entrevista de João Paulo Barreto
“Só se pode roubar a quem se ama.” Tal frase é do compositor e maestro russo Igor Fyodorovich Stravinsky. Proferida por Tom Jobim, durante uma conversa com Elis Regina, em 1974, ela ganha contornos de um Brasil essencial musicalmente quando o maestro soberano canta, ao lado da pimentinha, a canção “Caco Velho”, de Ary Barroso, outro mestre. “Você gosta do Ary Barroso?”, pergunta Elis. Tom, naquele jeito conhecidamente cativante de olhar para cima enquanto sorri, responde: “Adoro!” Entre risos, ela replica: “Você gosta mesmo é do Villa-Lobos, né?” Continuando a afinar o violão que acaba de tocar, Tom reflete por um par de segundos e diz: “Eu gosto muito do Villa-Lobos. O Villa-Lobos, o Ary Barroso, o Pixinguinha são meus monstros sagrados. São as pessoas a quem eu copio. Só se pode roubar a quem se ama”, crava Jobim enquanto beberica de um copo de uísque e seu olhar encontra a câmera.
O momento foi captado por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, que estavam presentes em um estúdio de Los Angeles há quase cinquenta anos, e registravam, em imagens que seriam eternas, um potente recorte da música brasileira. No caso, trata-se da gravação do disco “Elis & Tom”, que reuniu os dois símbolos em um uníssono. “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você” (2023), filme lançado comercialmente agora por Oliveira, apresenta ao espectador parte dessas imagens capturadas em estúdio. Ao serem analisadas sob uma tentativa de se ficar distante de qualquer romantismo poético, tais imagens registram o caminho de “pau, pedra e resto de toco” que se percorre para o alcance de uma obra-prima.
“Toda obra de arte tem essa tensão, esses momentos de conflito. Isso é normal em toda obra coletiva”, afirma Roberto de Oliveira em entrevista ao Scream & Yell. “A euforia que veio depois é a partir do momento em que os talentos se reconheceram e tudo começou a ficar muito bonito. A montagem (do filme) veio de um material que era muito fragmentado porque a gente estava lá meio como voyeurs dentro do estúdio. Isso porque era um estúdio de gravação de áudio. Então, a câmera não tinha como se movimentar muito. Não podia fazer barulho. Por isso, estávamos muito discretos. Quase como clandestinos, sabe? Com imagens roubadas, assim”, relembra o diretor que, também, era amigo pessoal de Elis e trabalhou como seu empresário.
A euforia que Oliveira cita se faz presente nos momentos de alegria em que Tom, Elis e toda a equipe técnica por trás do disco escutam a versão finalizada de “Águas de Março”, cuja letra, em uma liberdade narrativa utilizada aqui, simboliza um pouco do processo de criação desse disco pilar. “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você” aborda muito dessa busca de um equilíbrio entre os dois. Passa por caminhos de paus, pedras e tocos para alcançar uma estrada suave.
Em falas captadas hoje por pessoas como o arranjador e pianista César Camargo Mariano, marido de Elis à época e que, agora, comenta no filme sobre o clima da reunião inicial com Tom Jobim, esses espinhos no caminho se apresentaram de forma bastante pontiaguda. O maestro, profundo conhecedor do mercado musical estadunidense e do processo de gravação em estúdios locais (lá se iam muito anos de experiências do criador da Bossa Nova com diversos nomes, tais quais Dizzie Gillespie, Charlie Byrd, Gerry Mulligan e Frank Sinatra, para citar apenas alguns), fez questão de deixar claro que Mariano seria humilhado pelos executivos locais ao se propor, com vinte e poucos anos, a ser o arranjador de um disco de Tom Jobim. Para o maestro, aquele não era um disco de Elis com Tom sendo um convidado, mas, sim, um trabalho que teria ele como arranjador e pertencente aos dois. Mariano, no entanto, acabou sendo o arranjador da obra.
