texto por Renan Guerra
Édouard Louis é uma espécie de enfant terrible da literatura francesa. Cada novo livro do autor se torna um sucesso de vendas imediato e causa um burburinho geral. “O Fim de Eddy”, seu primeiro livro, lançado em 2014, retrata sua infância e reconstrói o cenário de violência e homofobia que o cercava. Sua mãe e seus irmãos foram para os jornais e para a televisão francesa se defender das acusações do livro. Já “História da Violência” (2016) retrata uma violência sexual sofrida pelo autor; após o lançamento do livro, o criminoso foi identificado por DNA e ficou 11 meses na cadeia, após isso ele moveu um processo contra Édouard, alegando que o autor atentou contra sua privacidade. Ambos os livros foram lançados no Brasil pela Tusquets Editores e valem demais a leitura.
Agora a obra de Édouard Louis chega ao Brasil novamente em dose dupla pela Todavia Livros: “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, ambos com tradução de Marília Scalzo, são uma espécie de livros-irmãos, já que um fala sobre o pai do autor e outro sobre sua mãe. A obra de Édouard remonta a uma tradição de literatura de autoficção, em que o autor transforma sua própria vida em narrativa, em que a realidade se conecta com os floreios da literatura. Podemos correlacionar essa forma de narrativa com obras de, entre outros, Marguerite Duras e Annie Ernaux – autora laureada com o Nobel de Literatura de 2022. Os dois novos livros de Édouard Louis funcionam quase como uma extensão de “O Fim de Eddy”, mas podem perfeitamente serem lidos de forma independente, numa boa (e curta) apresentação de sua literatura para quem ainda não está familiarizado.
“Quem matou meu pai” é uma mistura de relato autobiográfico com uma espécie de manifesto político, em que Édouard reconta sua relação complicada com o pai e apresenta as dificuldades que ele enfrentou com o governo francês após um acidente de trabalho. Lançado na França em 2018, “Qui A Tué mon Père” (no original) gerou burburinho com a classe política e, dez meses depois, o político francês Martin Hirsch lançou “Comment J’ai Tué son Père” (“Como eu matei seu pai”, em tradução livre), uma espécie de livro-resposta ao trabalho de Édouard Louis. Enfim, celeumas políticas de lado, “Quem matou meu pai” é um relato curto, mas extremamente pungente sobre essa relação delicada entre o pai e seu filho homossexual, bem como essa interação se dá no meio de um cenário de violência, em que o machismo e a homofobia são a norma.
Já “Lutas e metamorfoses de uma mulher” se centra na relação do autor com a mãe e reconstrói, primeiramente, os anos de infância de Édouard e toda a sua quase “guerra fria” com a mãe e como a violência se materializou no meio da relação deles. Por conseguinte, o autor reconta como sua mãe se libertou de uma relação abusiva e se reencontrou na maturidade com sua feminilidade e sua liberdade – bem como reencontrou o contato com o seu próprio filho. Com cerca de 100 páginas, esse é um retrato não só da libertação de uma mãe, mas também do amadurecimento de um filho e de seu olhar para o mundo.
“O Fim de Eddy” é um livro forte e tocante construído inteiramente naquele furor de mágoa de quem sofre as violências. É interessante notar que em “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, Édouard Louis parece mais consciente das complexidades as quais todos esses personagens estavam envoltos. Não é como se ele ignorasse as violências e as dores que vivenciou, mas é que agora ele consegue nos descrever um cenário mais amplo, onde a desilusão e a mágoa completam o cenário de todos esses personagens.
Édouard Louis tem uma escrita sedutora, que nos envolve em sua egotrip de uma forma única e, por isso mesmo, seus livros são leituras ágeis, que nos fazem mergulhar de forma intensa. Com isso recomendamos a leitura de “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher” em sequência para um mergulho bastante completo nesse universo particular da família do autor – e que parece com tantas e tantas famílias por aí, inclusive as nossas.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.