Entrevista: Isabela Sancho fala sobre seu novo livro de contos, “A Nudez Extinta”, que investiga as nuances do trauma e da perda

entrevista por Marcela Güther

Primeira publicação em prosa da escritora, ilustradora e psicanalista Isabela Sancho, o livro de contos “A Nudez Extinta” (Editora Urutau, 113 pág.) revela um novo processo criativo da escritora, que também perpassa sua relação com a psicanálise. Ao trazer as diferentes nuances do trauma, “A Nudez Extinta” explora uma diversidade de temas como o luto e o isolamento familiar, a repressão estrutural contra grupos dissidentes, o esvaziamento psíquico, a ideação suicida e, até mesmo, a destruição do meio ambiente.

Isabela conta com uma extensa trajetória na poesia, que acumula sete obras, além de um livro infantil. Sancho também alcançou certa notoriedade ao longo dos anos, tendo sido vencedora do Prêmio Literatura e Fechadura com “Olho d’água, espelho d’alma”, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura por “Monstera” (Editora Urutau) e recebido Menção Honrosa por duas vezes no Prémio Literário Glória de Sant’Anna, de Portugal, com os livros “As flores se recusam” (Editora Patuá) e “A depressão tem sete andares e um elevador” (Editora Penalux). Tem escritos publicados em jornais, revistas e portais no Brasil, Itália, Portugal, Galiza e Estados Unidos.

Como ilustradora, Sancho é mais conhecida por seus trabalhos no livro de poemas “As Mulheres de Hopper” (Editora Patuá), obra da poeta Kátia Marchese — vencedora do ProAC/SP na categoria de poesia —, e no livro de contos “Tantas que aqui passaram”, da escritora e editora Maria Luiza Machado, idealizadora da Mormaço Editorial. Sancho também ilustrou as próprias obras, incluindo seu mais recente lançamento, A Nudez Extinta. Abaixo, ela conta sobre “A Nudez Extinta”, trauma e perda, processos de escrita e muito mais.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro “A Nudez Extinta”, quais seriam?
A “Nudez Extinta” trata de diferentes nuances do traumático: desde sutilezas quase imperceptíveis até atos tanto mais concretos. Nesse gradiente, estão inclusas problemáticas variadas: os lutos e isolamentos familiares (“Temporã”, “Agora que setembro de aproxima”, “Da mesma família” e “Leite de pedra”); as violências contra grupos minorizados, como as restrições femininas no casamento (“Tons quentes” e “Bem-casados”), a repressão dos gêneros e sexualidades dissidentes (“Modelo vivo”, “A nudez extinta” e “Então a noite foi aberta”), o racismo (“Topsy-turvy doll”), o gaslighting (“Ex libris”) e a importunação sexual (“Um nome para chamar” e “Todos os botões”); o esvaziamento psíquico e a ideação suicida (“Souvenirs”); a destruição da natureza atingindo as plantas (“As árvores atravessam a rua”) e os animais (“Uma de nós’). As personagens protagonistas são variadas (crianças, jovens, adultos, velhos; heterossexuais, homossexuais, cisgênero, transgênero; humanos, animais, plantas), mas todas são marcadas por alguma perda.

Por que escolher esses temas?
Trabalhando como psicanalista, lido diariamente com o traumático em suas mais diferentes formas, precisando alargar em mim o espaço para a alteridade. Esses temas me permitiram um deslocamento para além de mim mesma.

Como você definiria seu estilo de escrita?
O que percebo, ou talvez, o que gostaria de acreditar que predomina na minha escrita é algo imagético e detalhista, com algumas aberturas para o brutal e outras para o poético.

O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?
A partir de certos relances de imagens aterradoras que me atravessaram pessoalmente ou que me afetaram enquanto testemunha, passei a compor um conjunto de narrativas ficcionais. Meu processo de escrita dessa prosa em muito se relacionou com a maneira com que a psicanálise pensa a produção dos sonhos: por meio dos recursos da condensação e do deslocamento.

O que é mais desafiador em escrever sobre trauma e perda?
Pensando com ajuda da psicanálise, o trauma ocorre quando um acontecimento está além de nossa capacidade de assimilação no momento de sua ocorrência, e se instala profundamente quando a tentativa sucessiva de colocá-lo em palavras é interrompida. Por isso, escrever sobre o trauma é uma aproximação de regiões internas para as quais a palavra é, na verdade, impossível. Mas independentemente do traumático, escrever é sempre incompleto.

Quais são as suas principais influências literárias?
Herta Müller, Clarice Lispector, Anaïs Nin, Sylvia Plath, Anne Sexton, Paul Celan, Franz Kafka, Ismail Kadaré.

