por Pedro Salgado, especial de Lisboa
fotos de Isabel Saraiva Afonso
Na apresentação lisboeta do show “Na Ponta da Língua” (que se seguiu à atuação na noite anterior no Convento de São Francisco, em Coimbra, e precedeu o concerto na Casa da Música, no Porto, que encerra um mini tour de três cidades portuguesas), Zeca Baleiro e os músicos Luís Coimbra (violoncelo e violão) e Tuco Marcones (guitarra, violão e gaita) entraram no palco do Teatro Tivoli BBVA sob uma enorme salva de palmas, perante um público composto por fãs portugueses e brasileiros que lotavam a famosa sala.
“Às Vezes O Amor” (um original de Sérgio Godinho) iniciou o show de forma agradável e a meio-gás denotando desde logo a voz envolvente de Zeca e com o violoncelo a marcar o tempo. De seguida, o artista brasileiro apresentou um amigo, o pianista português Manuel Paulo Felgueiras (ex-integrante da Ala dos Namorados) que se juntou ao trio para tocar as duas músicas seguintes. Numa delas, a versão de “Tu Não Sabes” (de Pedro Abrunhosa), sobressaiu a forma harmonica como os músicos se entrosaram em palco, conferindo alguma solenidade à canção, à qual Zeca transmitiu emotividade e enfatizou com o seu arrastamento vocal. Enquanto “Balada de Outono”, de Zeca Afonso, seguiu a imponência anterior e encerrou o primeiro set de músicas do álbum “Canções D´Além Mar” (2020).
Baleiro, então, dirigiu-se pela primeira vez ao público: “Antes cantei três temas de autores portugueses da minha predileção e agora vou cantar uma música minha”. Com “Mambo Só”, a audiência começou a vencer a inibição inicial, acompanhando o cantor e “Babylon” deu continuidade à empatia entre público e artista, num momento musical sugestivo, do seu cancioneiro anterior e que proporcionou igual entusiasmo na assistência. Zeca continuou a trilhar o seu repertório antigo, recordando o álbum de estreia, “Por Onde Andará Stephen Fry?” (1997) e a versão de “Proibida Para Mim”, original do Charlie Brown Jr. que Zeca regravou no álbum “Líricas” (2000, que surgiu com uma inclinação bluesy e dotada de um espírito descontraído, na qual o músico brasileiro se aproximou do público e deixou-o entoar a canção em coro.
A veia de contador de histórias com perspicácia e sentido de humor, que manteria até ao final da noite, começou a vincar-se no segmento seguinte do show. “As novelas são um produto importante da cultura brasileira e as trilhas sonoras foram um capítulo forte que revelou novos artistas”, disse. Na sequencia, cantou alguns trechos de músicas dos anos 70 que integraram diversas telenovelas como “Coleção”, de Cassiano, “Filho Único”, de Erasmo Carlos e “Nuvem Passageira”, de Hermes Aquino (que acabou de ganhar uma versão de Uyara Torrente), para gaúdio de um público atento e que acompanhou o artista na sua interpretação.
Ainda sob o signo das novelas, Zeca contou que ficou muito feliz quando a sua música “Bandeira” (1997) foi escolhida para integrar a trilha sonora de “Por Amor”, da TV Globo, e recordou aos presentes que quase desesperou porque capítulo após capítulo não havia rastro da canção. Por volta de um episódio tardio, a música foi tocada durante um momento romântico entre os atores Antônio Fagundes e Cássia Kiss e Zeca exclamou: “Ai se eu pego o Fagundes!”, provocando uma gargalhada geral. Estava dado o mote para a bem recebida “Bandeira”, que Zeca cantou num registro poético e apaixonante.
As estrofes “Favela não é hotel” e “Vida não é novela” deram cor ao pop elegante de “Banguela”, outra boa repescagem do disco “Líricas” (2000), e “Quase Nada” manteve a dinâmica do show num tom sedutor. O espetáculo atingiria um excelente desenvolvimento durante a performance de “Flor da Pele”, com direito a um solo de guitarra de Zeca que acentuou a beleza e o dramatismo da canção num momento de boa interacção e sintonia entre o artista e os seus músicos.
Visivelmente satisfeito, Zeca Baleiro apresentou o primeiro convidado da noite, o grupo português Ala dos Namorados, composto por Nuno Guerreiro (voz), João Gil (guitarra) e Ruben Alves (piano), com quem Zeca fez parcerias durante a pandemia. O músico João Gil declarou ser “uma honra dividir o palco com Zeca Baleiro”, referindo também que “todos assistimos surpresos à forma como Bolsonaro desprezou o povo brasileiro durante a pandemia enquanto na Europa se tomavam medidas concretas de apoio e proteção às pessoas” e concluiu dizendo que “Zeca escreveu palavras de esperança num período de desespero”.
Juntos, interpretaram em sintonia a amena “Razão de Ser (E Valer a Pena)”, uma música da Ala dos Namorados que foi relida no álbum “Canções D´Além Mar”, e apresentaram “Para Onde Irão”, uma canção emotiva com letra de Zeca Baleiro (dedicada à época da pandemia) e que fará parte do novo álbum da banda portuguesa (“Brilhará”), que deve ser lançado logo mais.
Sozinho à guitarra, Zeca tocou a brincalhona “Steve Jobs”, uma música que compôs ao estilo de um repente nordestino, inspirada pelo fato dos seus filhos trocarem um passeio com o pai pelos encantos dos celulares e dos computadores portáteis, ressalvando com prontidão: “Não tenho nada contra Steve Jobs”. A cantora algarvia Susana Travassos foi a derradeira convidada da noite e com a participação de Zeca, dos seus dois músicos e do regressado Manuel Paulo Felgueiras, assinou uma performance notável na balada “Sete Vidas” em que mostrou um timbre forte e claro que levou Baleiro a proclamar com graça: “Que coisa linda é esse canto português, já o meu canto foi conquistado com conhaque”.
O singalong “Mamãe Oxum” embalou um público já devidamente cativado e os primeiros acordes do hit “Telegrama” levaram a assistência ao rubro e Zeca interrompeu momentaneamente a interpretação só para escutar a cantoria geral. A sala transformou-se num mar ondulante de luzes vindas dos celulares e ainda houve tempo para o artista prolongar a música e entoar até ao limite as estrofes “Mama, ô mama, ô mama/ Quero ser seu, quero ser seu, quero ser seu, quero ser seu papa”.
Após a saída de palco, os gritos insistentes para o regresso não tardaram e o encore começou pouco depois. Não sem antes Zeca agradecer a calorosa recepção e o contributo da Ala dos Namorados e de Susana Travassos e recordar os shows inesquecíveis de Sérgio Godinho e Jorge Palma a que assistiu em Portugal nos anos 90. Empunhando uma pandeireta e acompanhado pelos seus músicos, Zeca detonou uma versão roqueira e festiva de “Toca Raul” que concluiu a noite num ambiente propício à dança e à catarse geral, selada com um salto no ar do artista e posterior abraço coletivo.
O show de Lisboa, que durou quase duas horas, comprovou a enorme empatia do público português com Zeca Baleiro, uma afinidade que não se esgota num sucesso ocasional ou numa letra específica, mas que se expressa numa identificação genuína com o seu espiríto criativo e a sua musicalidade inata. Um laço que encontrou correspondência no músico brasileiro, o qual soube retribuir o afeto da assistência com um bom espetáculo, habilmente executado e pontuado por doses certeiras de humor.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.