O filme aborda um pouco do processo de criação tenso entre Regina e Jobim trazendo, em depoimentos de Cesar Camargo Mariano, um pouco da tensão oriunda das cobranças de Tom, como quando ele se surpreendeu pela presença de um baixo elétrico ao invés de um acústico, bem como de um piano elétrico, ao qual ele se referiu utilizando junto ao que chamou de “piano de pau”, o que gerou tanto surpresa quanto sarcasmo e ironia em Tom Jobim por ouvir aquela descrição para um instrumento que ele julgava maravilhoso. Elis, entre esse conflito dos dois, absorveu a tensão daqueles dias, o que acabou por tornar o processo ainda mais difícil para ela, que aparece roendo unhas no estúdio, exalando nervosismo e, em alguns momentos, em embates junto a Tom. Conhecida por ser uma mulher de personalidade forte (o apelido “Pimentinha”, lhe dado por Vinicius de Moraes, confirma isso), chegou a cogitar voltar ao Brasil, abandonando o projeto. Mas logo o processo avançou.
Roberto de Oliveira, amigo de longa data de Elis, rebate essa impressão de que ela era uma pessoa difícil, trazendo, aqui, uma exata definição do sentimento de autoproteção que a cantora sempre buscou. “A Elis era uma pessoa muito doce, ao contrário do que parecia. Na verdade, ela levou muita porrada a vida inteira. Foi muito assediada. Porque ela era uma criança prodígio. Ela cantava daquele jeito desde pequenininha. Se você procurar no YouTube, tem lá uma gravação dela imitando cantoras da época. E é impressionante! Ela devia ter 14 anos”, pontua o diretor e reafirma: “A Elis chamava muito atenção. Ela era muito assediada. E ela não tinha uma estrutura de proteção em torno dela, sabe? Então, a maneira que ela tinha era a de dar pontapé, bater, chutar para se defender (risos). E isso marcou muito. Mas ela era uma pessoa muito doce. Tão doce como a música dela, como a arte dela, e as pessoas vão perceber isso no filme”, define o cineasta.
“Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, em sua montagem, acaba, também, por trazer um foco dramático a essa trajetória de Elis, abordando logo em seu primeiro ato a partida precoce da cantora em 1982, apenas oito anos após a gravação do disco. A escolha causa estranheza, mas acaba não ofuscando o resultado final, uma vez ainda teríamos muito das imagens da gravação do disco ainda a serem trazidas pelo documentário. Mesmo que a expectativa prévia ao lançamento comparasse o filme ao “Get Back”, que Peter Jackson lançou em 2021, a proposta de Roberto de Oliveira, aqui, é outra. E mesmo que Tom e Elis sejam artistas de um apelo internacional, focar somente no encontro dos dois em estúdio, sem as inserções de entrevistas e contextualizações temporais, talvez não funcionasse como sendo o produto final. Trazer a história deles de maneira individual ajuda o filme a criar um diálogo com novas gerações, válido salientar.
Em certo momento, quando vemos a versão de “O Que Tinha de Ser”, clássico de Tom e Vinicius, Elis canta com tamanha paixão que explode de alegria ao terminá-la, abraçando e beijando Jobim em comemoração pelo êxito. É daqueles momentos que valem todo o filme. Aquele amor puro entre dois gênios perfeccionistas e que enterra qualquer rumor imbecil de ódio entre ambos. “O Tom abraçava a Elis e eles ficavam em um amor. Mas aquilo é um outro tipo de amor que às vezes é difícil de entender. Isso é um outro amor. É um amor musical que transcende. Acho que é o amor mais puro que tem”, frisa Paulinho Braga, baterista da banda de Elis e um dos entrevistados do filme.
“Só se pode roubar a quem se ama”, disse Tom parafraseando Stravinsky. Elis roubou de Tom. Tom roubou de Elis. Tá explicado. Confira nesse papo que o Scream & Yell levou com Roberto de Oliveira um pouco mais sobre o processo de criação de “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”.