Que livros influenciaram diretamente a obra?
Sou ávida pela escrita de Herta Müller, autora que viveu sob regime ditatorial na Romênia e que é capaz de transmitir a opressão constante a partir de descrições cruas e pontiagudas do campo e da cidade, de interações e movimentos truncados entre personagens, bem como pelo seu trabalho com a linguagem, que inclui o desconcerto e a interrupção. Li tudo o que foi traduzido no Brasil de sua obra e, precisando escolher só alguns títulos, citaria os contos de “Depressões”, o romance “Fera d’alma”, e as entrevistas de “Minha pátria era um caroço de maçã”.

“O velho que não sente frio e outras histórias”, de Daniel Francoy, é uma prosa inventiva cujo gênero é incerto nomear, e que me impressionou muito pela maneira com que faz as imagens fluírem de uma personagem para a outra sem se fixarem. Com esse recurso, o autor vai adensando camadas de uma percepção sensível sobre a violência social e política, com uma potência da singeleza que eu não via acontecer desde “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, e que também ressurge contemporaneamente no conto “Voz”, de Jarid Arraes. Nesse sentido, a coleção de “Sonhos”, de Franz Kafka, é outro livro cujas imagens me despertam uma dolorida ternura.

“Abril despedaçado”, de Ismail Kadaré, é um romance que sempre me acompanha, ao narrar, em uma região montanhosa da Albânia na qual o Estado não chega, a condução arbitrária de um personagem à própria morte, em um sistema de disputas entre clãs familiares dos quais ele se vê profundamente alheio. No período de escrita de “A nudez extinta”, também reli diversas vezes os contos “O olho de Deus” e “Queridos filhos mortos” de Elena Alonso Frayle, narrativas curtas muitíssimo bem trabalhadas sobretudo nos detalhes, tão expressivos que permitem que o essencial permaneça inominado, mas presente em um gritante silêncio.

Quais as suas principais referências psicanalíticas que ajudaram a formar a sua abordagem literária nos contos do livro?
Melanie Klein é uma das primeiras psicanalistas cuja escrita me capturou, pela maneira destemida e imagética com que descreveu processos arcaicos no ser humano, e que incluem a voracidade, a hostilidade, a disrupção, a culpa, dentre outros afetos ligados à destrutividade e que, sobretudo ao se aplicarem à infância mais remota, são pouco digestivos para o senso comum.

Sándor Ferenczi é outro psicanalista que me comove até a medula, pois foi um dos mais importantes estudiosos sobre o efeito do trauma na constituição do psiquismo. Dando seguimento às primeiras descobertas de Sigmund Freud, ele considerou que o trauma não se estabelece apenas no momento em que um evento extrapola os recursos psíquicos de que o sujeito dispõe para assimilação. Pensando em crianças vítimas de abuso sexual, ele considerou que é necessário um segundo tempo no qual a criança violentada, ao se dirigir a um outro adulto de sua confiança para relatar o que lhe ocorreu, tem seu relato negado – é o que ele chama de desmentido, um ataque à capacidade de percepção que abre uma fissura psíquica, não apenas lançando a criança sozinha no vazio, mas também propiciando que ela se identifique com o agressor, deformando-se emocionalmente para conseguir continuar amando-o.

E para falar da psicanálise mais atual, tocam-me os escritos de René Roussillon, psicanalista que fala do impacto dos encontros decepcionantes nas experiências primárias, e de Marion Minerbo, que propõe o conceito de supereu cruel para pensar a instância interna que se estabelece no psiquismo de sujeitos cujas figuras de afeto primordiais não puderam conter em si mesmas aquilo que possuíam de mais nefasto.

Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Comecei a escrever mais detidamente a partir dos 15 anos. Tinha visto um fac-símile do diário de Kurt Cobain, e fiquei com vontade de levar sempre comigo um caderno onde também pudesse escrever e fazer desenhos. Nessa época, também ganhei de amigas alguns livros de Clarice Lispector e George Orwell, e encontrei na biblioteca da escola outros de Milan Kundera e Jean Paul-Sartre. Ao lê-los, comecei a sentir vontade de escrever algo, sem saber ainda ao certo o que. Estava começando a gostar da banda Radiohead e, um dia, enquanto escutava a canção “How to disappear completely”, comecei a escrever sobre uma jovem que não tinha um corpo próprio, pois era apenas “um traço, um contorno sem fim”. Depois desse texto, comecei um novo, no qual uma mulher tinha pele transparente e via seu sangue mudar de cor conforme o que sentia – certo dia, percebeu que seu coração tinha caído, indo parar no cotovelo.

Como é o seu processo de escrita?
Costumo partir de imagens que me impactam, que deixam uma forte marca na memória. Utilizo desse tipo de impressão para escrever poemas, trabalhando o apelo momentâneo, seu relance visual. Uma vez esboçado o poema, passo a buscar sua sonoridade, tentando afiná-lo. Na prosa, o ponto de partida é semelhante. O que difere é o estabelecimento da temporalidade, do espaço e das relações entre os seres que habitam a narrativa – processo que me exige um tatear às cegas: boa parte do tempo, escrevo à revelia do sentido contido no conto, desconhecendo-o, mas querendo crer que está à espreita e que, em algum momento, se revelará. Quando isso acontece – se acontece -, retorno ao início do conto, e passo a trabalhar suas entrelinhas.

