entrevista de Bruno de Sousa Moraes
“Frequentemente nestes dias não consigo dormir, pois pesadelos provocam minha mente”. Com estas palavras carregadas — traduzidas livremente do original no inglês — a banda mineira Tuatha de Danann, conhecida como pioneira do folk metal no Brasil, abre “The Nameless Cry” (2023). Os versos pesados podem ser uma surpresa para quem tem familiaridade com a obra do Tuatha, povoada por histórias míticas sobre os chamados “povos feéricos” e, no geral, por letras mais otimistas sobre adentrar a floresta e se deixar mudar pelo contato com a mágica. Em contraste a estes versos, podemos resgatar a atmosfera mais usual da banda: “vamos beber o veneno mágico, nosso tesouro / sua mente se abrirá, e você nunca mais será a mesma pessoa”, eles cantam em “Tan Pinga Ra Tan”, balada que figura entre os clássicos do grupo.
Esta não é a única surpresa que aguarda fãs de longa data da trupe encabeçada por Bruno Maia (vocais, flauta, tin whistle, guitarra e bandolim), Edgard Brito (teclados) e Giovani Gomes (baixo e vocais): frente às questões de um Brasil mais polarizado e mostrando as facetas mais assustadoras de sua cultura conservadora, o Tuatha de 2023 constrói uma obra voltada a tratar dessas dificuldades e contradições, e a resgatar outro passado. “The Nameless Cry” (“O Lamento dos Sem-Nome”) tem pouco espaço para o tal povo feérico composto pelas mais diversas fadas, elfos, duendes, gnomos, gigantes e o povo da floresta de histórias da Europa pré-Cristã, focando-se no resgate da memória da maior e mais excluída parcela da população na realidade brasileira. Entre canções sobre a importância de valorizar o passado de luta de trabalhadores não só pela vida diária, mas por uma possibilidade de futuro, o Tuatha tenta também homenagear a memória de pessoas perseguidas e torturadas pelo Regime Militar Brasileiro do Século XX, além de meditar doloridamente sobre a desunião trazida por ideias cada vez mais polarizadas.
As mudanças de temática, já prenunciadas em seu último LP de inéditas, “The Tribes of Witching Souls” (2019), aqui vêm acompanhadas também por uma mudança estética quase tão radical quanto as ideias centrais do “The Nameless Cry”: embora a toada de música celta ainda esteja bastante presente, ela aparece em meio a arranjos e escolhas de composição muito mais contemporâneas, junto à abordagem de rock e metal progressivos que também compõem a reação química dos discos do Tuatha desde os anos 2000 – assim como uma diversidade de vocais, incluindo o uso pontual de vocais guturais com técnica de death metal.
Neste lançamento novo amadurecem e ganham mais destaque ideias que começam a aparecer em discos mais recentes, como o já mencionado “Tribes of the Witching Souls” e “Dawn of A New Sun” (“Alvorada de um Novo Sol”): uma sonoridade eletrônica aqui e ali, uma presença mais forte de distorções e melodias sombrias, além de um timbre de theremin que costura diversos momentos do disco, simbolizando “o choro da população excluída”. Nesse balanço entre as marcas inconfundíveis do Tuatha e a abertura para ideias que a banda ainda não havia explorado tão a fundo, outros elementos clássicos, como os caóticos vocais de goblin de Giovani, podem fazer um pouco de falta a alguns fãs de seu uso em clássicos como “Brazuzan” e “Believe, it’s True”. Mas a menor presença destes personagens feéricos faz sentido no contexto temático do álbum.
Lançado pela gravadora Heavy Metal Rock, “The Nameless Cry” tem um total de 41 minutos de música, a maior parte gravada nos estúdios Braia. Além de Bruno Maia, Edgard Brito e Giovani Gomes, a formação atual do Tuatha de Danann conta com as guitarras de Raphael Wagner e a bateria e os vocais de Rafael Delfino. O álbum conta ainda com a participação notável de artistas como Daísa Munhoz, Hugo Mariutti, Julie Gonçalves e Edson Guerra, entre outros nomes, que contribuem em muito para a construção da atmosfera variada, por vezes sombria, por outras melancólica, e sempre um “grito” inspirador que vem de uma necessidade de mudança social. O disco foi produzido por Bruno Maia com mixagem e masterização de Thiago Okamura e uma belíssima arte de capa assinada por Paulo Coruja.