Como foi voltar a esse material captado há quase cinquenta anos? Pesou o fato de estar diante de imagens tão únicas?
Quando eu fiz a captação desse material lá em Los Angeles, em 1974, eu tinha consciência que seria um encontro histórico. Portanto, merecia ser registrado. Eu não tinha um plano do que fazer exatamente com o material. Falei: ‘vamos registrar! Porque isso é ouro puro e, no futuro, a gente vai usar’. E o tempo que levou para fazer, eu demorei porque não tinha pressa. Porque eu sabia que, quanto mais tempo passasse, mais distanciado a gente ficasse do fato, do encontro, mais fácil iria ser para fazer esse filme. E foi o que aconteceu nesses quase cinquenta anos, nos quais eu tive o privilégio de participar desde o início, de ser o autor da ideia do encontro e, até hoje, estar contando a história. É um privilégio você poder ter toda essa amplitude de um trabalho. O resultado dele e suas consequências estão no filme. Eu sabia que o tempo ia fazer bem ao filme. Por isso que eu não tinha pressa. As carreiras do Tom e da Elis se concluíram na fase presencial, pois agora eles estão em uma outra etapa. Não estou falando de nada místico ou religioso, estou falando no sentido de que, hoje, as gravações deles estão tendo releituras e um monte de gente nova está ouvindo o “Elis & Tom” e ouvindo os dois separadamente. Então, foi muito bom. As carreiras se concluíram e o disco tem a sua história já meio completa como um disco muito adorado no mundo inteiro. As pessoas gostam muito, principalmente os músicos e as pessoas ligadas à música. E aí foi fácil fazer o filme porque a história já estava meio amarrada, já estava meio fechada. E também eu gosto muito de fazer recortes. É difícil você contar a história, falar da carreira da Elis inteira, falar a história do Tom inteira. É muito difícil. Você nunca vai conseguir sintetizar algumas coisas. Agora, quando você pega um recorte de um evento, fica muito mais fácil de se contar essa história. E eu acho que o resultado do filme, que as pessoas que já assistiram em pré-estreias estão curtindo, é justamente por isso. É uma história que está lá bem resolvida, digamos assim. O tempo ajudou muito. Foi um grande aliado.
Para mim, um dos momentos do filme no qual ele se define em relação ao choque de tensão que eventualmente se esvai e a leveza daquele encontro de gênios é quando todos se reúnem para ouvir o disco e os sorrisos são gerais.
Toda obra de arte tem essa tensão, esses momentos de conflito. Isso é normal em toda obra coletiva. A euforia que veio depois é a partir do momento em que os talentos reconheceram e tudo começou a ficar muito bonito. A montagem veio de um material que era muito fragmentado porque a gente estava lá meio como voyeurs dentro do estúdio. Isso porque era um estúdio de gravação de áudio. Então, a câmera não tinha como se movimentar muito. Não podia fazer barulho. Por isso, estávamos muito discretos. Quase como clandestinos, sabe? Com imagens roubadas, assim. Mas isso foi muito bom porque o pessoal não percebia a nossa presença, a presença da câmera. E ficou muito descontraído, muito à vontade. Então, eu acho que isso acabou virando um charme. Ao contrário do “Let it Be”, dos Beatles, que é de 1970. Lá, o cinema já estava previsto para dentro do estúdio e que, agora, é o “Get Back”, pois fizeram uma nova versão desse material. O nosso, não. No nosso, a gente estava clandestino, lá. Escondidos lá dentro. Mas foi muito bom. Deu para captar mais descontração dos participantes e eu acho que funcionou. Agora, o material é muito fragmentado. E ele meio que se resolveu na ilha de edição. A participação do João Valle foi fundamental porque ele teve sacadas que a gente não previa e que apareceram ali na hora. Mudamos o roteiro da edição muito em função de escolhas e oportunidades que surgiram ali para fazer. Mas o resumo da história, (e o que você falou bem ao citar a euforia no final) realmente, foi muita tensão ao início. Mas na hora em que a obra de arte meio que se configurou, não havia mais tensão. E isso é o poder da música. E o poder da arte. Pessoas em conflito ou contrárias com algumas desavenças conseguem se conciliar através da arte. Isso é um exemplo até para um país tão dividido como o nosso, atualmente. A arte tem um poder incrível de conciliação e de aproximar as pessoas, deixando como secundário qualquer outro problema que existe.
