texto por Gabriel Pinheiro
Um dos meus grandes prazeres como leitor é conhecer o processo criativo dos autores e autoras que mais gosto. Reconhecê-los no papel de leitores, com as referências e inspirações que os movem ao escrever, é revelador. Dona de um dos segredos mais bem guardados da literatura contemporânea – afinal, esse segredo é a sua própria identidade – a italiana Elena Ferrante lança “As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever” (2023), um mergulho que vai desde às águas rasas da infância, em sua formação como leitora, até os mares revoltos e profundos de suas obras, como a complexa construção das personagens Lenu e Lila da “Tetralogia Napolitana”. Com tradução de Marcello Lino, o livro é um lançamento da Intrínseca.
Composto por quatro textos, “As margens e o ditado” traz três conferências escritas pela italiana para a Universidade de Bolonha e um ensaio desenvolvido a convite da Associazione degli Italianisti. Enquanto nas três conferências Ferrante compartilha conosco seu caminho como escritora, caminho este que começa no papel de leitora e que se desdobra na construção de sua voz literária, no ensaio que encerra o volume a escritora traz uma leitura feminista e surpreendente acerca de Dante Alighieri e sua obra-prima, “A Divina Comédia”.
Logo no início do volume, Elena Ferrante nos diz sobre dois caminhos na escrita: “Senhoras e senhores, esta noite falarei da ânsia de escrever e das duas modalidades de escrita que acredito conhecer melhor: a primeira, aquiescente; a segunda, impetuosa”. De um lado um escrever que se desenvolve na necessidade da ordem, do respeito às margens – como aquelas impostas pelo caderno de infância, na descoberta da caligrafia – já no outro, o desejo por rebelar-se, por romper e ultrapassar essas margens, uma escrita que se descortina na liberdade da forma. Ferrante comenta como o conflito entre estas duas possibilidades segue sendo uma constante em seu processo criativo. “Tendo a transformar qualquer coisa em uma narrativa limpa, ordenada, harmônica, bem sucedida. Entretanto, o clamor desarmônico da cabeça permanece, sei que as páginas que por fim me convencem a publicar livros vêm dali. (…) Sob a necessidade de ordem, perdurou uma energia que quer atrapalhar, desordenar, desiludir, errar, falir, sujar”.
Elena traz para suas reflexões uma série de autoras que, sob diferentes perspectivas, contribuíram para o desenvolvimento de sua voz literária. Virginia Woolf, Gertrude Stein e Gaspara Stampa, por exemplo. A releitura do engenhoso “A Autobiografia de Alice B. Toklas”, de Stein, foi fundamental para o desenvolvimento da dinâmica construída pela italiana entre as personagens Lenu e Lila de “A amiga genial”, seu trabalho mais conhecido e grande responsável pelo “boom” de sua literatura nos últimos anos – que, inclusive, já ganhou uma adaptação no formato série de televisão.
As reflexões de Ferrante acerca da construção dos romances da tetralogia que acompanha suas duas protagonistas estão entre os pontos altos deste pequeno volume de textos, um deleite para nós, leitores. Vemos como questões que movem o próprio fazer literário da autora também movem o desenvolvimento e a relação entre as suas duas mais famosas personagens. “Na Tetralogia Napolitana, a história da escrita – da escrita de Elena, de Lila e, de fato, da própria autora – é, nas minhas intenções, o fio que mantém unido todo o encontro-confronto entre as duas amigas e, com ele, a ficção do mundo, da época em que elas agem”.
Repleto de passagens reveladoras e, sobretudo, inspiradoras, “As margens e o ditado” traz um acesso singular ao percurso desenvolvido por Elena Ferrante no campo literário. Se a italiana desenvolveu uma voz que se destaca pela autenticidade e pelo frescor na maneira de contar, ela é generosa ao mostrar como cada livro que escreveu traz dentro de si uma multidão de outras escritas que vieram antes e que ela capturou, de maneira consciente ou não. Antes de ser uma escritora, Elena Ferrante é uma leitora, que busca e compartilha conosco os prazeres que a acompanham nestes dois papéis, que se contaminam e que se complementam. “Escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna. Não devemos nos deixar lisonjear por quem diz: ela tem um tom próprio. Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si”.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.