Bruno Maia, fundador e autor da maior parte das letras do Tuatha de Danann, conversou com o Scream & Yell no final de Novembro, antes do show que os levou de volta à “casa” de seu primeiro disco, o Festival Estudantil da Canção na cidade de Americana (SP). O retorno ao festival que, em 1999, deu ao Tuatha a possibilidade de lançar seu primeiro disco, foi uma excelente oportunidade para tratar sobre o percurso que a banda trilhou das origens em Varginha (MG) até o apoteótico “The Nameless Cry”. Foi também uma chance de conversar sobre a importância e a dificuldade de encontrar união em meio ao caos, desinformação e degradação de direitos. Por mais política e revolucionária que seja a mensagem do Tuatha em 2023, ela é sóbria o bastante para não pontificar ou se colocar num pedestal moral. Há menos julgamento nas ideias que inspiraram o disco do que um convite sincero a refletir e lutar por um mundo melhor. E com uma trilha sonora de bastante peso.
O Tuatha de Danann é uma banda que acompanha muita gente desde a juventude, e acho que conversa com um nicho de pessoas que se interessam tanto por heavy metal e música tradicional irlandesa quanto por histórias de fantasia. Eu lembro bem de, com quinze anos, ter descoberto o som de vocês a partir de um livro de RPG: eu já tinha ouvido falar do Tuatha, mas eu peguei mesmo pra escutar o som de vocês depois de ler um trecho do livro básico de Castelo Falkenstein que também falava dos Tuatha Dé Danann (nota: um grupo de personagens na mitologia irlandesa e escocesa) e lembrar que tinham me recomendado a banda. É legal ver como os interesses da nossa juventude levam nossa vida a trilhar certos caminhos, e eu gostaria de saber se esse tipo de trajetória também se deu para vocês?
Interesses da juventude? Cara, na verdade eu comecei a tocar muito cedo… com sete ou oito anos mais ou menos… Meu pai tem uma família que tem uma tradição musical. Muita gente toca e é interessada por música de muito tempo atrás. Eu era um beatlemaníaco mirim, louco com Beatles, apaixonado… Mas, concomitantemente a essa paixão pelos Beatles, eu fiquei doido num desenho do Rei Arthur que tinha no SBT, (canal de TV) do Silvio Santos. Era um mangá [anime]. Depois a gente foi saber o que era mangá, mas na época não sabia. Isso era em 1980 e tantos, eu era pequeno. E fiquei doido com aquilo também. Nisso, a música já tinha virado a minha vida. Comecei a tocar e a compor muito novo também. E essa outra paixão eu fui desenvolvendo, que era essa coisa: através do Rei Arthur eu cheguei no povo celta. Ganhei um livro da minha mãe e no prefácio vinha falando que a lenda do Rei Arthur vinha da mitologia celta. E a palavra “celta” meio que me laçou. Comecei a pesquisar. Naquela época não tinha internet, então eu tinha que ir em biblioteca, ficar procurando verbete em enciclopédia, procurar tudo que tinha. Eu fazia aquelas pastas de papel de carta cheias de coisas sobre celtas, druidas… E foi indo. E aí também foi quando entrou o metal. Como eu já compunha, eu também comecei a compor músicas de metal. Mudei pra Varginha (MG) e lá eu montei uma banda. Mas de qualquer forma eu já ia montar uma banda. Minha vida ia ser de músico mesmo.
Ah, você não é de Varginha então?
Nasci em Belo Horizonte. Só que a minha família mesmo é de outra região de Minas, que se chama Campo dos Vertentes, região de Lavras, São João del Rei, Tiradentes. Minha família é tudo de lá. Mas voltando à história, em Varginha eu montei minha primeira banda e começamos a tocar death metal, falando desses “trem” de death metal mesmo. Muito novo, eu tinha treze anos. Aí, já com quatorze, a gente mudou de nome da banda, foi mudando a proposta, e aí eu alinhei essas duas frentes: a música, que era a minha vida, e a minha paixão, que era o trem celta. E aí foi!
Assisti recentemente o mini-documentário sobre os vinte anos do “Tingaralatingadun” (2001), que foi o segundo álbum de vocês. E foi nesse álbum que vocês ganharam projeção, porque o primeiro disco, “Tuatha de Danann” foi feito mais independente mesmo, não é?