Você citou o “Get Back”, e eu imagino que existam muitas imagens que não foram utilizadas na montagem final do filme. Você tem planos de um projeto com acesso do público a mais momentos captados?
Em 2024, no dia 17 de março, completa-se cinquenta anos desse encontro. Nós vamos fazer um evento no Rio e outro em São Paulo. Podemos viajar para outros locais, também. Será uma espécie de dia temático com muita música. Nesse momento, vamos reproduzir a gravação ao vivo do show que os dois fizeram ao vivo no Brasil logo depois do encontro. Então, a gente vai poder ouvir “Águas de Março” com aplausos, com público e outras preciosidades. O show tem duas horas e esse evento vai ser em São Paulo, com previsão de acontecer no Ibirapuera. No Rio, será no Jardim Botânico, onde vamos criar espaços no meio da mata para as pessoas ficarem ouvindo em looping a esses shows. Vamos trazer uma sonorização espetacular. Também a gente pretende lançar esse material no mercado. Eu tenho muita coisa que não usamos no filme. Ainda tem possibilidade de se fazer um spin off disso aí para uma série em streaming com mais coisas do que está no filme. Prevemos, também, lançar, além de um livro, uma exposição imersiva. São exposições temáticas que fazem muito sucesso atualmente e são muito baseadas em projeções. Mas nós queremos fazer uma baseada no som, na sonoridade. Porque nós gravamos mais ou menos vinte horas de som ambiente, das conversas de estúdio, dos bate-papos e ensaios. Então, para essa exposição, a ideia é que tenha um túnel de cinquenta metros onde, até chegar nas salas onde estão as exposições, você vai caminhando e ouvindo a conversa deles, usando recurso de alta tecnologia e inteligência artificial na separação e na preparação desses sons. Assim, o público vai poder fazer uma caminhada como se estivesse no estúdio ouvindo a Elis e o Tom conversando. Eu acho que a gente vai conseguir desenvolver mais coisas em torno desse projeto que os fãs, principalmente, vão gostar muito.
Escapar do formato talking heads em um documentário é uma tarefa bem difícil. Mas com o seu filme, o impacto das imagens à época das gravações do disco acabam por tornar esse formato bem mais atrativo. E há, claro, o peso das falas de cada depoimento, algo que, junto com os registros, dão ao espectador a oportunidade de um mergulho naquele período. Na montagem final, você passou por algum conflito no intuito de encontrar esse equilíbrio no formato?
