entrevista de João Paulo Barreto
Ao iniciarmos um mergulho na história do mestre Môa do Katendê pela lente do documentarista Gustavo McNair e através dos depoimentos do próprio Môa e das pessoas que o conheceram e aprenderam com ele, é perceptível o fato de que o filme “Môa – Raiz Afro Mãe” (2023) não nos faz pensar sobre sua trágica morte em outubro de 2018. Não há, aqui, uma utilização mórbida de tal fato como uma porta de entrada para a audiência conhecer aquela rica história. Uma vez que a produção foi iniciada com o artista ainda vivo e participando ativamente do projeto, o filme acaba servindo como um revisitar de sua estrada artística e cultural definindo em sua montagem repleta de intervenções musicais e performances a ilustrar as entrevistas (dentre elas, do próprio Môa), uma escolha de fazer valer a presença perene do mestre.
Em entrevista ao Scream & Yell, o diretor Gustavo McNair aborda essa ideia consciente de manter seu filme não como algo sobre um pesar, mas, sim, uma celebração. “O filme não poderia nem começar pela morte como algumas pessoas queriam, porque, para muitas pessoas, é o fato mais conhecido sobre a trajetória do Môa, e muito menos terminar com a morte dele, porque a história dele não termina ali”, afirma McNair. Assim, “Raiz Afro Mãe” opta por deixar sua narrativa contar a vida de Môa pelas próprias palavras dele em vida, e pelas das pessoas que o conheceram, mas sem trazer seu foco para o pesar. Claro que em certos momentos a emoção se faz presente nos depoimentos e lembramos do fato trágico de seu assassinato. Mas, logo em seguida, o próprio Môa surge em cena, falando para a câmera, fazendo sua presença e seus ensinamentos ainda mais evidentes. “A intenção também é fazer as pessoas saírem do filme querendo saber mais, instigadas e interessadas. Tínhamos duas missões. Uma didática, de ensinar quem não sabia o que são esses assuntos, e uma outra de quem já sabia, de acalentar um pouco, e meio que lembrar que o Môa está presente em vários lugares”, explica Gustavo, que montou o filme ao lado de Danilo Trombela.
Nascido em 1954, em Salvador, e residente durante muitos anos do bairro do Engenho Velho de Brotas, Romualdo Rosário da Costa, Môa, teve sua vida permeada pela dedicação a diversos símbolos da cultura da Bahia, sendo eles a capoeira, a dança afro, a música e o afoxé, Fundador do Badauê, um dos afoxés mais conhecidos do carnaval baiano, foi durante a segunda metade da década de 1970 que Môa popularizou o nome do bloco afro. Antes da fundação, Badauê já era o nome de uma canção composta por ele para o Ilê Aiyê. Como afoxé no carnaval, o Badauê inovou ao misturar o ijexá com ritmos como afrobeat, como o reggae e com ritmos caribenhos. Além disso, mesmo sendo um afoxé representante de uma cultura africana, permitia que toda variedade de etnias e gêneros desfilasse. Sua criação, no Engenho Velho de Brotas, se tornou um símbolo cultural e social do bairro e, também, de Salvador.
Em “Raiz Afro Mãe”, Gustavo McNair capta, tanto através dos depoimentos de nomes importantes ligados a Môa, como Alberto Pitta, Mestre Plínio, Didi Badauê, Mestre Valdec, Lazzo Matumbi, Gilberto Gil, Letieres Leite, quanto em imagens da região do Tororó e do Engenho Velho de Brotas, um sentimento que se torna latente à sua audiência, algo que também é fortalecido pelas performances musicais. Trata-se de uma sensação de pertencimento a uma Cultura que é nossa, brasileira, e que define muito da luta de Môa dentro da sua arte. “Salvador é um personagem do filme. Não tem como não ser. Foi o cenário do crescimento do Môa. É o cenário no qual essas culturas estão convivendo”, define o diretor, e continua: “O Môa era um cara conflituoso. Ele tinha um conflito de pertencer a Salvador ao mesmo tempo que ele sai da cidade em um momento que ninguém sabe muito bem o porquê. Esse é um dos mistérios. Mas ele acaba saindo de Salvador, mas levando Salvador com ele para todo lugar”, pontua o realizador.
