texto por Ana Clara Matta
O que é o futuro?
Primeiramente, se vemos a história como um somatório de conteúdo, o presente é o resultado desse somatório, a presença simultânea de tudo que existiu na Terra, a coexistência de todas as obras, eventos históricos e trajetórias pessoais – e o futuro é a soma ainda maior, a soma do passado com aquilo que está sendo feito no presente, que passa a existir enquanto você lê esse texto.
No presente todos os gêneros musicais que já foram criados podem existir lado a lado. Um show que começa com uma representação ruidosa do gênero HyperPop, criado no século XXI, pode logo fluir para uma fatia de soul tirada da escola da gravadora Motown no início dos anos 60. No futuro, gêneros novos podem ser inventados pela recombinação de tudo que aprendemos com o passado. No presente “Glitch Mode” e “My First and Last” não são incompatíveis mesmo que diferentes. No futuro, elas podem nem ser realmente diferentes – podem existir em um mesmo gênero, o K-Pop. O NCT Dream trouxe seu show ao Brasil na noite do dia 04 de julho, e o que o público presente viu foi definitivamente um pedaço do futuro.
O futuro também encurta distâncias, dissolve fronteiras e altera eixos de dominação cultural. No palco do Vibra São Paulo, uma banda formada por quatro sul-coreanos, dois chineses e um canadense performa para uma plateia majoritariamente brasileira que a acompanha, cantando frases em inglês e coreano com habilidade similar, carregando cartazes escritos em um alfabeto diferente do seu. Do lado de fora do show, a ausência de venda de merchandising oficial foi sentida, mas também foi suprida por uma fascinante economia horizontal, com fãs trocando brindes feitos por eles, colocando em prática complexos projetos combinados pela internet e vendendo produtos artesanais com referências compartilhadas pela fandom para ajudar no orçamento de seus ingressos e viagens.
O último single do NCT Dream, lançado no dia 19 de junho, não saiu em tempo hábil para ser incluído na setlist da turnê – “Broken Melodies”, cuja letra discorre sobre as dores de um relacionamento a distância, mesmo assim protagonizou um momento inesquecível . No intervalo anterior ao bis, o clipe da canção foi transmitido no telão da casa, e o público acompanhou a letra em uníssono. Ao retornar ao palco, claramente tendo ouvido a reação do público ao clipe, Lee “Haechan” Donghyuck decide puxar, a capella, uma pequena performance da canção.
Na pista premium, uma garota aproveita esse momento para cantar junto com alguém via transmissão de facetime do celular. Poucos metros para direita uma garota transmite o show em live para mais de mil fãs com seu aparelho. “Broken Melodies” trouxe um coro arrepiante que nos faz pensar na relação banda-público como uma ansiosa relação à distância – melodias quebradas tornadas completas quando todos cantam em conjunto no aguardado encontro presencial.
Tudo isso não parecia possível até 2023. Durante a pandemia de Covid-19, período de maior crescimento de ouvintes casuais e fãs de K-Pop, turnês foram paralisadas e diversas bandas da terceira e quarta geração do gênero tiveram suas carreiras marcadas por uma ausência quase total de interação presencial com os fãs. Em janeiro o mesmo Vibra São Paulo recebeu outra unidade da banda NCT, a NCT 127, inaugurando uma explosão de shows de K-Pop no país.
Os shows das duas unidades diferentes do NCT são marcados por sonoridades e atmosferas muito diferentes, mesmo com membros em comum entre elas. Se o show do NCT 127 apostava em muita intensidade, coreografias potentes, mais influência da música eletrônica e sensualidade aberta, o NCT Dream leva o público para um passeio mais abrangente e lúdico pela história da música pop, e recebe em cada trecho desse passeio a mesma resposta calorosa – o mesmo público que cantou a balada soul “Sorry, Heart”, levando o vocalista Chenle a tirar seu ponto auricular para ouvir melhor o coro, foi o público que fez o chão tremer no hino de influências “EDM Trigger The Fever”. O cover de um clássico da primeira geração do K-Pop, “Candy”, recebido com paixão no mesmo setlist em que “Diggity” e “Hot Sauce” enchiam o palco com psicodelia eletrônica.
A pandemia que impediu turnês por dois anos também inspirou o ponto alto do show. No mesmo mês que recebeu o NCT Dream no Brasil, pessoas no Twitter questionavam a ausência de músicas significativas sobre o período pandêmico. “Hello Future”, canção lançada pela banda no dia 28 de junho de 2021, enquanto o mundo iniciava as vacinações e começava a olhar com dor e esperança pro resto do calendário, é um retrato sensível e honesto de todo esse processo, e se torna catártica no palco, em 2023, com o público finalmente podendo compartilhar desse futuro imaginado na música.
O futuro é eclético, multinacional, poliglota, é presencial e digital ao mesmo tempo, está no fã que canta junto e que cria seu próprio merchandising, que participa ativamente do show com seus projetos, que quebra distâncias geográficas e culturais e torna o impossível possível. Você pode fechar os seus olhos para ele, sair do caminho novo como Bob Dylan preconizava em “The Times They Are A-Changing”, mas não pode o impedir de acontecer. Mas ver o futuro se desdobrar ao vivo é uma honra.
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Ovo de Fantasma e escreve para o Scream & Yell desde 2016. As fotos são do Instagram do Vibra São Paulo / Divulgação
Linda leitura!
Arrepiei inteira lendo essa matéria. Eu estava no show e relembrar esse momento me trouxe lágrimas aos olhos. Simplesmente lindo tudo o que foi apresentado no palco pelo Dream e majestosamente retratado nessa matéria.