De uma maneira, as coisas se complementam. Talvez a linha, a unidade que a gente tenha a unir isso tudo, seja a emoção. É procurar a emoção. Porque as imagens são antigas. Elas têm quase cinquenta anos. Mas elas transmitem muita emoção. Estamos percebendo isso nas sessões de pré-estreia que fizemos. As pessoas se emocionam. Eu não imaginava que essas imagens tão antigas tivessem tanta força. É que essa história marcou muito. É uma história muito emotiva até pelo tipo de música. Então, a emoção está presente e procuramos o tempo todo manter isso porque é difícil. Você consegue emoção na ficção. É mais fácil de você trabalhar com esse tema na ficção. O documentário, que é mais duro, mais em cima da realidade, às vezes é mais difícil. Mas a gente teve esse resultado da emoção, que faz tudo ficar muito coerente. A nossa expectativa é de que o filme vai ter uma carreira muito boa, principalmente no exterior, onde o Tom Jobim é o brasileiro na área cultural mais conhecido. E o filme está participando de vários festivais. Essa semana (entrevista realizada em 05/09) participou de um festival em Nova York com grande sucesso. Ele estreia em 15 de setembro em Los Angeles. Resolvemos ter a estreia mundial fora do Brasil, começando em Los Angeles, que é o lugar onde tudo começou. E a gente espera uma carreira boa nos Estados Unidos e na Europa, principalmente. E estamos sentindo uma procura de todos os lugares do mundo que se pode imaginar. Festival de Seul, Festival na Itália, na Noruega, na Espanha. Todo mundo está interessado no filme. Ele estreia no dia 21 de setembro e a gente imagina que vai ser uma maneira de levar a públicos novos a oportunidade de conhecer um pouco esses dois grandes artistas e um tipo de música de uma determinada época que, hoje, não se repete. Hoje, música mudou muito. Eu não sou saudosista em achar que mudou para pior, não. Eu acho que está diferente. Hoje, a música é mais utilitária. Ela não tem mais esse papel da obra de arte intrínseca ali. Tentar se criar uma obra de arte. Hoje, se quer usar a música para ela trazer algum resultado em termos de comunicação. Você falar com determinados seguimentos. Você expressar sentimentos, emoções, vender ideias, conquistar adeptos tanto no nível religioso como comportamental. A música mudou muito de lá para cá. E eu acho que os jovens vão perceber isso e vão gostar de conhecer um tipo de música que hoje não é tão frequente.
Você estava presente naqueles momentos, chega a aparecer em uma imagem com uma câmera em punho. Queria te perguntar sobre esse sentimento de mergulhar nessa história que, também, é algo pessoal seu, como amigo da Elis. Como é esse sentimento ao adentrar nessas imagens no intuito de transmiti-las para o público?
É muito bom. Eu gosto muito dessa ideia. Eu tenho uma relação não saudosista com esse conteúdo. Sempre fui meio fascinado por preservar. Eu sou um acumulador de imagens de acervo, sabe? Sempre sofro quando vejo um show ao vivo, um evento qualquer e que tem um momento genial que não foi captado. Então, eu tenho muito material arquivado e tenho uma relação com a história da música não saudosista, mas no sentido de, realmente, registro. De documentar para que isso fique perene. Mas olho sempre pra frente. Estou pensando nas pessoas que não viram e que precisam ver. E não pode se perder essa oportunidade. Então, a minha relação com o conteúdo histórico não é de saudosismo, mas eu penso sempre em fazer coisas novas para novos públicos a partir dessas histórias, usando-as como referência. Até para estimular as pessoas a fazerem coisas novas sabendo que, lá atrás, teve gente que já passou por isso e encontrou resultados muito importantes que podem ser usados no futuro. Eu fiz esse filme pensando muito nos jovens de qualquer país do mundo. Por isso que eu meio que contextualizo os dois antes de entrar na história do encontro. E pensando no público de fora do Brasil, também. Em função dessa abertura que o Tom tem para o exterior, esse filme tem uma chance muito grande de viajar e é isso que a gente quer. Mostrar a cultura brasileira e a arte brasileira para o mundo todo.
As falas do André Midani são de uma potência incrível. Para um diretor, imagino que encontrar esse momento, essa sintonia, estar no lugar certo e na hora certa, seja algo de um peso tremendo. No seu caso, você estava entrevistando pessoas com quem você conviveu.
