texto, vídeos e fotos por Bruno Capelas
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 2
Em sua terceira noite na edição de 2023, o Festival Casarão propôs uma mistura que para muitos pareceria indigesta. Em sua primeira metade, a meta do evento era abraçar o pop, o rock e as brasilidades em um lineup capitaneado pela Maglore, junto a artistas de Rondônia (Beradelia) e do Acre (Duda Modesto e o veterano Diogo Soares, vocalista do Los Porongas). Depois que os baianos fossem embora, porém, seria a vez dos punks e dos metaleiros tirarem as camisas-pretas puídas do armário para ver o retorno do Ratos de Porão a Porto Velho após 14 anos. Mas, a despeito das disparidades sonoras, há um elemento que liga os dois polos: a postura de resistência diante da guinada conservadora que o Brasil viveu nos últimos anos. Assim, unindo melodia e barulho, a terceira noite do Casarão foi a mais cheia (cerca de 600 presentes) e a mais política do festival, sem soar panfletária ou perder a ternura.
Quem abriu a noite foi a banda local Tambakillers, que mescla metal e hard rock com um evidente sabor regional – vale conferir o single “O Mapinguari e a Matinta Perera”, lançado em 2021. Na sequência, quem subiu ao palco foi o rapper Razec, embora a reportagem do Scream & Yell só tenha chegado ao Zé Beer na apresentação seguinte, a da cantora acreana Duda Modesto. (A culpa foi da programação vespertina no domingo, que incluiu banho de cachoeira e um excelente peixe frito com pirão apimentado no Balneário Cachoeirinha, bem como uma rodada de cerveja suja em um mirante com vista para a Estrada de Ferro Madeira Mamoré e o Rio Madeira. Nem só de shows e de trabalho vive o homem, e ficam aqui duas dicas de turismo rápidas caso o leitor passe por Porto Velho).
Amparada por veteranos do Acre, com destaque para o baterista Jorge Anzol (Los Porongas) e o guitarrista Saulo Olímpio (Os Descordantes, que acabaram de lançar o single “Um Mês”), Duda Modesto mostrou energia e identidade próprias, trazendo para Porto Velho as canções de seu autointitulado primeiro EP, lançado em 2022, além do novíssimo single “Língua” – em estúdio e também pelo visual, o trabalho de Modesto lembra Duda Beat e Marina Sena, mas com sotaque (bem mais) roqueiro. Além do trabalho autoral, Duda chamou a atenção com uma releitura enérgica de “Come Together”, dos Beatles – o que mostra seu potencial ao atacar com destreza uma canção já bastante maltratada por bandas cover mundo afora. Fique de olho.
Tradicional banda de Porto Velho, a Beradelia voltou ao Casarão com um show mais roqueiro e menos cirandeiro que o de 2022. Com mais peso e menor carga poética, a apresentação remeteu, em diversos momentos, ao Red Hot Chili Peppers – o destaque da meia hora que a banda passou no palco, porém, foi a participação do cantor BerAkillaz, que já havia sido um dos pontos altos do show da Quilomboclada no ano passado.
Responsável por uma das bandas mais originais do rock brasileiro dos anos 2000, os Los Porongas, o cantor Diogo Soares veio ao Casarão buscando criar pontes e laços – a começar pela sua banda de apoio, que contava com os polivalentes portovelhenses Rodolfo Bartolo (bateria), Ramon Alvez (baixo) e Thiago Maziero (guitarra). Na primeira parte de seu show, o acreano trouxe canções de sua própria lavra, como a impactante “Rinocerontes”, em evidente apelo antifascista. Antecipando o espírito coletivo que viria a seguir, Diogo conclamou os presentes a se unirem. “A gente só se salva na base do afeto, chega de porradaria; só pode [porradaria] quando a gente acha que é injusto”, discursou o cantor, em uma releitura muito brasileira do paradoxo da tolerância do filósofo alemão Karl Popper.