Por que você optou por contar essas histórias no formato de conto?
Acho que cada história que eu tinha para contar em “A nudez extinta” poderia ser pensada como um caminho que levou a um “baque”. Como o conto favorece trabalhar, na brevidade, a potência de certos acontecimentos, podendo interrompê-los em seus pontos mais altos e abandonando o leitor ao seu impacto, o gênero me conveio especialmente nesse sentido.

Como a bagagem dos livros anteriores que você escreveu ajudou na construção das histórias?
Antes de escrever esse meu primeiro livro de contos, eu havia escrito quatro obras de poesia. Em duas delas, “A depressão tem sete andares e um elevador” e “Olho d’água espelho, d’alma”, havia uma forte necessidade de narratividade: na primeira, temos um eu-lírico que adentra um elevador de descida por um subsolo e que, ao parar em cada um de seus andares, vai se deparando com as dimensões de seu vazio – uma pilha de louças que desmorona, uma plantação de cebolas que não param de ser cortadas, uma plataforma que faz que vai cair, vertiginosamente; na segunda, temos uma mulher diante de um lago que muda de cor conforme a tentativa de experiência amorosa estabelecida com cada homem – pirata, gondoleiro, velejador -, e que vai adentrando a água cada vez mais profundamente, até encontrar várias versões de si mesma.

Já em “As flores se recusam” e “Monstera”, obras organizadas como coletâneas, temos poemas que transitam ao redor de temas como a misoginia, a tirania, o silenciamento, o cerceamento, mas também a insubordinação feminina como reação necessária. Acho que, nesses livros, muitas vezes precisei de metáforas que suportassem as violências melhor do que um ser humano, e trabalhei com imagens como flores exaustas de seus vasos, plantas carnívoras, animais encarcerados, insetos fóbicos. Também havia escrito e ilustrado um livro infantil chamado “A invenção das Isabélulas”, que conta a história de uma borboleta que, na verdade, não era bem uma borboleta, mas sim uma mariposa. Ela se vê expulsa de seu rosado lugar de origem, precisando perder partes de si para vir a ser aquilo que, na verdade, sempre foi.

Depois, quando encontrei uma maneira de escrever prosa de ficção – desejo persistente desde que comecei a escrever –, o ímpeto de narrar parece ter finalmente vindo a termo, permitindo-me dar lugar para imagens impactantes em outra relação com o tempo-espaço: para que existissem, era preciso que alguém as causasse pela própria vida – as personagens. Além disso, descobri com a prosa o quanto não queria mais que temas doloridos fossem encriptados pela metáfora isolada, nem que sua força se fizesse ambígua ou rarefeita no silêncio das cesuras, mas que ganhasse a explicitude das cenas humanas, nas quais as relações intersubjetivas muitas vezes dizem tudo o que precisa ser dito por si mesmas.

Quais as expectativas sobre este lançamento e de que maneira você visualiza o impacto de sua obra sobre as pessoas que a lerem?
Nunca encontro nas leituras do outro algo que eu possa imaginar sozinha antes para meus livros. Por isso, apenas cultivo o desejo de que, se as histórias sensibilizarem alguém, que possam abrir o diálogo entre nós. Costumo ficar muito surpreendida com o que minhas palavras contêm, e que só se me revelam quando um leitor tem a generosidade de me contar sua perspectiva. Por enquanto, tenho recolhido primeiras impressões sobre “A nudez extinta”, e descoberto que certos contos já chegaram a causar angústia, choque, desespero, enquanto outros têm como efeito o encantamento pelas transformações, ou o entusiasmo pelos debatimentos das personagens. Por exemplo, uma leitora muito sensível que o resenhou recentemente, Lureen Asei, colocou em primeiro plano certos “objetos imanados” e movimentos de presença-ausência dos corpos – aspectos que jamais tinham me ocorrido, mas de um inesperado no qual também me reconheço.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Estou escrevendo meu primeiro romance, que expande e aprofunda algumas questões já esboçadas em “A nudez extinta”, como, por exemplo, as formações oníricas, o descolamento afetivo no interior da família, a percepção de posições femininas estereotipadas como caricaturas do horror, o masculino enquanto possibilidade de aniquilamento, e a atenção para os universos vegetal e animal em suas vivacidades e fragilidades. Se nos contos desenvolvi, predominantemente, narrativas que conduzem os protagonistas a desfechos traumáticos, impactos brutos a partir dos quais as histórias simplesmente se interrompem, nesse novo projeto venho trabalhando com uma personagem cujos traumas anteriores se presentificam em relances abruptos da memória, enquanto ela flana no limbo de seu necessário entorpecimento. Espero que eu consiga conduzi-la a algum movimento de saída!

– Marcela Güther é jornalista, produtora de conteúdo, assessora de imprensa e mediadora do Leia Mulheres.

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