Isso! Foi feito aqui (em Americana)! A gente ganhou um trem aqui nesse Festival Estudantil da Canção, e o prêmio era gravar… Não lembro se eram quatro músicas, ou se era um fim de semana no estúdio. Então a gente juntou uma demo que já tinha gravada com essas quatro novas e lançamos o primeiro disco.
Esse mesmo Festival que está acontecendo hoje!? Isso é impressionante! Mas vamos trazer um pouco mais para o presente, para o lançamento do “The Nameless Cry”. Desde o “The Tribes of the Witching Souls” (“As Tribos das Almas Feiticeiras”) vocês estão falando de temas contemporâneos. Isso aparece na faixa-título, que comenta o fato de que algumas pessoas cobravam vocês de cantar sobre os problemas do mundo real ao invés de falar de magia. E também em outras faixas: “Your Wall Shall Fall” (“Sua Muralha vai Cair”) e “The Outcry” (“O Clamor” ou “O Protesto”) têm já uma pegada mais de falar de colonialismo, neoliberalismo e a necessidade de um despertar popular para o quanto temos perdido direitos e destruído a natureza. Mas o “The Nameless Cry” é porrada do início ao fim! Você consideraria um álbum conceitual em torno das questões de política atuais?
Não sei, talvez. Não sei se exatamente conceitual, porque quando penso “conceitual”, eu penso que às vezes tinha que ter uma história desencadeando ali. Mas ele tem esse eixo temático que é, com certeza, político, social, crítico.
Sim, de fato não tem uma narrativa central, mas conceitual no sentido em que “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, é conceitual. Ele trata de conceitos sem ser necessariamente uma ópera-rock. Mas o “The Nameless Cry” parece vir de uma insatisfação ainda maior, e acho que tenho uma teoria do porquê (risos): por tudo o que passamos recentemente no Brasil. Você pode comentar um pouco esse processo?
O processo de virar revolucionário e ir comprar mortadela na esquina? (risos). Na verdade, assim… Você está certo sobre o contexto atual. Mas no “Trova de Danu” [de 2004] a gente já falava, já tinha música ecológica. Acho que falar de ecologia é político, é fazer política. Querendo ou não, você está criticando, está abordando a questão do capitalismo. A galera chama de “capitalismo selvagem”, mas o capitalismo é uma bosta de qualquer forma. Eu vi uma entrevista ontem em que falaram assim: “O pior capitalismo que tem é aquele que está acontecendo agora” (risos). Mas na verdade, a gente já tinha umas músicas que tinham essa abordagem mais ecológica, que já era uma pontinha. Mas [o disco novo] tem a ver, porque a gente foi vendo o que foi acontecendo no país. Fora que a gente vai crescendo como sujeito, vai evoluindo. As condições materiais e sociais foram mudando no país e tudo foi acontecendo, e a gente achou necessário falar de outra coisa. Não dava pra ficar falando só de fada, sendo que tinha um cara que inspirava milhões de pessoas, que ia enaltecer torturador. Que falava que oponente político tem que ser metralhado. Não tinha como ficar falando da magia sendo que o discurso que você lê no jornal é esse né? É o que estava vigente! Então foi uma forma de comentar, de digressar sobre essas coisas que estavam acontecendo.
Ao mesmo tempo, já na música “Tribes of the Witching Souls” vocês falam justamente como, talvez, em tempos desesperados a gente precise lembrar dessa mágica, né?
O que me lembra de uma vez que foi legal. Tem um cara que gosta da banda também que é filósofo. Ele mora no Canadá, esqueci seu nome, mas é um cara muito inteligente, muito articulado. Ele falou: “Cara, sempre achei que o ‘Tingaralatingadun’ e o ‘The Delirium Has Just Begun’ eram uma forma de propor um mundo melhor nessa merda que é o que a gente vive. Não era tão alienante não!”. Talvez seja uma forma de ver desse jeito que você falou também. Se bem que na “Tribes” tem uma parte que fala assim: “Desliga o telefone!”. Por conta das fakes no WhatsApp, coisas assim.
