texto de Davi Caro
Vamos primeiro responder à pergunta que todos devem estar se fazendo: sim, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” (“Spider-Man: Across the Spiderverse”, 2023) é muito daquilo que seu antecessor, “No Aranhaverso” (2018), conseguiu ser: o desenvolvimento emocional de Miles Morales (Shameik Moore) conforme este é apresentado a várias contrapartes de outros universos, o estabelecimento de relações claras entre o protagonista e seus coadjuvantes, e tudo isso embalado em visuais imersivos e maravilhosos em sua versatilidade. E também é muito diferente daquele outro filme, que saiu ganhador do Oscar de Melhor Animação.
É preciso tirar isso do caminho, sim, porque a verdade é que este é um filme pelo qual é realmente melhor só se deixar levar. Dirigido pelo trio Joaquim dos Santos, Justin K. Thompson e Kemp Powers, e produzido por uma equipe que inclui a dupla Christopher Miller e Phil Lord (responsáveis pelo supreendente “Uma Aventura Lego”, de 2014), esta sequência vem com a promessa de dar continuidade àquele que muitos consideram a melhor adaptação do Homem-Aranha para os cinemas, um filme aclamado por público e crítica e que deixou todos surpresos com um trabalho estético primoroso e personagens secundários cativantes, que tornaram o crescimento de Morales um processo palpável, intrigante e muitas vezes comovente.
O fato de “Através do Aranhaverso” começar centrando foco no mais carismático destes personagens secundários não é mero acaso: através de um prólogo que reintroduz a história de Gwen Stacy (Hailee Steinfield), o roteiro faz uma ponte entre o fim do primeiro filme e o início da trama da sequência, ajudando a desenvolver a trama da destemida (co-)protagonista e introduzindo outros dos principais elementos da trama. Já faz mais de um ano que Miles e Gwen lutaram junto a outros colegas-aranha para salvar o multiverso e frustrar os planos do vilão Rei do Crime. Desde então, Morales não teve mais contato com os novos amigos, que retornaram a seus respectivos universos. Lidando com a pressão do pai policial (Brian Tyree Henry) e da mãe superprotetora (Luna Lauren Vélez) de construir um futuro melhor para si, o jovem já está habituado a ser “o único Homem Aranha de seu universo”, mesmo que sinta falta dos companheiros de luta. Um desafio à altura se apresenta na forma do vilão Mancha (Jason Schwartzman), um desajustado ex-cientista com portais espalhados pelo próprio corpo, que este utiliza para viajar entre multiversos, e uma conexão direta com Miles e o filme anterior.
O mundo de Morales sofre um baque grande quando Gwen ressurge inesperadamente, com objetivos um tanto misteriosos. A reunião dos dois traz novidades: Gwen é agora membro de um “esquadrão de elite” aracnídeo, liderado pelo Homem-Aranha do ano 2099, Miguel O’Hara (Oscar Isaac). Conforme os detalhes da missão central da amiga se desdobram, o garoto se vê mais e mais perto do líder deste time de elite, e também toma contato com novos Cabeças-de-teia de outros universos, como Pavitr Prabhakar (uma hilária variação indiana do herói, vocalizada por Karan Soni), Jessica Drew (vulgo Mulher-Aranha, trazida à vida por Issa Rae) e Hobie Brown (mais conhecido como Spider-Punk, interpretado com maestria por Daniel Kaluuya). Somado ao retorno do amigo e mentor Peter B. Parker (variante mais velha do herói, na voz de Jake Johnson), que agora luta para domar as rédeas da paternidade, Miles se vê rodeado de outros semelhantes de outros lugares, com características e histórias de origem muito parecidas. E quando Morales descobre por que foi mantido longe da equipe de elite dos Aranhas, o jovem herói é forçado a, mais uma vez, defender seu ideal e sua visão de mundo, mesmo que precise ir contra os amigos e todo um esquadrão para fazer isso.