Môa do Katendê viveu e trabalhou levando seu conhecimento cultural a locais como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, bem como na Europa. Deixou seguidores de seus ensinamentos na capoeira e no afoxé em todos esses lugares. Mas costumava voltar para seu lugar de origem, o Engenho Velho. Na comunidade do Dique Pequeno pretendia construir um espaço voltado para transmitir seus ensinamentos na capoeira e na música. Antes de concretizar tais planos, voltou uma última vez a Salvador. Infelizmente, foi assassinado no dia seguinte ao primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, após uma discussão em um bar na qual topou com um ignorante apoiador dos ideais da extrema-direita. “A arte é argumento de manutenção de sociedade, para a gente se manter são no mundo. Então, o Môa nos deu muito argumento. Deu muita arma para lutar. Ele morreu fazendo o que ele fazia sempre, que era lutando e defendendo aquilo que ele acreditava e o que ele achava que o Brasil precisava, o que aquela comunidade precisava e o que Salvador precisava”, afirma Gustavo.
A morte do artista traz uma reflexão sobre o que é esse Brasil da ignorância, cuja divergência de ideias pode levar ao brutal, à violência e à morte. O filme “Môa- Raiz Afro Mãe”, que também batiza o disco póstumo do músico, celebra a sua vida para além desse trágico. Nos faz pensar na união que essa cultura pode promover, algo para além de divergência e opiniões políticas. “A gente tem que encontrar novas formas de falar de política. Acho que até pela recusa que algumas pessoas têm já de pensar no tema, pessoas que estão do outro lado e que não gostam de cultura, os preconceituosos, já têm uma refuta, mesmo, em ouvir. E eu acho que é nosso papel como documentarista, como jornalista, encontrar outras formas de falar sobre política que toquem as pessoas de outras formas. E que isso permita chegar em pessoas que talvez não deixassem isso chegar se isso viesse em um discurso envernizado de política, mesmo. Môa era uma figura política, mas só que ele não era um ativista em si. Ele fazia política pela arte, pela educação”, destaca Gustavo.
A partir da consciente escolha de não usar o assassinato de Môa como um ponto de pesar constante de sua narrativa, “Raiz Afro Mãe” constrói com muita sensibilidade a figura de seu personagem central e cria uma homenagem bem de acordo com a vivência daquele homem e sua continuidade através de seus ensinamentos. “Tivemos muita delicadeza da forma que tratamos da morte dele para não parecer que isso era o fim. Para não explorar isso e para mostrar que não estamos falando da morte, mas, sim, da vida dele. E que a vida dele ainda tem muito respiro, muito gás”, afirma o diretor, e crava: “A presença do Môa está lá, no filme, viva. Os ensinamentos do que ele fala são eternos. Nunca vão morrer. Ninguém nunca vai matar”.
Sim. Môa vive.
No papo abaixo, Gustavo McNair aprofunda a experiência de levar às telas a trajetória de Môa do Katendê!
Quando eu assisti ao filme, uma coisa que ficou perceptível para mim foi um aspecto que o diferencia de outros documentários póstumos é o fato de que o personagem central participou ainda em vida da produção do filme com depoimentos. Como foi lidar com essa decisão de mudança, de quebra narrativa do roteiro do filme para lidar com o fato da morte de Môa, mas mantendo a obra ainda sobre sua vida e não sobre seu falecimento?