É, já estava embrionando essa coisa que vem à tona com força no “The Nameless Cry”. Outra coisa que me chamou atenção nesse álbum é que ele não tem uma faixa-título. Ele tem duas faixas que têm metade do título cada uma: “The Nameless” (“Os Sem Nome”) e “The Rabble’s Cry” (“O Grito das Massas” ou “O Grito da Ralé”). E é legal que nessas duas faixas vocês falam bastante da alienação nossa em relação aos sistemas nos quais se encaixam o nosso trabalho, com frases como “Nós sabemos apertar o botão / Mas não sabemos porquê apertamos”, e fala também que uma justiça real só pode vir “quando aqueles que caíram e foram privados tiverem suas memórias e histórias restauradas e sua chance de crescer”. Você poderia comentar essa mensagem?
Caralho, isso aí eu não estava preparado não (risos). (Mas) Isso aí, na verdade, é inspirado em Walter Benjamin, um filósofo e sociólogo da famigerada, pela direita brasileira, Escola de Frankfurt. Da teoria crítica e tal. O Benjamin é um cara que funciona em muitos campos do saber. Ele tem textos seminais de literatura, história, comunicação… Esse de onde a gente se inspirou para a música “The Nameless”, essa parte mesmo dos botões, essa música inteira é benjaminiana, e essa frase do final é essa coisa da luta memorial. Eu não sei se você conhece, mas tem um texto do Benjamin chamado “Teses sobre o Conceito da História” – que são várias teses. E na música a gente pincela coisa de três ou quatro. Tem citações literais ali. No refrão, quando fala que “nem os nossos mortos estarão a salvo se eles continuarem vencendo”, é justamente isso: é lutar pelas memórias das pessoas. Porque nem quem já se foi está a salvo. Porque vão inventar histórias, fazer fake news, revisionar. A gente fala em uma “História contaminada”. Então, além de ter essa crítica a essa coisa tecnicista clara da alienação, tem essa parte dessa luta memorial também. Tem uma abordagem marxista que é material, mas a gente também tem de travar essas batalhas pelos bens espirituais. Que vêm a ser, no caso: a história, a memória, a cultura.
É não lutar só por um presente e por uma possibilidade de futuro, mas também por um passado sendo preservado, né?
Sim, é! E trazer à tona essas histórias desses que pereceram, que lutaram. Que são sem nome, que a gente não sabe. E é daí que vem o “The Nameless”. Essas pessoas, esses homens e mulheres que tanto fizeram, que pereceram. Só que esse título foi o seguinte: a gente estava sem título pro disco. Aí veio a ideia de “The Rabble’s Cry”, mas esse termo “rabble” pode soar muito pejorativo. Ele pode ser traduzido literalmente como “ralé”. E esse “ralé”, tanto em inglês quanto em português, pode apontar para uma coisa que a gente não queria: aquela ideia de uma coisa baixa, vil. Mas o sentido que a gente quer dar é falar de pessoas despossuídas. Porém, num cenário tão polarizado, seria dar pano para a manga pra alguém falar bosta, né? Então a gente juntou: “The Nameless Cry”. E na “The Nameless” o refrão também fala “the nameless slaves, they cry” (“escravizados sem nome, eles gritam”), então combinou.
E na “The Rabble’s Cry” vocês voltam a falar, inclusive depois de duas músicas que têm uma mensagem muito legal, pois uma fala sobre união (“United”; “Unidos”) e outra que fala sobre desunião (“A Fragile Whisper to a Raging Roar”; “Um Frágil Suspiro frente a um Rugido Furioso”). E depois dessa dupla de canções que apresentam essa dualidade, do quanto é imprescindível se unir e do quanto é difícil sustentar essa união num momento polarizado, vocês vêm com a outra metade do título do álbum. Que é inclusive o primeiro momento em que vocês falam diretamente de um “falso messias”. E nessa faixa também me chamou bastante atenção que vocês fazem também uma citação direta a um lema da luta pelos direitos da classe trabalhadora, também muito associado ao movimento anarquista, que é “Sem deuses, sem mestres”. O anarquismo ainda é muito malcompreendido, sobretudo no Brasil, porque a gente teve algumas gerações durante e após a ditadura militar que aprenderam a tratar a discussão política como tabu. Como essas ideias de autogestão, da organização vinda do próprio povo, figuram no imaginário do Tuatha?
