texto de Davi Caro
Mesmo o fã mais dedicado há de concordar que ninguém esperava (ou precisava de) um novo disco dos Stones em 2023. Afinal, estamos falando da banda de rock mais longeva da história, um grupo que, contra todas as expectativas, perdurou mais do que praticamente todos seus contemporâneos. Interessante observar que, diferente dos Beatles, o grupo de Mick Jagger acabou por produzir uma discografia que, apesar de extensa, tem poucos álbuns que chegam ao nível de influência de qualquer disco, por mais controverso que seja, dos Fab Four. Mas cá estamos, 17 anos após o lançamento de “A Bigger Bang” (2006), e, mais uma vez contrariando quaisquer expectativas, com um novo disco de Jagger & Richards: “Hackney Diamonds” (2023).
Inevitável falar sobre como o disco, o vigésimo quarto da banda e sucessor de “Blue & Lonesome” (composto só de covers, de 2016), é o primeiro a ser lançado desde o falecimento do baterista e membro fundador Charlie Watts, em 2021, e vem ao público curiosamente três décadas depois da saída do longevo baixista Bill Wyman, que participa de uma música do disco… com Charlie. Agora um trio, com Jagger (voz e guitarras), Keith Richards (guitarra, voz, baixo) e Ronnie Wood (guitarras), os veteranos decidiram empregar uma estratégia que já funcionou muito bem em trabalhos anteriores, e compilar faixas registradas em sessões que remontam à 2019 e se estenderam até janeiro deste ano. Contando com Watts em duas canções, a lista de faixas também traz o “suplente” Steve Jordan (que vem assumindo as baquetas nas turnês dos Stones), enquanto o baixo é dividido por Richards, Wood e o produtor Andrew Watt – isso sem falar nas participações especiais. Já a produção é creditada à Andrew Watt, que tem um currículo que lista desde Iggy Pop e Miley Cyrus à Eddie Vedder e Justin Bieber.
É importante salientar a organização do repertório: a palavra “protocolar”, que pode flutuar na cabeça de muitos ao escutarem as novas inéditas, perde força quando se leva em consideração se tratar de um repertório sólido, trazido por músicos na casa dos 80 anos, responsáveis por influenciarem de formas óbvias, e muitas vezes nem tanto, tantas movimentações em torno da música popular nas últimas seis décadas. “Hackney Diamonds”, muitas vezes, parece ser projetado minuciosamente para soar o mais familiar e acolhedor possível àqueles que viram a vida passar ao som dos discos dos Stones, mesmo que nunca alcance os gloriosos momentos das grandes obras-primas dos britânicos, e que dificilmente se torne um de seus registros mais memoráveis no futuro.
A própria escolha dos dois singles que precederam o lançamento do disco diz muito sobre como os Stones conhecem, e sabem envolver, seu público cativo. “Angry”, disponibilizado em setembro e selecionado também como faixa de abertura, foi bem recebido graças ao apropriado título: trata-se de um rock raivoso, de guitarras rasgantes daquelas que Keith parece trazer diretamente de 1972, e que pode habitar o mesmo universo criativo de “Easy Sleazy”, colaboração do vocalista com Dave Grohl, de 2021. E, se a agressividade impera na primeira música, a segunda e mais moderada “Get Close” não mantém o mesmo nível. Apesar de contar com a estelar participação de Elton John no piano, a nostalgia aqui não faz o mesmo efeito, com um refrão menos inspirado que só se salva do esquecimento com uma ajudinha dos ritmos guitarrísticos de Richards e Wood.
“Depending On You” melhora o astral, mesmo não ficando tão distante do formato de balada acústica que Keith poderia escrever dormindo. Chama menos a atenção em comparação com a inquieta “Bite My Head Off”: andamentos furiosos e um endiabrado desempenho de Jagger fazem dessa uma das mais marcantes entre as novas músicas, contando ainda com a participação de Paul McCartney no baixo (ainda que Macca pudesse estar mais alto no mix). Já “Whole Wide World” tem uma roupagem mais moderna e interessante, e até ajuda a lembrar dos bons momentos de trabalhos como “Voodoo Lounge” (1994). É claro que, se tratando dos Stones, o tradicional “momento blues” não poderia faltar, e eles poderiam ter feito mais feio do que fizeram com “Dreamy Skies”, citando Hank Williams e construindo um bem humorado pastiche do som que a banda vem copiando descaradamente desde sua origem. E “Mess It Up” é mais do mesmo, com backing vocals que complementam bem os refrãos sem soarem cansativos.