Quando a gente pensou o filme com o Môa e junto a ele, era para ser um trabalho sobre a vida, sobre todo esse universo cultural que orbitava em volta do Môa. É uma história que tem a biografia dele como uma camada. Embaixo, tem uma outra camada que é essa que se entrelaça com a vida dele e que é a da ascensão das manifestações negras em Salvador, na Bahia, no Carnaval. Essa temática dos afoxés e dos blocos afro, o candomblé como pano de fundo, como é que isso vai pra rua, como é que isso evoluciona a relação das pessoas, do público com essa cultura mais originária. Então, depois que o Môa faleceu, ele começou a ser muito conhecido, mais amplamente conhecido nesse lugar de um símbolo político. E a gente teve certeza que o filme tinha que continuar sendo sobre a vida. A gente tinha que manter a vida e devolvê-lo para quem o conheceu através da tragédia, devolvê-lo para o lugar da arte, da vida, da música. Então, o filme era para ser sobre a vida e continuou sendo sobre a vida depois da morte dele. O fato da morte estar presente é como mais um fato da vida dele, da sua biografia. Mas o filme é sobre a vida do Môa. É sobre o seu legado. E isso continua. Apesar da presença física dele não estar mais aqui, a obra e os ensinamentos que ele trabalhou a vida inteira, são eternos. A oralidade. Essa cultura passa muito pela oralidade, pela escuta. Então, o filme já queria contribuir para a disseminação da mensagem e do legado de Môa para a frente.
Lembro da sessão do filme no Panorama Internacional Coisa de Cinema do ano passado e, no debate após, você comentou que a indicação dos nomes das pessoas que serviriam como fontes para falar sobre o Môa. Como se deu essa escolha, essa mescla dos temas relacionados à trajetória do Môa?
A gente tinha muita responsabilidade na escolha dos nomes. Tínhamos que prestar muita atenção e ter muito respeito e compromisso com a verdade do Môa. E com as pessoas que realmente tinham uma relação com ele, pois eram elas que podiam contar essa história de forma genuína e com a aprovação dele. Então, foi um trabalho meio que de juntar todas as pistas que foram sendo dadas para a gente. O Môa, quando tivemos essas conversas com ele após termos decidido fazer o documentário lá no começo de 2018, falou alguns nomes de pessoas que ele gostaria que fossem ouvidas, que eram presenças importantes em sua vida. Além dessas, ele trouxe os nomes de pessoas mais próximas a ele em quem a gente podia confiar, a quem podíamos nos aproximar. Pessoas como seus filhos, como o mestre Plínio, o mestre Valdeck. Pessoas que eram próximas a ele e que conheciam bem a história e em quem ele podia confiar. Então, nós nos aproximamos mais ainda dessas pessoas. E elas acabaram nos indicando outros nomes com quem a gente devia conversar. Todo mundo meio que indicava outras pessoas com quem deveríamos falar. Essa lista de entrevistados foi mudando ao longo de todo processo, desde os quatro anos de produção do filme, que ficou parado por causa da pandemia e esperando o edital. Mas foram quatro anos com que a gente ia lendo, pesquisando e vendo que tinha relação. Então, essa lista foi sempre muito viva. E até lá nas vinte diárias que a gente ficou em Salvador filmando, ainda incluímos novos nomes. Porque é isso. Todo mundo tinha muita história com Môa. Ele era uma pessoa que tinha muitas relações. Então, essa lista foi difícil decidir.
Na montagem, para fugir do formato talking heads, você insere as cenas com as performances e imagens de arquivo dos cortejos. E as falas de todos são muito revigorantes de se ouvir. Como foi esse processo de montagem?