Sobre estar no lugar certo e na hora certa, no meu caso, não foi uma coincidência. Porque eu que criei esse momento. Eu percebi ali uma oportunidade. E foi uma coisa bem estruturada desde o começo. Nós sabíamos o que íamos fazer. Eu sabia o que eu ia fazer e nunca tive dúvida de que era um momento histórico. Que esse encontro dos dois daria um resultado e que, para isso, a gente guardou esse tempo todo. E o fato de eu só fazer agora o filme deu essa possibilidade de ter essa visão mais de um distanciamento de tudo que aconteceu. E o André e os comentários todos permitiram que todo mundo pudesse enxergar melhor essa história. Porque ela já estava pronta. E, realmente, você citou o André e a participação dele foi fundamental. Incrível. Ele fala coisas muito legais. Um dos caras mais importantes. Acho que ele foi o homem mais importante da indústria do disco no Brasil em todos os tempos. E acho que o distanciamento do fato, a distância temporal do fato, ajudou todo mundo a entender melhor e explicar melhor essa história. O público ganha com isso. O fato de eu estar desde o início, lá no começo do projeto e, agora, estar contando essa história, me permitiu, também dar um grau de fidelidade muito forte para tudo que aconteceu. Tudo que está ali é real. Eu acompanhei e testemunhei. Então, isso tudo conta em benefício do filme. Eu acho que o filme é grande, é bom, e está sendo reconhecido em função dessa conjunção de fatores aí que, realmente, foi muito importante.
O filme opta por trazer muitas imagens da vida de Elis, abordando sua morte precoce oito anos após a gravação do disco. Há aquela fala forte do André Midani sobre o que ele julgou como um suicídio da Elis e há as imagens de apresentações dela. Como você lidou com essa opção de focar a narrativa nesse aspecto trágico?
A dramaticidade do filme é mais voltada em cima da vida da Elis do que na do Tom pela circunstância da morte dela. Porque é o grande paradoxo do filme e dessa história dela: o fato dela morrer aos 36 anos no auge do sucesso, da beleza, do talento, tudo certo com ela. E eu fiz questão de contar logo no início para as pessoas que estão vendo pela primeira vez essa história perceberem isso. Essa história da morte da Elis, até hoje, não foi bem aceita. Foi um impacto tão grande na população. As pessoas se lembram o que estavam fazendo quando receberam a notícia, você já deve ter percebido isso. Foi muito semelhante ao desaparecimento da Carmem Miranda, lá atrás. Teve algumas semelhanças porque ela também estava no auge do sucesso. E as duas aparecem mortas em imagens. Eu coloquei isso no filme sabendo que ia criar algum impacto, mas eu queria ressaltar esse paradoxo. E até hoje, os contemporâneos da Elis não aceitam, não conseguem entender o que aconteceu. É uma coisa que não é que não conseguem entender, (eles) não conseguem aceitar. E esse impacto marcou muito o país todo. E eu acho que tinha que ser comentado no filme. Mas é o grande paradoxo. Como uma artista naquele momento, com todos aqueles atributos, desaparece, vai embora? É muito triste a história dela nesse sentido. E eu acho que o filme tinha que falar disso. E o André volta a falar disso no fim, em um outro contexto, já pensando nas causas disso ter acontecido. Mas a gente trata isso, também, de maneira sem aprofundar demais, e sem exagerar.
O filme aborda esses medos dela, os aspectos de uma certa aspereza de sua personalidade, essa ideia dela não ser uma pessoa de fácil convivência. Você que era amigo dela, que conviveu com ela, como você tem essa lembrança da Elis?
Eu acho que a gente conseguiu mostrar um pouco essas contradições todas e tudo isso em benefício do filme. A Elis era uma pessoa muito doce, ao contrário do que parecia. Na verdade, ela levou muita porrada a vida inteira. Foi muito assediada. Porque ela era uma criança prodígio. Ela cantava daquele jeito desde pequenininha. Se você procurar no YouTube, tem lá uma gravação dela imitando cantoras da época. E é impressionante! Ela devia ter 14 anos. A Elis chamava muito atenção. Ela era muito assediada. E ela não tinha uma estrutura de proteção em torno dela, sabe? Então, a maneira que ela tinha era dar pontapé, bater, chutar para se defender (risos). E isso a marcou muito. Mas ela era uma pessoa muito doce. Tão doce como a música dela, como a arte dela, e as pessoas vão perceber isso no filme. Acho que o filme conta bem essa história.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.