Complicado, hein? Na verdade, quando você falou de citação, eu achei que você ia chamar atenção para a citação da internacional socialista: “Paz entre nós, guerra aos senhores”. Na “United” a gente já comentou dessa coisa da união, de se organizar. A gente não queria usar o termo “organizar”, politizar demais o termo, mas acaba sendo isso. Não sei se é possível, se nós veremos alguma coisa, algum tipo de revolução verdadeira e não só reformas. Mas acho que seria superimportante a galera se politizar melhor. Estudar, pesquisar, mas não sei dizer qual seria o primeiro passo. Essa situação de viver num país periférico… Já é muita dor, muita violência no discurso que a gente tem de ficar enfrentando. Você ainda ter de ficar discutindo com irmãos, né? Que não se tocam: o cara é latino, pobre e se coloca contra os próprios direitos. Isso é uma depravação. O cara que vai votar em qualquer candidato de direita sendo latino-americano. A menos que seja uma pessoa muito rica, está se aniquilando de certa forma.
Apertando botões sem saber por quê?
É. Eu acho que é superimportante. Como eu disse, não sei qual seria o primeiro passo. Não tenho nenhuma pretensão política real, partidária, messiânica (risos). Mas o caminho pra isso acontecer, acho que primeiro seria o pessoal estudar mais, pesquisar mais.
Talvez o primeiro passo sejam exatamente obras como esta, que sensibilizam as pessoas e propõe uma reflexão. Mexer com o afeto das pessoas.
Ah, isso é verdade. Até porque é isso que a extrema direita vem fazendo: construindo afetos, destruindo outros…
Uma pergunta mais boba agora (risos): nos comunicados que o Edgard Brito (tecladista da banda, também responsável pelas ações de divulgação do disco para apoiadores) enviou sobre o álbum, ele citou que vocês usaram timbres de theremin em alguns pontos, para simbolizar justamente esse “lamento das massas”. Eu toco theremin, e fiquei muito feliz com essa escolha estética. Como veio essa ideia de usar esse timbre para simbolizar essa voz?
Esse choro da população excluída, né? Isso é coisa do Edgard mesmo. Ele já gosta pra caramba do theremin. Já usou antes, só que aí… Como esse disco ficou um pouco mais dark, ele acabou usando mais. Mas o Edgard já tem alguns timbres aos quais ele sempre recorre. É como se fossem instrumentos dele, que ele usa. Ele usa, claro, som de Moog, som de Hammond, etc. Mas ele tem uns timbres diferentes que ele está sempre usando. E ele sabe muito bem dosar isso quando a música pede. Ele gosta de ler as músicas, no sentido de composição e clima mesmo, independente das letras. Ele pira com essas coisas.
Acho que você já comentou um pouco da faixa “United”, né? Que fala do quanto a gente só chegou até aqui como humanidade por sermos uma espécie social, cooperativa.
Pois é. Porque a galera fica falando né, cara? Vem com esse discurso liberal, neoliberal, do indivíduo esforçado. Da pessoa sozinha, da exceção que vence a regra. E justificando, talvez, a livre-concorrência em cima disso. Falando que é uma coisa natural, sendo que não é! Nós só sobrevivemos porque teve essa coletivização de se unir pra poder lutar contra feras, se abrigar. Um salvando o outro.
Se unir até com algumas feras, como no caso dos lobos que a gente domesticou…
É! A gente sempre teve de se unir.
Mas eu queria mesmo puxar a questão da música que vem logo em seguida, “A Fragile Whisper to a Raging Roar”, que dá um contraste bastante forte e um tanto triste. Acho que, por mais que a melodia da música em si não seja exatamente triste, é um momento que tem uma tristeza, né? Exatamente por isso que você falou: pessoas que se amam partindo pra caminhos separados por uma questão de ideias políticas diferentes. Como encontrar união nesse cenário? Tranquilo se você não tiver resposta, porque eu acho que ninguém tem!
Não, eu até tenho. Mas não vejo nem que seja político mais! Acaba sendo uma cutucada política pra muita gente. Mas acho que quando chega num ponto como o descrito na letra, já passou da esfera da política. Já entra uma coisa de humanidade. Eu não lembro exatamente a frase, mas ela fala de pessoas guiadas por preconceito, ódios. E isso não é político mais, já ultrapassou! Mas realmente é difícil, é difícil conciliar, entender, aceitar. Às vezes a gente mesmo exagera nas coisas, vai contra o caminho que a gente quer que seja. Porque às vezes… falando uma coisa bem Brasil, pois teve muita família, muito casal que passou por isso. Famílias que quebraram, amigos que não se falam mais. E gente que já nem era tão próxima, mas agora a gente quer distância. Mas acho que a gente erra aí também mesmo a gente podendo estar certo no que a gente crê. E eu acho que sempre que a gente quer o bem comum, a gente está certo. Mas às vezes a gente erra na forma de abordar isso.