A decisão foi por um agrupamento temático. Eu sabia quais eram os temas que seriam tratados no filme e quem poderia falar de cada tema. Claro que todos falavam de todos, mas eu fui colocando mais força com um tema para algumas pessoas e outro tema com outras pessoas, algo que era mais natural para elas e que elas iam puxando para esse lado, para ter um equilíbrio temático. Eu não queria que elas falassem somente de Môa, mas que falassem desses temas que estão por trás do filme que o Môa carregava. Então, isso que você falou desse formato das entrevistas nesse formato talking heads, realmente, em princípio nenhum documentarista quer muito fazer. Eu não queria fazer isso. Porque o filme fala de uma cultura africana que não é essa cultura quadrada, linear, de colocar em um tripé a câmera e conversar com a fonte. É uma cultura muito mais solta. Muito mais presente. O corpo faz muito parte dessa cultura. É uma cultura mais circular, não é linear. Mas depois que o Môa faleceu, a gente precisou recorrer a várias pessoas para, juntas, tentarem contar a história de uma pessoa só. É uma história que, óbvio, transborda a vida do Môa, que transborda o corpo dele. É algo que é muito maior. Tivemos que ir atrás de várias pessoas para contar a história que o Môa, sozinho, contaria. Por isso que não tínhamos muito como fugir desse formato de entrevistas. As entrevistas são super longas. Cada uma chegou a ter uma hora e meia. São entrevistas super ricas. Todo mundo fala muito bem, falam de muitas coisas interessantes. Mas é isso. Acabou sendo o artifício que funcionava e que é uma das camadas do filme. E para equilibrar isso, é isso que você falou, também. Eles falam de forma muito viva, muito apaixonada. Não são entrevistas chatas, depoimentos entediantes. Porque eles cantam, lembram de histórias do Môa. Eles estavam muito apaixonados pela ideia de falar sobre o Môa. E tem essa outra camada do filme que são as cenas dos cortejos, as cenas de dança do Negrizu, que estão ali para trazer um pouco desse sentimento emocional que precisa ter junto. Tem a parte racional que explica… (pausa) Porque tem o didatismo de explicar de onde veio a história dele, o que é afoxé; qual a diferença entre afoxé e bloco afro; o que é o ijexá; de onde é que veio. Tem a história da revolução no carnaval que ele fez. E tem a parte emocional, que é a parte de sentir essa cultura, de sentir a espiritualidade.
Você equilibra bem na montagem essas entrevistas com imagens de performance que evidenciam essa ancestralidade e essa espiritualidade. Assistindo ao filme, vendo aquelas imagens aéreas captadas por drone no Dique do Tororó, vendo as imagens aéreas do bairro do Engenho Velho de Brotas, um lugar tão rico culturalmente, mas, ao mesmo tempo, repleto de pobreza material e pessoas em dificuldade, enfim, vendo as imagens de Salvador que você registrou no filme, surge uma sensação de pertencimento para mim que nasci aqui. Por mais que eu já tenha morado em outras cidades e outro país, Salvador sempre cria um sentimento de banzo, uma identidade pessoal forte com ela. Como foi o processo de construir essas imagens e criar essa reflexão no público?
Super bonita sua fala, João. Eu não sou daí, mas sinto que Salvador tem um potencial muito forte de ser (e isso se já não é!) a capital cultural do Brasil. Tem um potencial muito rico, muito efervescente, muita cultura. Vocês, baianos, têm uma conexão com a cultura afrobaiana, afrobrasileira, muito mais forte. Isso é uma coisa que eu acho que falta muito no Brasil. Essa conexão, esse entendimento da nossa identidade. Conhecimento mesmo. A gente tem muita ignorância da nossa história. E o preconceito gera muito desconhecimento e gera esse apagamento dessa cultura. Gera um apagamento desses artistas pretos. Então, eu entendo muito o que você está falando e isso me comove, também. Salvador é um personagem do filme. Não tem como não ser. Foi o cenário do crescimento do Môa. É o cenário no qual essas culturas estão convivendo. Tem esses conflitos o tempo inteiro, e eu acho que isso que você falou tem a ver com colocar conflito no filme. O Môa era um cara conflituoso. Ele tinha um conflito de pertencer a Salvador ao mesmo tempo que