Nos vinte minutos finais de holofotes, porém, Diogo preferiu abrir espaço a outros talentos amazônicos em vez de se mostrar sozinho. Primeiro veio o cantor Ixã Baribay, descoberto pelo DJ Alok (!) e responsável por dividir com Diogo uma bela interpretação de “O Escudo”, dos Porongas. Depois, a cantora Marcela Bonfim, fotógrafa radicada em Porto Velho que, aos poucos, se descobriu cantora, entremeando imagens e sons em seu projeto Amazônia Negra – cujo statement principal é lembrar que, na Amazônia, “tem negro sim”. Dona de uma performance de palco impactante, Marcela quase não chegou a tempo de participar do show de Diogo, afetada pela chuva torrencial que caiu bem na hora da apresentação.
Foi de Marcela também a canção que encerrou o show, com Diogo chamando ao palco todos os artistas acreanos presentes – de Duda Modesto ao ex-companheiro Jorge Anzol – para cantar “Afeto é Tempo”, do impactante verso “afeto é tempo, desafeto é pressa”. Tão impactante quanto a movimentação no palco (e no público, com Marcela convidando a plateia a cantar o refrão no microfone) foi a faixa estendida pelos músicos no palco, que dizia “floresta em pé, fascistas no chão”.
A intensidade do que Diogo Soares e seus companheiros fizeram no palco foi tão forte que faria muitas bandas tremerem na base. Mas a Maglore, que subiu no palco logo a seguir, está longe de ser qualquer banda. Em sua primeira apresentação em Porto Velho, o grupo liderado por Teago Oliveira mostrou porque tem um dos shows mais elogiados do Brasil, mesclando as canções do excelente “V” aos hits de seus quatro discos anteriores, em uma sonoridade que é Beatles / Nascimento / Veloso / Banda Eva / Wilco tudo ao mesmo tempo e agora.
O repertório não foi muito diferente do que a banda apresentou, por exemplo, no palco do Primavera Sound – seja na abertura com “A Vida é Uma Aventura” e “Eles” (duas canções que falam muito sobre o Brasil de 2022/2023) ou no encerramento com o hit “Mantra” e a inesgotável “Espírito Selvagem”, coroada com um grande solo de Teago na guitarra. Por se tratar de uma estreia local, porém, o setlist incluiu concessões ao passado – caso da dupla “Às Vezes Um Clichê” e “Demodé”, da estreia “Veroz”, cantadas a plenos pulmões pelos portovelhenses.
Mas o que fez a Maglore brilhar em Porto Velho foi a capacidade de, sem truques nem vapores baratos, ser capaz de trazer mais energia no palco do que o já alto nível costumeiro, seja nos espertos backing vocals de Lelo Brandão (guitarra) e Lucas Gonçalves (baixo) ou na bateria ligeira de Felipe Dieder (bateria). Lelo, aliás, merece uma menção à parte: suas frases rápidas, licks e solos são dignos de um “filho perdido” entre Pepeu Gomes e Nels Cline, ajudando as canções da banda a ganhar um colorido especial, conquistando novo público. Em pouco mais de uma hora de show, a Maglore não só encantou quem foi até o Zé Beer para ver a banda, mas também muita gente vestida de preto que já chegava ao espaço, fazendo a melhor apresentação da noite.
A partir daí, o Zé Beer virou um mar de camisetas pretas (e algumas vermelhas, vá lá, para combinar com a bandeira antifascista), com duas bandas locais criando o clima para a chegada de João Gordo, Jão, Juninho e Boca. Quem primeiro subiu ao palco foi a Da Ordem ao Caos, que chamou a atenção pela sonoridade forte e duas mulheres no palco – a guitarrista Vâmila Silva e a baixista Ângela Gomes.