O filme pode ser muito bem dividido em três atos: a retomada das histórias tanto de Miles quanto de Gwen, o reencontro dos dois e a primeira aparição do antagonista principal; a apresentação dos muitos Homens (e Mulheres, e Gatos, e Dinossauros, e…)-Aranha que formam o time de O’Hara; e o desfecho, com reviravoltas de roteiro capazes de tirar o fôlego do espectador, que já está na ponta da cadeira. Porém, com resoluções rápidas e conclusões esperadas e (ainda) não alcançadas, este último trecho talvez seja o mais fraco dos três. Ainda que não seja nada que prejudique o filme, pode ser um pouco frustrante estar imerso em uma história cheia de nuances como esta para chegar a algo que muitos chamariam de anti-clímax. Alguns personagens menores e referências pequenas chamam mais atenção que outros – com destaque especial para a pontual mas hilária participação de Andy Samberg, de Brooklyn Nine-Nine, como o dramático Ben “Aranha Escarlate” Reilly, além das já citadas performances de Kaluuya e Soni como os Aranhas Punk e Indiano, respectivamente. O roteiro também encontra espaço para sutis comentários socialmente conscientes, que incluem menções à colonização britânica da Índia por parte do segundo e tiradas anti-fascistas do primeiro. O mesmo vale para o próprio protagonista, chamado pelo líder dos heróis multi-dimensionais de “anomalia” (numa alusão à reação “dividida” dos leitores de HQs à introdução de Morales como o sucessor de Peter Parker nos quadrinhos, em 2011).
Porém, o destaque fica mesmo para os quatro personagens centrais: Shameik Moore ajuda a recriar e aumentar a empatia por Miles mesmo quando suas ações beiram o impensável – afinal, adolescentes são impulsivos, mesmo. Hailee Steinfield brilha como Gwen, trazendo tensão e gravidade, e também delicadeza, ao arco da personagem; de longe, um dos melhores exemplos de desenvolvimento de personagens na história do cinema mainstream recente. Jason Schwartzman é a escolha certa para o personagem Mancha: sua incapacidade inicial de controlar os próprios poderes dão lugar a uma ameaça real conforme o filme se aproxima do fim. E Oscar Isaac caminha uma linha tênue com seu Miguel O’Hara, uma peça chave no desenvolvimento da trama e que ocupa uma área cinzenta entre o heroísmo altruísta e uma necessidade quase maníaca por controle dos acontecimentos que, dentro da mitologia do(s) personagem(s), faz bastante sentido.
As cenas divulgadas nos trailers já dão uma ideia do quão repleta de referências e easter eggs é esta nova produção, então, fica a dica: desista de encontrar e reconhecer todas as pistas e se concentre na história principal. Tentar pegar todas as pegadinhas e acenos a encarnações anteriores do personagem é uma tarefa realmente heróica, mas pode desviar o foco do que realmente importa. Os visuais, aliás, são um tópico à parte: os diferentes universos e locais explorados na tela são extremamente detalhados e tem toques delicados que os diferenciam (das cores vívidas da cidade de Mumbattan aos cenários aquarelados do mundo de Gwen). Também é importante relembrar que “Através” inicialmente foi anunciado como um filme em duas partes, com a segunda parte – agora tratada como um filme separado, e chamada “Além do Aranhaverso” – esperada para o ano que vem. Isso porque, como comentado por muitos, o final cheio de ganchos e pontas soltas pode frustrar quem estiver esperando uma história fechada ou uma conclusão plena, mas que não estraga a experiência para quem sabe que uma conclusão final ainda está por vir.
“Através do Aranhaverso” não é um filme perfeito; poucos filmes são. A responsabilidade de dar seguimento a um dos melhores filmes de animação e de super-herói da história pode trazer uma grande dose de expectativa, mas que não tiram o brilho ou o mérito de uma produção excepcional e feita com muito carinho. Em tempos nos quais o mercado de cinema super-heroico está super-saturado e vem frustrando mais do que agradando, “Através” é mais do que um prêmio de consolação; é uma recompensa para aqueles que seguem acreditando. Para citar outro filme muito aclamado de um outro salvador mascarado: este pode não ser o filme que merecemos, mas é aquele do qual precisamos agora. E o segundo capítulo desta trilogia supre essa necessidade gloriosamente.
Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo
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