ele sai da cidade em um momento que ninguém sabe muito bem o porquê. Esse é um dos mistérios. Mas ele acaba saindo de Salvador, mas levando Salvador com ele para todo lugar. Tem uma relação de gostar, mas tem essas questões. Tem aquele momento em que ele fala do Jorge Amado, que dizia que a Bahia é uma ótima madrasta, e uma péssima mãe, mas que acolhe muito bem quem vem de fora. Então, esse conflito que você fala, do rico e do pobre, do que é pobre e do que é pobreza. Essa percepção que está em uma fala do (Alberto) Pitta, durante o filme, que o Engenho Velho de Brotas é um bairro riquíssimo. Ele é pobre, as pessoas são pobres financeiramente, mas é um bairro riquíssimo culturalmente. Então, a gente, também, no Brasil, tem essas noções de como vemos riqueza e pobreza. Tem um pouco daquela coisa sobre o que é elite. Elite cultural, elite de dinheiro, mas que é ignorante. Então, esse lugar de conflito em Salvador é importante para colocar esse cenário que tem dois lados. Não é bom nem mau, como tudo na vida. E tem esse grande potencial que, para mim, é o reflexo do que o Brasil precisa e do que o Brasil está passando. E que é aquilo pelo qual Môa lutava tanto: que é para aproximar esses dois mundos e lutar para a gente conhecer e valorizar a nossa história. Para termos orgulho dela. Para que nos identificássemos como brasileiros e que seja gerada uma união. Ele foi vítima de uma coisa contra a qual ele lutava muito, que é essa polarização do Brasil. Acho que isso se reflete, também, nisso que você falou. Salvador mostra um pouco isso. Mostra o potencial cultural que o Brasil tem e como isso pode ser um antídoto para um futuro mais possível, que está nessa origem cultural afrobrasileira uma das saídas para essa polarização, para essa violência, para esse desentendimento, desinteresse e ignorância com a origem e História do Brasil, que muitos, não todos, mas muitos brasileiros têm.
Eu abri nosso papo falando acerca da escolha de manter o filme sobre a vida de Môa. Sua morte é citada, obviamente, mas a obra não tem o peso dessa tragicidade a guiá-la. Na pergunta, eu acabei não pontuando com mais ênfase essa presença física dele durante boa parte do documentário. Suas falas captadas em 2018 estão presentes na montagem e, ao assistirmos ao filme hoje, sabendo de tudo que ia acontecer com ele em questão de meses, gera um peso. Mas quando esse fato trágico é citado, vemos as repercussões, vemos os protestos, mas o filme volta a trazer mais imagens da performance do Negrizu, mais falas de Gilberto Gil sobre essa ancestralidade. Talvez essa opção da montagem de manter o Môa conversando conosco tanto na abertura do filme quanto no final, tenha sido uma escolha talvez até subconsciente para nos manter com essa boa esperança.
Sim, com certeza. O filme não poderia nem começar pela morte como algumas pessoas queriam, porque, para muitas pessoas, é o fato mais conhecido sobre a trajetória do Môa, e muito menos terminar com a morte dele, porque a história dele não termina ali. Então, acho que é isso, sim. Não sei se uma decisão racional ou não, mas é uma escolha para mostrar que isso é um fato da vida dele. Óbvio que é um fato super importante, mas que isso não é o final de jeito nenhum. A gente que conheceu o Môa, e pessoas que o conheceram muito mais, pessoas de quem o Môa foi mestre, aprendemos com ele todo dia. As coisas que ele falava, o que ele cantava, o que ele escreveu, continuam reverberando e ganhando novos significados. Então, o Môa é muito presente. A gente conviveu fisicamente com ele por um período muito pequeno. A menor parte desses quatro anos em que ficamos fazendo o filme. Mas o convívio com ele foi diário, e ainda é, sabe? Eu ainda escuto o Môa e ainda aprendo com ele todo dia. E ele me mostrou muitos caminhos que são eternos. O Môa muito mais abre caminhos do que fecha. E eu acho que a intenção do filme também é um pouco essa: fazer as pessoas saírem do filme querendo saber mais, instigadas e interessadas. A gente tinha duas missões. Uma didática, de ensinar quem não sabia o que são esses assuntos, e uma outra de quem já sabia, de acalentar um pouco, e meio que lembrar que o Môa está presente em vários lugares. Acho