Se o objetivo é justamente que a gente se una em prol de defender direitos, não é estratégico apartar muito as pessoas também. E é justamente por isso que eu bolei essa pergunta. As duas músicas vêm numa sequência falando do quanto é importante estar junto para a gente sobreviver e o quanto é difícil esse estar junto num mundo polarizado.
Pô, o cara interpretou de um jeito muito louco a ordem das músicas (risos). Legal isso!
É que eu entrei em um período de hiperfoco e já ouvi o álbum umas dez vezes, aí comecei a ir pensando nessas conexões. Você poderia comentar a faixa “Clown”, ou acha que é complicado? Porque a gente acabou de ver um outro “Clown” agora na Argentina…
Ah! Eles venceram. O cara é muito louco (risos). Imagina o grau de desespero daquele povo. Sei lá o que está acontecendo. “Desespero” não! Porque assim parece que eu estou defendendo, alguma coisa assim. Mas não. E está acontecendo no mundo inteiro. Essa ascensão de gente da extrema-direita que não faz sentido nenhum. Mostra o tanto que o cenário está zoado. Pra alguém chegar e eleger um cara que fala que conversa com o cachorro. Anedótico daquele tanto, é porque… esse pessoal está construindo alguma coisa aí pelo mundo que tem funcionado. E a “Clown” foi isso. É totalmente pro Bolsonaro, o “Palhaço Bozo”. A letra é muito autoexplicativa. A gente precisava dar uma cutucadinha de novo. Essa coisa do messias, o palhaço. Deu pra fazer uma riminha, eu falei “agora vai”.
É realmente uma música bastante direta. Assim como a dupla, que acabou sendo dividida depois, que é “Spark” (“Centelha”) e “The Virgin’s Tower” (“A Torre da Virgem”), que contam essa história terrível que o Brasil viveu, em que cidadãos e cidadãs brasileiras estavam sendo perseguidas durante a Ditadura Militar do século passado. Por causa de ideias e convicções. E a música especificamente traz a figura de uma parente distante sua. Você poderia contar um pouco para o público do Scream & Yell essa história?
A música na verdade acabou sendo pra todas as mulheres… e todas as pessoas torturadas. Homens e mulheres, mas no caso foi mais específico sobre as mulheres torturadas. É uma parente que não conheci e morreu em 2017. A família é muito grande. Ela era uma prima de terceiro grau… É uma loucura, porque o meu bisavô e o irmão dele se casaram com duas irmãs. E o meu avô era o que eles chamam de “primo-irmão”. Ele era primo-irmão da Dulce Maia e do irmão dela, o Carlito Maia, que era também militante. Ele foi um dos fundadores do PT. Então, ela era minha prima de terceiro grau. E eu soube da história dela pela mídia. Do Carlito eu já sabia, mas não falavam muito dela. Eu soube depois. E foi isso: parece que ela foi a primeira mulher presa pela Ditadura Militar. Ela foi torturada, foi estuprada, e uma coisa que chocou: eu estava falando com o Martin Walkyier (da banda Skyclad), que foi o cara que fez a letra, e ele viu que eu fiz um post na internet em homenagem a ela, e o Martin ficou espantado. E aí eu fui procurar mais coisa dela pra conversar com ele, e vi ela falando que o torturador falava assim pra ela, enquanto se preparava para dar choques elétricos na vagina: “Você vai parir eletricidade”. Acabou que ela ficou estéril. E o Martin falou: “Nossa, nós vamos ter de fazer uma música pra essa mulher!”, e ele escreveu. Eu já tinha a música, eu mandei pra ele um tanto de vocais sem letra, e ele escreveu na métrica que precisava. Ela foi uma mulher muito forte, e aí trocaram ela quando sequestraram um daqueles embaixadores, ela foi uma das presas políticas que foram libertas. Depois ela morou em Angola, no Chile, na Bélgica, na China, em Cuba, um tanto de lugar. Mais tarde ela foi a primeira anistiada também, e aí veio pro interior de São Paulo. Sofreu pra caramba como várias outras. E aí a gente trouxe esse mote.