Depois, foi a vez da instituição local Coveiros, atração que nunca falha no Casarão: liderada pelo professor de geografia Giovanni Marini, o grupo botou todo mundo pra pogar ao som de mensagens antifascistas, internacionalistas e contra o agronegócio. Cheia de peso, a banda de crossover não deixou ainda de homenagear suas referências. No peito, Marini levava uma camiseta vermelha do Ratos de Porão. Já na voz, ele não deixou de prestar tributo “à banda que nos fez querer ser uma banda”: o Merda Seca, de Porto Velho, de quem a Coveiros cantou “Deus Igual Dinheiro”.
Além da performance marcante, vale destacar a presença de uma banca dos produtos da banda, com belas camisetas pretas. A venda de camisetas pelos grupos que passaram pelo Casarão, aliás, foi um dos destaques do evento – de Terno Rei a Hateen, de Maglore a Menores Atos, não foram poucos os artistas que ajudaram os portovelhenses a aumentar o tamanho de seu armário. Isso para não falar no Black Pantera, dono de uma camiseta branca com a capa do disco “Ascensão”, de 2022, que parecia até uniforme na primeira noite do festival. Vender produtos personalizados (ou “merchan”, como cada vez mais gente tem chamado por aí) é um jogo de grana boa e limpa que precisa ser cada vez mais jogado pelas bandas independentes, especialmente em excursões a locais distantes em que o frete torna qualquer compra online proibitiva.
Já na terceira noite, as camisetas do Ratos de Porão é que pareciam uniforme – havia até quem comentasse, à boca pequena, que só mesmo o seminal grupo de São Paulo para tirar “os velhos de casa” para pogar uma vez mais. Nostalgia barata, porém, não é exatamente o forte do Ratos, que está em grande fase com “Necropolítica” (que rendeu ao RDP o Prêmio APCA de Artista do Ano), lançado no ano passado. Mais do que apenas um excelente disco, “Necropolítica” serve como documento histórico do exercício do absurdo que foi viver no Brasil entre 2019 e 2022.
Em Porto Velho, a banda fez seu espetáculo esporrento de costume, misturando as músicas do disco do ano passado (“Alerta Antifascista”, “Aglomeração”) com clássicos como “Aids, Pop, Repressão”, “Morte ao Rei” e “Amazônia Nunca Mais”. Faixas do trabalho mais recente – o EP “Isentön Päunokü”, com versões de músicas da finlandesa Terveet Kadet – também apareceram, ajudando a explicar algo que João Gordo, a certa altura da noite, teve que desenhar quando certa parte do público pediu ao grupo que tocasse mais metal.
“A gente gosta pra caralho de metal, mas o Ratos de Porão é uma banda punk”, disse o histórico vocalista, que brincou ainda com a distância de Porto Velho (“cês moram longe pra caralho”) e não poupou esforços para empolgar o público presente ao longo de uma hora de show. Destaque também para a presença de palco de Juninho, trajando uma vermelhíssima camiseta do MST em um dos estados mais dominados pelo agronegócio conservador. Respeito é pra quem tem.
Ao longo de três dias, o Festival Casarão evidenciou mais uma vez sua razão de ser, servindo tanto como radar da música de Rondônia e da região Norte, ao mesmo tempo em que traz nomes em evidência da música brasileira para um público muito carente de opções culturais. Mais que isso: ao unir diferentes tribos em sua programação, dos jovens aos mais velhos, do punk ao pop, do hardcore ao rap, do reggae ao crossover, o Casarão faz um exercício democrático de festival em um país que precisa constantemente de lições de democracia – um conceito que não funciona só em Brasília, mas também no cotidiano de cada um de nós, e é especialmente salutar em uma cidade conservadora. Com um copo de cerveja cheio de sal e limão, que venha o brinde pelo Casarão 2024. Rondônia merece.
Top 7 Shows, por Bruno Capelas
1) Black Pantera
2) Maglore
3) Diogo Soares
4) Ratos de Porão
5) Terno Rei
6) Negra Mari
7) Coveiros
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 2
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.