que esse lugar, também, que você falou da entrevista, a morte dele está presente no filme antes da hora em que contamos que ele morreu, isso pelos depoimentos de algumas pessoas que estão emocionadas, com lágrimas nos olhos. Tem o próprio Môa que a gente fala que é a última entrevista feita com ele em vida. Algumas pessoas até mencionam a saudade, a falta que ele faz. Só que a vida está ali sempre pulsante ali o tempo inteiro. A presença do Môa está lá, no filme, viva. Os ensinamentos do que ele fala são eternos. Nunca vão morrer. Ninguém nunca vai matar. E acho que tem uma coisa que você começou a falar no começo e que eu pensei… Acho que é isso. A gente tem que encontrar novas formas de falar de política. Acho que até pela recusa que algumas pessoas têm já de pensar no tema, pessoas que estão do outro lado e que não gostam de cultura, os preconceituosos, já têm uma refuta, mesmo, em ouvir. E eu acho que é nosso papel como documentarista, como jornalista, encontrar outras formas de falar sobre política que toquem as pessoas de outras formas. E que isso permita chegar em pessoas que talvez não deixassem isso chegar se isso viesse em um discurso envernizado de política, mesmo. Môa era uma figura política, mas só que ele não era um ativista em si. Ele fazia política pela arte, pela educação. Então, isso é fazer política de outras formas, também. É muito isso que você falou. Tivemos muita delicadeza da forma que tratamos da morte dele para não parecer que isso era o fim. Para não explorar isso e para mostrar que não estamos falando da morte, mas, sim, da vida dele. E que a vida dele ainda tem muito respiro, muito gás.
Revisitar, cinco anos depois, a história de Môa, bem como o fato de sua morte, é algo que gera uma reflexão porque, mesmo ainda existindo a revolta por tudo que aconteceu, hoje é possível olhar para essa polaridade brasileira de um modo a se resguardar. Lembro do show do Roger Waters aqui em Salvador, quando ele falou do Môa e, na plateia, havia pessoas inacreditavelmente discordando dele. Na época, a vontade era de comprar aquela discussão, do mesmo modo que Môa comprou. Hoje, pensar sobre isso, me faz refletir mais sobre essas escolhas. Escrever sobre isso hoje, após tanto tempo, me faz pensar nisso desse modo.
Sim. E mostra que foi uma decisão acertada, mesmo. De não explorar a morte dele. Eu acho que eu nem conseguiria explorar a morte dele. Não foi só uma decisão racional. Foi, também, passional. Não conseguiria porque sempre foi para tentar passar para a frente a forma como o Môa me impactou. Ele transformou minha vida. Eu já tinha interesse em redescobrir o Brasil, já gostava de Salvador, mas o Môa mostrou porquê. Mostrou as ferramentas, deu argumento. Acho que é isso. A arte é argumento de manutenção de sociedade, para a gente se manter são no mundo. Então, o Môa nos deu muito argumento. Deu muita arma para lutar. E é isso. Ele morreu fazendo o que ele fazia sempre, que era lutando e defendendo aquilo que ele acreditava e o que ele achava que o Brasil precisava, o que aquela comunidade precisava e o que Salvador precisava. Então, é muito simbólico, porque entrou um outro homem negro que estava lá na comunidade, mas que não era muito conhecido, era uma pessoa nova ali, ninguém sabia quem ele era, e o cara meio que não sabia quem era o Môa, e foi lá e foi defender o discurso do Bolsonaro. Então, essa ignorância que eu estava comentando, esse desconhecimento do Brasil está simbolizado aí. Um cara que não conhecia, que não entendia, e estava defendendo uma coisa que é contra ele, contra a gente, contra todo mundo. E o Môa foi dar os seus argumentos, como ele sempre dava. É isso. Acho que depois desse tempo, não poderia, mesmo, focar mais na morte dele. É a vida e é obra que vai ficar pra sempre e que vai ganhando força. Não enfraqueceu só porque esfriou a história da morte, ou por causa das eleições. Continua muito presente, muito forte, e ganhando novos significados. É isso que eu acho que dialoga com a obra do Môa. É uma obra que é atemporal. Ela é eterna. E vai estar sempre falando do Brasil contemporâneo seja qual for a época na qual nós estivermos.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.