“Live By The Sword”, além de trazer de volta o convidado Elton John, também marca a reunião (e último registro) da formação de 1976-1993 dos Rolling Stones, tendo não apenas mais um dos registros derradeiros de Charlie Watts (que também agracia “Mess It Up” com sua presença) como também uma aparição do já citado ex-baixista Bill Wyman, cujas linhas de quatro cordas, mesmo que ainda discretas, amparam as melodias e o belo solo de Richards. Fica clara, aqui, a importância que Watts representava tanto para a sonoridade hoje tão marcante do grupo quanto para Steve Jordan, que procura não fugir muito das marcas registradas de seu antecessor.
As boas melodias de “Driving Me Too Hard”, com direito a um sutil slide, podem passar despercebidas em meio ao repertório, mas podem soar ótimas ao vivo. O mesmo vale para “Tell Me Straight”, único momento vocal de Richards, que surpreende não apenas pela inegável qualidade do vocal do lendário músico, mas também pela sonoridade mais densa, e pela letra, uma possível reflexão sobre a posição que a banda assumiu aos olhos de seus fiéis seguidores e da mídia em geral – ou talvez uma mensagem cifrada a respeito do futuro do agora-trio: “Todos estão fazendo perguntas / Respostas não são suficientes / Preciso de um tempo para clarear as ideias / Descobrir se é verdade”, segue o refrão.
O momento mais “estrelar” de “Hackney Diamonds”, no entanto, é a penúltima faixa (e segundo single) “Sweet Sounds of Heaven”, com Stevie Wonder ao piano e Lady Gaga fazendo vocais em um momento mais baladeiro, onde o primeiro brilha em um arranjo lindo (que deixaria os antigos colaboradores Ian Stewart e Billy Preston de queixo caído) e a segunda vence um aparente histrionismo e consegue se sobressair em uma dinâmica de quase-dueto parecida com o clímax da imortal “Gimme Shelter”. Não desagrada, ainda que seja a faixa mais longa do álbum, com quase 8 minutos (não à toa, há um mix de 5 minutos da canção nas plataformas e nas rádios). A música seguinte, “Rolling Stone Blues”, serve como um respiro, e um quase epílogo depois do excesso de “Sweet Sounds of Heaven”. Só Mick, com vocais propositalmente distorcidos (mesmo que pouco) e uma gaita, acompanhados dos dois guitarristas. Apesar de enxuto, o arranjo funciona, e muito bem.
“Hackney Diamonds” é, acima de qualquer coisa, um álbum para os mais devotos. Sejam aqueles que escutam animados cada registro ao vivo sazonal, ou os que acompanham de maneira fervorosa cada reedição com faixas bônus de algum disco dos anos 1970, ou os muitos que seguem acompanhando os Rolling Stones ao vivo. Os três remanescentes seguem, inclusive, viajando e tocando de forma consistente, e demonstram ao vivo um nível de vitalidade que muitos dirão faltar no tracklist de seu mais novo disco. E, por mais que seja um exercício de extrema generosidade assemelhar “Hackney” a “Exile on Main Street”, ou “Some Girls”, ou por mais “burocrático” ou “previsível” que as doze novas canções possam soar, é difícil não demonstrar um tiquinho de admiração pelo que Jagger, Richards e Wood seguem fazendo. Nenhum dos três aparenta precisar subir a um palco, quem dirá adentrar um estúdio; qualquer um já teria se aposentado, dadas as mesmas condições. “Hackney Diamonds” não é uma obra-prima, e nem precisa ser; trata-se de um trabalho respeitável, ainda que em nada inovador, de uma banda que construiu uma carreira invejável contrariando as expectativas de todos. Algo no qual, diga-se de passagem, os Rolling Stones seguem sendo os melhores.
Leia também: “Hackney Diamonds”, dos Stones, padece do mal do produtor hypado, por Marcelo Costa
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo
Concordo com mais com essa análise do que a do grande brother mac.
Consegui concordar com as duas críticas ao disco. Haha.
Como fã, ouço diariamente desde que lançou. Não é uma obra-prima, longe disso. Mas é muito acima da média do que se faz hoje no mundo do pop e rock.
Tomara que peguem logo gosto pela coisa e emendem outro álbum. O mundo é mais feliz com discos inéditos dos Stones.
Abraço, Mac!