas pesquisas sonoras e a vontade de fazer o cinema fluir como música.
Em seu texto de apresentação, os curadores da Mostra falam em “explosão das formas” para se referirem à obra de Gananian e Leo. Esta explosão pode ser observada sob vários pontos de vista. Já na primeira cena, somos logo desafiados pelo protagonista, que enfia um revólver dentro da boca para, logo em seguida, cair em um choro compulsivo. Aqui, somos apresentados a uma das duas locações principais do filme: uma sala futurista de fundo infinito, às vezes tomada pela escuridão absoluta, às vezes pela branquidão, mas na maior parte das vezes habitada por luzes e projeções coloridas que são o palco para as elucubrações paranóicas de X (a animação a laser é assinada pelo artista Dyogo Terra Vargas).
A segunda locação (na verdade, várias locações em uma) que se faz mais presente é a viagem empreendida pelos atores/personagens por diversas cidades da China. Para além de Negro Leo, o elenco é composto por Ava Rocha, Uma, Danielly O.M.M. Kaufmann, Alê Amazônia, Lena Kilina, Sun Yuchen, Sun Mingzhen e Clara Choveaux, esta última em participação vocal especial. Neste contexto, outro tipo de explosão que podemos observar é a peregrinação pelas ruas chinesas, que é capturada pela câmera incessante e indomável de Gananian. Ao contrário do estilo mais comedido e vagaroso que encontramos em seu longa-metragem anterior, “Inaudito” (o qual Gananian já havia recebido o prêmio de melhor filme na Mostra Olhos Livres em 2017), um documentário sobre o processo de composição de Lanny Gordin, um dos maiores guitarristas da história da música brasileira, em “Aquele Que Viu o Abismo” os seus diretores evitam a todo custo o tripé e não mostram ter qualquer apreço pela estabilização das imagens. Desestabilizar é a ordem. Sentimos isso juntamente ao protagonista, que agoniza tocando piano em determinada cena, vocifera profecias quase ininteligíveis em outra. Enquanto isso, o nosso cérebro, acostumado à linearidade e treinado para montar quebra-cabeças, tenta a todo custo organizar as informações que jorram feito cachoeira.
Essa é uma viagem que remonta ao Épico de Gilgamés (antigo poema épico da Mesopotâmia, uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial), a história de Pantagruel (herói do romance de François Rabelais, publicado em 1532), à Fita de Möbius (objeto estudado pelo matemático August Ferdinand Möbius em 1858 que desafia as leis da física – a sua representação mais comum e conhecida é como um símbolo do infinito), entre outras mil referências que apenas deixam mais confusa e densa a trança de “Aquele Que Viu o Abismo”. Para dar alguma forma e garantir a (des)ordem do extenso material bruto que reúne tantas ideias, o cineasta e montador João Dumans (“Arábia”, “As Linhas da Minha Mão”) foi escalado e conseguiu, em certa medida, realizar um trabalho dificílimo. O desafio era dar conta de expressar o caos exigido pela natureza da obra sem deixar de implicar o ritmo que o material necessita para funcionar. A maneira como os sons e as imagens se integram no filme é fundamental e bem-sucedida, com destaque para o momento em que Ava canta uma música de Leo, performando com um colar de pérolas pelas ruas.
Nos créditos finais, as letrinhas miúdas indicam uma dedicatória a Paula Gaitán, José Roberto Aguilar e Sérgio Villafranca, três grandes artistas que, de uma maneira ou de outra, representam o que o próprio texto dos curadores diz a respeito da Mostra Olhos Livres, na qual o filme está inserido: “Quando escolhemos o nome do mítico blog do grande cineasta, crítico e programador Carlos Reichenbach, optamos por uma forma ética mais do que uma linhagem específica do cinema brasileiro? […] A forma, seguindo a linha de Reichenbach, brota da frase de Oswald de Andrade [“Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”]”. Liberdade para olhar, no olhar, ao olhar.
O nome do protagonista segue reverberando… “X”, tal qual o “Mr. X”, codinome assumido por Leos Carax (“Annette”, “Holy Motors”) no instigante documentário de Tessa Louise-Salomé, lançado em 2014. Ou tal qual o “Corredor X” de Speed Racer, o mangá e anime japonês. Jogar com tantas possibilidades, elaborando sobre a subjetividade e manipulando a matéria do tempo é o que garante frescor a “Aquele Que Viu o Abismo”. Importante chamar atenção para o nome do personagem porque boa parte da discussão gira em torno das noções de subjetividade e de alteridade. Reflete-se a respeito de uma fluidez e de uma liquidez que assola o mundo. Cabe ao filme, então, refletir sobre a necessidade de restituição de alguma materialidade ou continuidade, e os meios são os seus mistérios que, como jamais são desvendados por completo, garantem a preservação de um estado de criação abertamente filosófico e político para com as suas imagens e os seus sons.
Sound and vision!
Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
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