texto de João Paulo Barreto
Dentro da mitologia presente nos quadrinhos dos super-heróis da DC Comics, a partir da reformulação proposta na década de 1980 por nomes de desenhistas e roteiristas como George Pérez, Marv Wolfman e John Byrne, dentre outros, um foco mais evidente em questões sombrias e traumas psicológicos desenvolvidos na escrita de seus personagens passou a nortear muito do que a editora casa do Superman, Batman e Mulher Maravilha apresentou em suas páginas em meados daquela década. Foi um período no qual a gigante do mercado editorial ousou priorizar leitores mais velhos e menos um público apenas infantil, mesmo que a venda de brinquedos oriundos do seriado Superamigos ainda atraísse os olhos de cifrões de seus engravatados.
O mais famoso evento das revistas em quadrinhos da época, a saga “Crise nas Infinitas Terras”, escrita e desenhada pelos dois primeiros nomes citados acima, e que unificou as várias narrativas presentes nas revistas da editora desde 1938, ano em que aconteceu a estreia do herói de Krypton, é o ponto de virada nessa nova estruturação dos gibis da editora. Reiniciando do zero toda saga dos quadrinhos da DC, restabelecendo origens e unificando estruturas temáticas, a saga “Crise” surgiu com um texto mais denso, envolvendo paradoxos temporais, realidades paralelas e a presença dos personagens medalhões dos quadrinhos em versões diferentes e oriundas de páginas não muito conhecidas pelo grande público leitor da época. “Crise nas Infinitas Terras”, até aquele momento, no distante 1985, foi o tratado dos quadrinhos da DC Comics que mais ousou nesse citado sentido de focar em uma profundidade maior para seus principais nomes. E o velocista Flash foi um deles.
Na saga dos quadrinhos citada, Barry Allen, como é conhecido seu alter-ego, consegue criar uma forma de voltar no tempo ao forçar sua super-velocidade a um extremo. O resultado, nas páginas impressas, é o chocante momento em que os leitores testemunham seu notório sacrifício para salvar o universo, quando, por conta da sua rapidez extraordinária no intuito de destruir um canhão de anti-matéria, seu corpo não suporta todo o atrito e esforço, e o herói acaba morrendo desintegrado. Na sua versão cinematográfica, que agora estreia em aventura solo, tema semelhante é abordado, com o velocista escarlate (novamente vivido pro Ezra Miller com seus trejeitos cômicos, mas sabendo compor o drama necessário ao papel) descobrindo uma forma de voltar no tempo para tentar salvar a vida de sua mãe. E, claro, a partir disso, todo o caos comum a filmes com temática de viagem no tempo se instaura.
Não foi por acaso que a introdução desse texto seguiu por um resumo do momento marco para os quadrinhos de super-heróis representado por “Crise nas Infinitas Terras”. É a partir dele que, em sua adaptação para o cinema, o diretor Andy Muschietti encontra toda inspiração visual para a criação de seu filme. Isso, claro, só se torna possível pelo sagaz roteiro assinado pela dupla Joby Harold, do recente “Army of the Dead” (2021) e da série “Obi-Wan Kenobi” (2022), e Christina Hodson, responsável pelo texto de “Aves de Rapina” (2020), outra adaptação da DC Comics. Claramente atentos ao material original que buscam referenciar em suas páginas, Harold e Hodson aproveitam todas as oportunidades para declarar tal homenagem e reverenciar sua fonte de matéria prima. Mas em seu dorso narrativo, eles adentram em algo que vai além disso.
Aproveitando-se do (atualmente na moda) conceito de multiverso, “The Flash” (2023) cria uma aventura que consegue unir e atrair olhares dos seus dois públicos alvo: a geração mais jovem, nascida após a virada do século e que tem nas referências de super-heróis as adaptações da Marvel e os seriados da CW (dentre eles, o próprio “Flash”), e que, claro, vai se impressionar pelo espetáculo visual do filme; e aqueles jovens coroas que conheceram ainda adolescente ou adultos, nos anos 1980 ou 1990, as ousadas mudanças de cenário dentro dos quadrinhos. À época, a referência de adaptação das páginas dos quadrinhos para o cinema eram a clássica e definitiva versão que Christopher Reeve trouxe para o Superman no final da década de 1970, juntamente com a ousada visão gótica de Tim Burton para o Batman em 1989, que, já não sendo mais segredo algum, volta em “The Flash” na pele de um Michael Keaton agora septuagenário, mas ainda capaz de ótimas cenas de ação.
E quando esses exercícios de metalinguagem começam a pipocar na tela, o olhar atento do cinéfilo mais experiente é presenteado de modo a se regozijar diante de todos aqueles detalhes temáticos e simbólicos a mesclar cinema e quadrinhos. A começar pela referência ao que Tim Burton propôs há 35 anos, quando ousou mudar a visão cômica do Batman advindo da série de TV de 1966 com Adam West e inserindo o citado tom soturno e gótico que lhe é característico. E isso, claro, embalado pela mente musical de Danny Elfman, cuja trilha sonora voltamos a ouvir aqui e que, à época, conseguiu fazer jus ao que os leitores da criação de Bob Kane e Bill Finger – repaginada por nomes como Frank Miller, Jim Aparo e David Mazzucchelli – esperavam ver naquele momento.
Quando outros símbolos citados desse mesmo universo da nona arte surgem, criando um encerramento digno das clássicas páginas de seu material impresso, “The Flash” acaba cumprindo seu dever de entretenimento com um pouco mais de profundidade. E isso é algo que tem andado incomum e ausente nas já entediantes e repetitivas adaptações de filmes de super-heróis.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.