E que, como a gente teve uma Comissão da Verdade que foi parada, passa um pouco por essa coisa das pessoas que ficaram sem nome e sem história, né?
Exatamente! Tem tudo a ver: essa história que não foi passada a limpo. Essa questão da Ditadura mesmo, o que aconteceu no militarismo aqui. O que eles fizeram, o que foi encontrado. Não foi resolvida essa história, não cicatrizou. E é uma luta. Vai sempre ser. A história é uma luta, um campo de batalha. A memória também. E a gente quis fazer essa música em homenagem, e trazer esse assunto mesmo pra pessoa questionar, pesquisar e ver como que é.
Uma coisa que me deixou bastante triste pensando na letra dessa música é que a Daísa Munhoz (vocalista convidada, dos projetos Dama Gaia, Iron Ladies, Vandroya, Soulspell e Twilight Aura) canta “Descanse com a certeza de que virá alguma retribuição”, e a gente nunca viu essa retribuição rolando. Inclusive, até o ano passado, um dos caras da linha dura da Ditadura Militar era chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Na época em que as nossas instituições estiveram em uma insegurança gigante. Então, o quanto perdemos essa oportunidade de dar uma retribuição a exemplo do que o Chile e a Argentina fizeram com oficiais dos respectivos regimes de exceção? E o quanto a gente talvez ainda esteja perdendo essa oportunidade se não julgarmos as pessoas responsáveis pelas tragédias humanitárias dos últimos quatro anos?
Concordo que perdemos essa oportunidade até aqui. Mas acho que historicamente é um tempo muito curto disso que aconteceu. A gente que é contemporâneo, pelo menos agora, fica puto. Quem passou também não viu essa vitória, essa retribuição. Isso dá uma frustrada, mas acho que isso aí pode vir ainda. É um tempo histórico muito curto. E acho que o caminho, querendo ou não… embora a internet tenha suas milhões de contradições, e seja muito perigosa, porque muita coisa é comprada, as palavras são compradas, assim como a direção pra qual as pessoas são levadas quando procuram por um determinado assunto também já é comprada. Mas eu acho que ela (a internet) pode iluminar muita gente. E acho que as pessoas vão (se conscientizar), e eu vejo isso: vejo muita gente que está se conscientizando. Que está até se organizando, dando voz, dando coro. E eu acho que uma hora vai dar uma melhoradinha!
Agora, só pra encerrar: a gente falou muito de conceito, mas eu queria ouvir um pouco sobre a estética sonora do disco. É interessante que ele tem uma sonoridade que você acabou de descrever como meio dark, e que é um pouco diferente do cânone do Tuatha até então. Tem os timbres do folk ainda bem presentes, com flautas, bandolins, violinos e algumas melodias, mas tem uma pegada também bastante contemporânea, e que pega pra outros subgêneros dentro do metal que são um pouco novidade. Você acha que isso tem a ver com se tratar também de questões contemporâneas essa estética musical?
Eu não sei dizer. Eu sei assim: a gente está há muito tempo tocando, temos muitos discos. Já fizemos muitas músicas, e elas sempre estiveram dentro do mesmo arcabouço. Bem ali, dentro de casa. Com o tempo, acho que você sente a necessidade de… não é dizer abertamente assim: “Ah, vamos fazer um trem diferente!” Você só começa a fazer o trem diferente mesmo e fala depois: “Putz, que massa!” E ela funciona ali, conversa com o que a gente faz. Então foi super salutar, até por conta da temática. Aí sim, foi um caminho diferente. Não foi planejado, mas acho que, por conta da idade e de várias novas influências também, mais contemporâneas, isso veio naturalmente. E a gente gostou demais. Porque, se não, chega um ponto no qual a gente pode começar a se repetir. E isso não é bom. Então acho que trouxe um frescor novo pra banda. Pode ser que seja um caminho aberto, pelo menos abre mais possibilidades pra gente continuar tocando, fazendo música!
Como ouvinte, fiquei bastante feliz. E você acha que vão ficar felizes também as pessoas que cobravam que vocês falassem dos problemas do mundo real agora?
Ah! Tomara, mas você já viu, né? Aí aparece o pessoal do “Ah, vocês não falam mais de fada!” (risos)
– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.